Em meio a sinais de fadiga de guerra e divisões internas, líderes europeus reafirmam apoio financeiro e militar “sem prazo para acabar” a Kiev, aprofundando um cenário de imperialismo, rearmamento e disputa geopolítica de longa duração.
Em Luanda, capital de Angola, o presidente do Conselho Europeu, António Costa, sintetizou em uma frase a estratégia da União Europeia para a guerra na Ucrânia: o bloco continuará fornecendo apoio diplomático, econômico e militar a Kiev “enquanto for necessário”. O recado foi dado após uma reunião de líderes europeus à margem de uma cúpula com a União Africana, num momento em que avançam negociações de paz e se intensifica a pressão sobre o uso de ativos russos congelados para financiar o esforço de guerra ucraniano.
Costa lembrou que os chefes de Estado e de governo da UE já haviam concordado, no mês passado, em cobrir as necessidades financeiras da Ucrânia pelos próximos dois anos, e prometeu “entregar” esses recursos na cúpula europeia de dezembro. A mensagem é clara: mesmo com divisões internas, desaceleração econômica e disputa política em vários países-membros, a UE quer sinalizar continuidade do fluxo de dinheiro e armas para Kiev, em sintonia com a fórmula repetida há anos em Bruxelas: apoio “por tanto tempo quanto for preciso”.
Compromisso em Luanda: promessa de longo prazo
Ao falar com a imprensa, Costa destacou que o apoio europeu não é apenas simbólico: inclui apoio diplomático, envio de armamentos, pacotes macroeconômicos, ajuda humanitária e suporte à reconstrução. Ele mencionou que o compromisso financeiro de dois anos, fechado na última reunião de cúpula, deverá ser operacionalizado já a partir de 2026, com decisões chave na reunião de dezembro.
Em paralelo, o presidente do Conselho Europeu ressaltou que há “novo impulso” nas conversas de paz, citando uma reunião recente em Genebra com Estados Unidos, Ucrânia e instituições europeias. Segundo Costa, houve “progresso significativo”, embora “questões difíceis” permaneçam sobre a mesa. O discurso combina duas linhas: por um lado, a retórica da busca de uma paz negociada; por outro, o comprometimento de que, enquanto essa paz não vier, a máquina de apoio financeiro e militar permanecerá ligada.
Dinheiro, armas e ativos russos: a engrenagem financeira da guerra
Por trás da promessa de apoio “enquanto for necessário” está um quebra-cabeça complexo de financiamento e produção de armamentos. Bruxelas já consolidou uma estrutura que envolve fundos como o European Peace Facility (Facilidade Europeia para a Paz), mecanismos de compras conjuntas de munições e incentivos à indústria bélica europeia para aumentar a produção de projéteis, sistemas de defesa aérea e veículos blindados destinados à Ucrânia.
Uma das frentes mais sensíveis é o uso dos lucros gerados por ativos russos congelados em território europeu. A Comissão Europeia, sob comando de Ursula von der Leyen, apresentou um plano que inclui um “empréstimo de reparação” financiado por esses recursos, o que permitiria levantar dezenas de bilhões de euros para Kiev, tanto para a frente de batalha quanto para a reconstrução.Bélgica, que concentra grande parte desses ativos na depositária Euroclear, exige, contudo, garantias jurídicas robustas e compartilhamento de riscos entre todos os Estados-membros.
Além disso, decisões recentes aprovaram o uso de receitas extraordinárias desses ativos para financiar diretamente a compra de armas e munições para Kiev, canalizando centenas de milhões de euros para o setor de defesa ucraniano por meio da Facilidade Europeia para a Paz. Trata-se de um passo significativo: pela primeira vez, a UE financia armamentos a partir de recursos derivados de bens estatais de um país considerado agressor.
Em discurso na Conferência de Recuperação da Ucrânia, em Roma, von der Leyen reforçou que a solidariedade europeia é “inquebrantável” e que o bloco seguirá ao lado da Ucrânia “por quanto tempo for necessário”, em todas as frentes – militar, financeira e política. É essa fórmula que Costa, agora, ecoa em solo africano, mostrando que o recado vale tanto para dentro quanto para fora da Europa.
Guerra prolongada, imperialismo e concentrações de poder
Do ponto de vista de uma leitura crítica de esquerda, o compromisso europeu de manter dinheiro e armas fluindo “sem prazo para acabar” revela a profundidade da aposta numa guerra de desgaste que interessa a grandes concentrações de poder – tanto em Moscou quanto nas capitais da OTAN. De um lado, a Rússia conduz uma guerra de agressão que viola frontalmente a soberania nacional e as fronteiras reconhecidas da Ucrânia. De outro, a resposta europeia se articula com uma agenda mais ampla de rearmamento, expansão da indústria bélica e reposicionamento geopolítico do bloco.
O plano “ReArm Europe”, por exemplo, prevê centenas de bilhões de euros em investimentos para ampliar a capacidade militar do continente, com parte dos recursos justificada, explicitamente, pela necessidade de “sustentar a Ucrânia” frente à incerteza do apoio norte-americano. Em nome da defesa da democracia ucraniana, corre-se o risco de normalizar um estado de militarização permanente e de consolidar uma economia política em que a guerra se torna eixo estruturante de políticas industriais e fiscais.
Nesse quadro, o vocabulário da esquerda enxerga a guerra como um capítulo da disputa entre imperialismo ocidental – historicamente marcado por intervenções seletivas e sanções assimétricas – e um bloco anti-imperialista que, na prática, inclui potências autoritárias como a própria Rússia. Nenhum destes polos oferece uma saída emancipada para os povos envolvidos: o que se vê, em ambos os lados, é a prevalência de projetos estatais e corporativos que instrumentalizam vidas civis em nome de agendas de poder.
Fissuras internas: Hungria, fadiga de guerra e custo social
Apesar do tom de unidade nas declarações de Costa, a UE não fala com uma única voz. A Hungria, liderada por Viktor Orbán, tem bloqueado ou atrasado sucessivos pacotes de apoio à Ucrânia, condicionando sua posição a interesses energéticos próprios e a um alinhamento mais brando com Moscou. Em várias cúpulas, Bruxelas tem sido obrigada a operar como “grupo de 26”, isolando Budapeste para seguir adiante com as decisões.
Além disso, depois de quase três anos de conflito em grande escala, a sociedade europeia dá sinais de fadiga de guerra. Reportagens indicam queda na centralidade do tema Ucrânia nos debates públicos, crescimento de forças nacionalistas e questionamentos sobre o peso dos pacotes de ajuda nos orçamentos nacionais, em meio a crises de custo de vida, inflação e cortes em áreas sociais.
Para governos que apostam na continuidade do apoio, a fórmula “enquanto for necessário” precisa ser sustentada politicamente diante de parlamentos fragmentados e opiniões públicas cada vez menos mobilizadas pela guerra. Em alguns países, o discurso pró-Ucrânia se mistura à defesa de aumento generalizado dos gastos militares, o que reforça a crítica de que a resposta europeia corre o risco de consolidar um novo ciclo de guerra contra a natureza e de desmonte de políticas sociais em nome da segurança.
Mídia hegemônica, narrativa oficial e contrainformação
No campo da informação, a repetição da promessa de apoio “por quanto tempo for preciso” encontra eco na mídia hegemônica europeia, que, em geral, reproduz a narrativa oficial de defesa da Ucrânia como linha de frente da ordem liberal internacional. Grandes veículos destacam a dimensão histórica do apoio financeiro e militar, mas dedicam menos espaço a questionar a sustentabilidade de longo prazo desse modelo ou os impactos sociais internos na própria Europa.
Ao mesmo tempo, redes de contrainformação – incluindo mídias alternativas de esquerda e veículos independentes no próprio Leste Europeu – procuram tensionar esse enquadramento, apontando para o risco de transformar a Ucrânia em campo de prova de uma nova corrida armamentista. Para esses atores, “a mídia neoliberal não fala mais sozinha”: há um público crescente disposto a ouvir leituras que denunciem não só a agressão russa, mas também a captura das políticas europeias por complexos militar-industriais e mercados financeiros que lucram com o prolongamento do conflito.
E o lugar do Sul Global?
Não por acaso, o recado de Costa vem de Luanda, durante uma cúpula com a União Africana. Ao reafirmar o compromisso com a Ucrânia em solo africano, a UE tenta mostrar que leva a sério princípios como soberania nacional e integridade territorial – temas sensíveis a países que também carregam o legado do colonialismo e de intervenções externas.
Mas o diálogo com o Sul Global é marcado por ambivalências. Várias capitais africanas, latino-americanas e asiáticas rejeitam a guerra de agressão da Rússia, ao mesmo tempo em que criticam o histórico de imperialismo europeu e norte-americano, e a seletividade com que sanções, embargos e indignações são aplicados. A mensagem de “apoio incondicional” à Ucrânia, portanto, é também uma tentativa de reconstruir a legitimidade de uma Europa que, em muitos conflitos recentes, atuou de forma assimétrica.
Enquanto isso, na linha de frente da guerra, o que chega ao cotidiano ucraniano são os efeitos concretos desse compromisso: mais armamentos, mais financiamento, mais sanções à Rússia – e, ao mesmo tempo, mais risco de que o conflito se arraste por anos, com destruição acumulada e milhões de pessoas deslocadas. Para além da disputa entre blocos, permanece a questão central: quanto tempo a UE está disposta a manter a promessa de “dinheiro e armas enquanto for necessário”, e a que custo social, democrático e ambiental – dentro e fora da Europa?
Fontes
Reuters – EU vows to keep supporting Ukraine with cash and weapons as peace talks continue
Conselho Europeu – European Council conclusions on Ukraine, 23 October 2025
Conselho Europeu – European Council conclusions on Ukraine, enlargement and reforms
Comissão Europeia – EU military support to Ukraine
Euractiv – Reparation loan ‘most effective’ way to support Ukraine, says von der Leyen
Ukrainska Pravda – EU to provide Ukraine with additional €900m for weapons using proceeds from frozen Russian assets
The Guardian – EU chief unveils €800bn plan to ‘rearm’ Europe
AP News – The EU shrugs off Hungary’s opposition to Ukraine support at a summit. What’s Orbán’s next move?
Le Monde – Europe’s support for Ukraine flags after three years of war
