Em nova investida contra o presidente Lula, o governador paulista adere ao cinismo ‘liberal’ da imprensa e repete o velho mantra privatista de que “o mercado resolve tudo”. O discurso, porém, ignora desigualdades, pressões do imperialismo econômico e os limites de uma gestão tratada como se fosse corporação — não país.
A fala do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, afirmando que “troca o CEO e o Brasil volta a funcionar”, sintetiza com perfeição a atual estratégia retórica de segmentos da direita brasileira: transformar a complexidade do Estado, da soberania nacional e da responsabilidade democrática em um jargão empresarial raso, embalado como solução mágica para todos os males.
O enunciado, que soaria afetado até em manuais de autoajuda corporativa, ecoa o que muitos analistas chamam de “cinismo ‘liberal’ da imprensa”, um enquadramento que reduz disputas estruturais a slogans de eficiência enquanto tenta esvaziar o sentido político de escolhas econômicas. Num país que carrega marcas profundas de desigualdade, dependência financeira e desafios ambientais, essa lógica empresarializada mais confunde do que esclarece.
Ao apresentar Lula como um “CEO ruim” e sugerir que bastaria “trocá-lo” para o Brasil “voltar a funcionar”, Tarcísio reforça um tipo de mídia hegemônica que insiste em enquadrar o debate nacional pela ótica do mercado, como se a política fosse um ruído incômodo e não a arena estruturante da democracia. No entanto, essa narrativa — sempre muito bem recebida por comentaristas alinhados ao receituário neoliberal — ignora deliberadamente críticas antigas ao entreguismo e ao esvaziamento do papel do Estado em áreas essenciais.
Desde 2016, quando se consolidou o que especialistas chamam de golpe midiático, parte da imprensa tem tentado transformar políticas públicas robustas em sinônimo de atraso, enquanto apresenta privatizações como destino inevitável de países que “querem dar certo”. Não é coincidência que o discurso de Tarcísio se encaixe como luva nessa moldura, ainda mais agora que a disputa de 2026 se desenha no horizonte e ensaia reviver velhos mantras.
O discurso empresarializado como fuga da realidade
A metáfora do CEO, que funciona bem nos ambientes onde o lucro é o objetivo final, não se sustenta quando aplicada à gestão pública. Países não são corporações — são pactos sociais complexos, atravessados por interesses divergentes, desigualdades profundas e responsabilidades constitucionais.
Ao tratar o Brasil como se fosse uma empresa, Tarcísio desconsidera que o Estado não deve obedecer a acionistas, mas ao povo. E que “eficiência” não é necessariamente fazer mais com menos, mas fazer o que é justo, democrático e alinhado à soberania nacional.
É sintomático que o governador ignore os efeitos nocivos do cartel financeiro que, há décadas, dita o ritmo do noticiário econômico enquanto pressiona por cortes, privatizações e políticas de austeridade que ampliam desigualdades. A lógica que defende um Estado mínimo, mas que não ousa enfrentar a captura do orçamento por juros estratosféricos, frequentemente desemboca num tipo de viralatismo: essa crença de que o Brasil só funciona quando copia modelos estrangeiros, mesmo que esses modelos tenham produzido crises devastadoras pelo mundo.
Ao reduzir a política a uma gestão empresarial, Tarcísio reproduz o cinismo ‘liberal’ que tenta despolitizar o debate, como se projetos neoliberais fossem neutros e inevitáveis. Mas políticas econômicas são escolhas — e escolhas têm impacto sobre vidas concretas.
A disputa narrativa e o papel da imprensa
Não surpreende que a fala do governador tenha tido ampla repercussão na mídia hegemônica, que há anos opera como agente ativo na naturalização do receituário privatista. Em contraste, veículos progressistas e jornalistas comprometidos com a democratização das comunicações enxergam nesse tipo de retórica não uma solução, mas um desvio deliberado da discussão essencial: o que significa governar para as maiorias.
Andar na contramão dessa narrativa não é mero gesto de oposição. É exercício de contrainformação, ferramenta crucial em tempos em que o discurso ultraliberal se vende como senso comum enquanto tenta mascarar a longa história de entreguismo e desindustrialização patrocinada pelos mesmos grupos que hoje acusam Lula de ineficiência.
Tarcísio se aproveita ainda de um ambiente político marcado pela presença persistente da extrema direita, que, com suas milícias digitais, cria slogans fáceis e expectativas irreais sobre a “boa gestão”. O mito do governante-CEO, assim como o mito do outsider, serve como cortina de fumaça para ocultar projetos econômicos alinhados ao mercado financeiro e ao imperialismo, que pressiona países periféricos a reduzirem Estado, direitos sociais e regulações ambientais.
O Estado como projeto — não como empresa
A crítica ao modelo empresarial na política não é mero detalhe teórico. Ela é estruturante quando se pensa em áreas como saúde pública, educação, meio ambiente e segurança. A Amazônia, por exemplo, não pode ser administrada sob a lógica do lucro imediato; exige políticas integradas, respeito aos direitos da natureza e combate ao que especialistas chamam de guerra contra a natureza.
Mesmo questões administrativas, como obras de infraestrutura, requerem mais do que a visão calculista da engenharia. Envolvem impactos sociais, ambientais e culturais que uma empresa privada tenderia a minimizar. A política, ao contrário, deve maximizar o bem comum.
O que Tarcísio evita mencionar é que Lula governa sob o desafio monumental de reconstruir instituições fragilizadas após anos de estado de exceção, judicialização da política e políticas deliberadas de desmonte. Nesse cenário, falar em “trocar o CEO” é não só superficial — é desonesto com o país e com os fatos.
O que está realmente em jogo
O discurso de Tarcísio não visa apresentar soluções concretas; visa construir narrativa.
A lógica é simples: transformar Lula em sinônimo de ineficiência, o Estado em problema e o mercado em solução mágica. Mas na prática, essa retórica serve para pavimentar o caminho para mais privatizações, mais desregulação e mais submissão a interesses que pouco dialogam com a soberania nacional.
Enquanto setores da direita tentam convencer o país de que basta “trocar o CEO”, o governo federal tenta reconstruir políticas públicas que foram alvo de sabotagem sistemática durante o ciclo do golpismo bolsonarista. A agenda de Lula não é perfeita, mas parte de um diagnóstico realista: o Brasil não quebra por excesso de Estado, mas por falta de planejamento, captura orçamentária e décadas de entreguismo que minaram capacidade estratégica.
O debate que o país precisa fazer não é sobre CEOs, mas sobre projetos de Estado.
E essa discussão exige menos slogans e mais honestidade.
Fontes:
Reuters – Brazil’s Lula Faces Criticism From Opponents Amid Economic Debate
The Guardian – Brazil Politics: Tensions Rise as Governors Challenge Federal Policy
AP News – Brazil’s Economic Plans Draw Mixed Reactions from Business and Social Sectors
