À sombra do reforço militar norte-americano no Caribe, o governo Maduro acelera a mobilização de tropas e milícias, promete “defesa da soberania nacional” e fala em “república em armas”, enquanto analistas alertam para o risco de um conflito prolongado de caráter insurgente.
Caracas voltou a colocar a defesa do país no centro do tabuleiro regional. Diante do aumento da presença militar dos Estados Unidos no Caribe — com destróieres, cruzadores e a previsão de envio de navios-anfíbios e milhares de fuzileiros navais — o presidente Nicolás Maduro e o alto comando venezuelano acionaram um plano de resistência que inclui a mobilização de tropas regulares, forças policiais e amplas milícias civis em centenas de “frentes de batalha” espalhadas pelo território. Na mesma toada, Maduro declarou que, em caso de ataque direto, proclamaria uma “república em armas”, sinalizando que a resposta seria assimétrica e de inspiração guerrilheira, e não um confronto convencional.
No discurso oficial, o eixo é claro: defesa da soberania nacional e rejeição ao que Caracas qualifica como pressão do imperialismo. O argumento central é que a operação norte-americana, anunciada como combate ao narcotráfico, vem acompanhada de uma escalada de meios bélicos incompatível com uma missão policial — o que, segundo Caracas, traria instabilidade para toda a região. De seu lado, Washington sustenta que não há planos de incursão terrestre e que as ações miram redes criminosas transnacionais. Ainda assim, o próprio governo venezuelano reporta o deslocamento de meios militares para o litoral e para a fronteira com a Colômbia, além do apelo a que civis se incorporem às milícias.
Em setembro, Maduro explicitou o tom: “Se a Venezuela fosse atacada, declararíamos uma luta armada”, disse, repetindo que o país vive “preparo máximo” diante do que descreve como a maior ameaça em um século. Na prática, isso significa aceitar o terreno de uma guerra de resistência prolongada caso tropas estrangeiras pisem no país — com base em dispersão territorial, mobilidade e desgaste do inimigo. O presidente também iniciou consultas para decretar estado de emergência em cenário de agressão, ampliando poderes para mobilização total da sociedade e da economia sob comando militar.
O desenho tático apresentado ao público inclui a ativação de 284 “frentes” (pontos de defesa combinando unidades das Forças Armadas, forças de segurança e milícias), um regimento territorializado que busca capilaridade, inteligência local e logística de baixo custo — fundamentos clássicos da guerra irregular. Fotografias e reportagens independentes capturaram exercícios e deslocamentos nas últimas semanas, enquanto veículos internacionais confirmaram a dispersão das forças e a narrativa de prontidão permanente.
Do outro lado, analistas ouvidos pela imprensa estrangeira soaram o alarme: a combinação entre presença bélica norte-americana e uma arquitetura defensiva venezuelana de caráter popular-insurgente carrega alto risco de conflito prolongado, com atuação de grupos armados diversos, inclusive redes criminosas e atores transfronteiriços. Para antigos altos funcionários dos EUA, a região pode se ver diante de um cenário mais complexo que as operações convencionais do passado, com custo político e humano imprevisível — “um atoleiro de guerra de guerrilha”, nas palavras de uma fonte citada pela imprensa britânica.
Enquanto a leitura de Caracas enfatiza soberania nacional e autodeterminação, vozes do bloco anti-imperialista na região — incluindo aliados extra-regionais — ecoam o argumento de que a escalada no Caribe viola normas e agrava tensões, pedindo recuo e soluções diplomáticas multilateralizadas (CELAC, Nações Unidas). A própria diplomacia venezuelana tem insistido que os dados da ONU não sustentam a tese de que o país seria corredor central do fluxo de cocaína rumo aos EUA, apontando a construção de um pretexto para intervenção.
Nesse cabo de guerra, é impossível ignorar a disputa de narrativas. O governo Maduro acusa a mídia hegemônica de minimizar a dimensão política do cerco militar e amplificar versões que naturalizam o uso extraterritorial da força pelos EUA; já setores independentes e críticos ao chavismo denunciam o caráter autoritário doméstico e lembram que o endurecimento do regime se apoia na exceção permanente. É nesse terreno que a contrainformação — redes alternativas e mídias progressistas — tenta “romper o cerco” e tensionar as versões que circulam. O léxico político que sublinha imperialismo, soberania nacional e bloco anti-imperialista é recorrente nesse campo e ajuda a enquadrar a crise em coordenadas sistêmicas (quem tem o direito de projetar poder militar sobre quem, e com qual legitimidade).
Do ponto de vista operacional, a construção de uma defesa assimétrica na Venezuela, com potencial de absorver táticas guerrilheiras, não é um capricho ideológico, mas uma leitura realista da correlação de forças. Em confronto direto e convencional, a superioridade tecnológica, logística e aérea dos EUA é esmagadora; daí a ênfase bolivariana em territorializar a defesa, multiplicar nós logísticos, complicar linhas de suprimento e apostar na guerra de desgaste — com o cálculo político de que os custos para o agressor se tornariam impagáveis no médio prazo. Em termos práticos, isso se traduz em milícias em bairros e povoados, uso de geografia conhecida, pequenas unidades móveis, comunicação descentralizada e, sobretudo, adesão popular.
Há também um tabuleiro geopolítico que se move. Reportagens recentes indicam a montagem de uma retaguarda logística no Caribe por parte dos EUA — com melhorias em pistas e instalações —, algo que amplia opções bélicas, mesmo que a Casa Branca e o Pentágono reiterem o foco “anti-drogas”. Simultaneamente, parceiros de Caracas, como a Rússia, vocalizam apoio político e denunciam “força excessiva” norte-americana, elevando o tom diplomático. A confluência desses vetores torna qualquer cálculo de escalada um jogo perigoso.
No campo regional, vizinhos acompanham com apreensão. A história recente da América do Sul demonstra que conflitos internalizados depressa transbordam fronteiras, seja por fluxos migratórios, seja por economias ilícitas que atravessam áreas porosas. Especialistas lembram que a Venezuela faz fronteira com a Colômbia — país com trajetória de conflito armado de décadas —, e que atores como o ELN possuem presença transfronteiriça, o que, em caso de guerra, embaralharia os tabuleiros de segurança pública e direitos humanos. Pesquisadores próximos aos centros de estudos em Washington e Bogotá falam da “tempestade perfeita” caso uma intervenção desate um ciclo de violência difusa.
Nada disso invalida a crítica interna ao autoritarismo chavista nem o debate sobre liberdades civis na Venezuela. Uma abordagem honesta — e de esquerda — não precisa romantizar o aparato de Estado. Mas, nesse momento, a pergunta estruturante é outra: quem detém o monopólio da violência legítima e com base em que normas? A resposta passa, necessariamente, por recuperar o princípio de soberania nacional como anteparo contra aventuras militares que tendem a degradar a vida civil, empurrar populações ao exílio e abrir janelas para paramilitarismo e crime organizado. A experiência histórica latino-americana é pródiga em demonstrar que soluções de força patrocinadas por potências produzem, quase sempre, estado de exceção permanente, entreguismo econômico e democracia tutelada — e não “estabilidade”.
Por isso, premissas mínimas se impõem: 1) desescalada militar imediata no Caribe; 2) garantia de canais diplomáticos sob intermediação multilateral (CELAC/ONU) para reduzir riscos de erro de cálculo; 3) compromisso com monitoramento independente das alegações de combate ao narcotráfico, evitando que uma retórica de “lei e ordem” funcione como gatilho para a guerra; 4) proteção de civis e respeito às convenções internacionais. São medidas básicas para impedir que um contencioso político se converta em uma conflagração duradoura, com sabor amargo de guerra por procuração.
O que está sobre a mesa, em síntese, é menos “Maduro versus Trump” e mais o tipo de ordem que a América do Sul pretende sustentar no século XXI. Entre a naturalização da projeção de força extrarregional e a afirmação de uma autonomia regional que rejeite aventuras bélicas e golpismos de ocasião, há um mundo de escolhas políticas. Elas não se resolvem no cano da arma, mas na reconstrução de pactos institucionais, na redução da assimetria econômica e na democratização das comunicações — imprescindível para que a sociedade dispute sentidos contra a mídia hegemônica e suas zonas de silêncio.
Referências
AP News – Maduro says Venezuela ready to respond to US military presence in the Caribbean.
Reuters – Venezuela military, militias deploy to “battlefronts”, Maduro says.
The Guardian – Top Biden-era official warns US could stumble into ‘disastrous’ intervention in Venezuela.
EL PAÍS (English) – Maduro warns the US: ‘If Venezuela was attacked, we would declare an armed struggle’.
Al Jazeera – Venezuela’s Maduro ready to declare state of emergency if US attacks.
Reuters (Graphics) – How the US is preparing a Caribbean staging ground near Venezuela.
AFP/France 24 – Venezuela deploys warships, drones as US destroyers draw near.
