Em meio à escalada na disputa do Essequibo e à retórica de “república em armas”, o alto comando de Caracas aposta em guerra assimétrica, milícias e narrativa de “defesa da pátria” — enquanto a presença de guerrilhas na fronteira adiciona um componente de risco regional.
A Venezuela se move para um tabuleiro em que tanques e fragatas importam menos do que a capacidade de travar uma guerra de sombras. À medida que Washington reforça a cooperação militar com a Guiana na crise do Essequibo e adota tom mais duro com Nicolás Maduro, a cúpula militar em Caracas tem sinalizado uma doutrina de guerra assimétrica: mobilização de milícias, formação de células de comandos urbanos, uso de coletivos e, em último caso, a convocação de uma “república em armas” se houver ataque dos Estados Unidos. Essa inflexão, que privilegia a pulverização de forças e a engenharia de narrativa patriótica para desgastar um inimigo superior, ecoa anúncios recentes do próprio Maduro e a arquitetura de poder do chavismo.
Antes de prosseguir, uma nota de transparência editorial: este texto incorpora, de forma crítica e descritiva, termos e enquadramentos usados no jornalismo brasileiro associado à direita — como ditadura venezuelana, populismo autoritário latino-americano, estatismo, aparelhamento, liberdade de expressão versus censura, lei e ordem e ameaças à democracia na América Latina — com o objetivo de refletir o vocabulário predominante nos documentos de referência utilizados.
A moldura estratégica: dispersar, saturar, negar
A doutrina que ganha corpo em Caracas parte de um diagnóstico simples: frente a uma potência militar, a FANB não busca “vencer batalhas”, mas elevar o custo político e humano de qualquer intervenção. A “república em armas” é, na prática, um guarda-chuva discursivo para legitimar a entrada em cena de atores paraestatais e civis armados, espalhados por centros urbanos e corredores logísticos críticos. O objetivo explícito é transformar o teatro de operações em campo de atrito permanente, dificultando controle territorial e estabelecendo uma narrativa de resistência popular.
Nesse desenho, o papel da Milícia Bolivariana cresce. Ao longo de 2025, analistas militares registraram movimentos do regime para armar amplamente as milícias — inclusive com sistemas portáteis — com o discurso de dissuasão e “defesa do processo”. A avaliação externa é que esse passo eleva o risco de uma escalada não linear: quanto mais difusa a força, maior o potencial de incidentes imprevisíveis, especialmente em áreas densas.
Coletivos e o braço paraestatal
A Venezuela chega a este ponto com um aparato paraestatal consolidado. Os coletivos, grupos pró-governo vinculados a redes de segurança e mobilização política, são descritos por entidades de direitos humanos como partícipes de abusos e repressão a dissensos — algo reiterado após as eleições contestadas. Em um cenário de crise aguda, esses grupos tendem a atuar como “capilares” do Estado para controle social, saturação de ruas e intimidação política.
Para além do discurso de “autodefesa comunitária”, relatórios independentes e reportagens apontam que esses núcleos funcionam como interface entre governo, base partidária e atividades de coerção, o que na prática aprofunda o aparelhamento do espaço público e embaralha os limites entre segurança e censura. Numa crise de alta intensidade, a linha entre “resistência popular” e cultura do crime tende a se dissolver.
Guerrilhas transfronteiriças: a variável de alto risco
O elemento que mais preocupa vizinhos e observadores é a interseção entre a doutrina de resistência e a presença de grupos armados irregulares — em especial o ELN e dissidências das FARC — em território venezuelano. Documentos oficiais dos EUA e relatórios públicos reiteram que Caracas tolerou ou abrigou essas organizações quando interesses convergiram, permitindo trânsito binacional e consolidando o ELN como força com presença em múltiplos estados venezuelanos.
A experiência recente mostra o custo dessa ambiguidade. Em Apure, as operações contra dissidências e os confrontos subsequentes resultaram em militares venezuelanos mortos e deslocamentos civis, evidenciando falhas operacionais e a complexidade de enfrentar atores móveis, conhecedores do terreno. Esse histórico é o lembrete mais duro de que uma suposta “integração” de guerrilhas na defesa nacional é um jogo com fogo — e civis pagam a conta.
Do lado colombiano, o colapso de tréguas e a intensificação de choques entre ELN e facções dissidentes nas áreas fronteiriças, como o Catatumbo, criaram uma tempestade perfeita: corredores sob disputa, comunidades reféns e um barril de pólvora a poucos quilômetros de solo venezuelano. Se Caracas acenar a uma “resposta de guerrilha” em caso de ataque externo, o risco de derramamento transfronteiriço cresce exponencialmente.
O gatilho regional: Essequibo e a janela americana
Nenhuma análise é completa sem o tabuleiro do Essequibo. Em 2025, a crise ganhou contornos perigosos: incursões e respostas militares, com a Guiana acionando apoio internacional e o alinhamento de Washington ficando mais explícito. Para a ditadura venezuelana, esse é um palco ideal para erguer a narrativa de “cercos imperialistas”, reforçando coesão interna. Para os EUA, é uma linha de dissuasão em defesa de um parceiro pequeno, mas estrategicamente relevante — com plataformas de petróleo sensíveis e aliados atentos à sinalização de credibilidade.
Nessa moldura, o anúncio de uma “república em armas” funciona duplamente: como engenharia de narrativa para consumo doméstico, e como recado para fora — uma promessa de anarquização do campo de batalha, caso cruzem a linha vermelha. O cálculo é que a perspectiva de uma resistência pulverizada, com lei e ordem suspensas em áreas-chave, desestimule aventuras militares. É uma aposta arriscada, pois normaliza a militarização do cotidiano e confunde defesa com aparelhamento social.
O viés estrutural: estatismo, crise e poder
No pano de fundo está um país exaurido por estatismo persistente, colapso produtivo e esgarçamento institucional. Sistemas de comando fragmentados, equipamentos obsoletos e orçamentos comprimidos — cenário sobejamente descrito por analistas — empurram a FANB para o expediente mais barato: dispersar, terceirizar, improvisar. O risco estratégico de transformar milícias e coletivos em pilares de segurança é criar impunidade e um ecossistema de violência paraestatal que foge de qualquer escrutínio. Isso choca-se com a defesa liberal-conservadora de liberdade de expressão, freios e contrapesos e o resgate da lei e ordem.
O que está em jogo — e por que importa
Do ponto de vista da direita institucional, três linhas vermelhas se cruzam:
- Soberania vs. regime — A defesa do território não deve virar licença para eternizar um populismo autoritário latino-americano. Quando o governo confunde Estado com partido e militia com povo, é o Estado de Direito que sangra.
- Segurança vs. guerra híbrida — Armar civis e ampliar o papel de paraestatais pode até dissuadir um ataque, mas cobra preço alto da sociedade e dos vizinhos. Potencializa ameaças à democracia na América Latina, acende rotas de tráfico e exporta instabilidade.
- Deterrência vs. escalada — O reforço da cooperação militar dos EUA com a Guiana é legítimo, mas precisa vir com alta diplomacia para conter a escalada. Do contrário, a retórica de cercos imperialistas ganha oxigênio e alimenta a narrativa de “resistência revolucionária” usada pelo chavismo para justificar mais censura e menos pluralismo.
No curto prazo, a pergunta-chave não é se a Venezuela pode “ganhar” uma guerra convencional, mas se conseguirá sustentar o país sem empurrá-lo a uma espiral de violência difusa. O script de “república em armas” e guerra de guerrilha é um convite a mais abusos, a mais ativismo paraestatal e a menos liberdade de expressão. E, como a fronteira com a Colômbia demonstra, o fogo subterrâneo que o aparelhamento acende raramente respeita marcos geográficos.
Se há uma lição desse tabuleiro, é que a lei e a ordem — não o improviso — são o melhor antídoto contra aventuras. A restauração institucional, a proteção de direitos e a cooperação real no combate a grupos armados transfronteiriços são a única estratégia que evita que a Venezuela se torne refém da própria narrativa. Até lá, cada novo gesto para militarizar a vida civil aproxima o país do abismo que diz combater.
Fontes:
The Guardian – Guyana triggers military response after Venezuelan vessel enters its waters.
Al Jazeera – Maduro ready to declare ‘republic in arms’ if US forces attack.
Human Rights Watch – World Report 2025: Venezuela.
Human Rights Watch – Venezuela: Brutal Crackdown Since Elections.
U.S. Department of State – Country Reports on Terrorism 2023: Venezuela.
Voice of America – US, Guyana denounce Venezuelan naval incursion.
Army Recognition – Analysis: How Venezuela’s Plan To Arm 4.5 Million Militia Raises Risk of Regional Clash with US Forces.
Infobae – Mantienen presos a cientos de civiles para silenciar por qué las FARC asesinaron a 16 militares en Apure.
