Queda da capital de Darfur nas mãos das Forças de Apoio Rápido empurra famílias para Tawila e outros abrigos sem água, comida ou atendimento médico; agências humanitárias relatam feridos graves, crianças desnutridas e desaparecidos — e pedem cessar-fogo, corredores humanitários e responsabilização internacional.
Milhares de pessoas estão fugindo de El-Fasher, capital de Darfur do Norte, desde a tomada da cidade pelas Forças de Apoio Rápido (RSF), com relatos de execuções, estupros, sequestros e ataques a instalações de saúde. O fluxo de deslocados corre sobretudo para Tawila, a cerca de 70 km, onde os campos já estavam lotados antes da ofensiva mais recente e agora operam muito além do limite, com falta aguda de abrigo, água potável e atendimento médico básico. Organizações como Médicos Sem Fronteiras e a coordenação de deslocados no Sudão relatam um quadro “catastrófico”, com feridos que chegam em número elevado — ao menos 1.500 atendidos em Tawila — e crianças com desnutrição severa, sinal de fome generalizada.
Os números desenham a escala do desastre: após a captura de El-Fasher pelas RSF, em 26 de outubro de 2025, mais de 80 mil pessoas fugiram da área em poucos dias, segundo balanços citados por veículos internacionais. Porém, uma fração relativamente pequena conseguiu alcançar Tawila — menos de 10 mil em alguns recortes de tempo — dando origem a uma pergunta perturbadora repetida por equipes de campo: “onde estão as pessoas de El-Fasher?”. Há dezenas de milhares de desaparecidos nas rotas de fuga, entre crianças desacompanhadas, idosos e feridos que não chegaram a nenhum abrigo.
A crise aguda em Darfur insere-se numa guerra civil que devasta o Sudão desde abril de 2023, quando a luta pelo poder entre o Exército (SAF) e as RSF mergulhou o país numa combinação letal de guerra urbana, cercos prolongados e ataques contra civis. Estimativas variam, mas a imprensa e agências internacionais trabalham com um piso de dezenas de milhares de mortos e mais de 12 milhões de deslocados, internos e transfronteiriços — a maior crise de deslocamento do mundo. El-Fasher resistiu por mais de um ano de cerco até cair sob ataques intensificados das RSF, episódio que, segundo analistas, marca ponto de inflexão no conflito e abre espaço para atrocidades em massa.
Relatos de campo descrevem cenas de horror na captura e no “rasteio” subsequente: execuções sumárias, violência sexual, e massacres em locais de proteção de civis, como hospitais. Um dos episódios mais chocantes foi o ataque ao Hospital Saudita de Maternidade — cuja história de bombardeios e invasões ao longo de 2025 simboliza a erosão de qualquer linha vermelha humanitária no teatro de Darfur. Esses crimes, atribuídos amplamente às RSF e milícias aliadas, se somam a ataques documentados contra os campos de deslocados de Zamzam e Abu Shouk, já alvo de artilharia e incêndios no passado recente.
Com a queda de El-Fasher, o “efeito dominó” humanitário se acelerou. Tawila, que acolhia centenas de milhares de pessoas — em um contexto de cólera e outras doenças —, recebeu novas levas de deslocados em condições devastadoras. Crianças desidratadas, feridos sem curativos e famílias inteiras separadas na fuga chegam a pé ou em caminhonetes clandestinas, muitas vezes sem qualquer bem além da roupa do corpo. A Norwegian Refugee Council (NRC) alerta que parte dos recém-chegados está em “condição perturbadora”, tão enfraquecida que nem todos sobrevivem mesmo com atendimento. Ao mesmo tempo, água, sabão e abrigo tornaram-se artigos de luxo no campo.
O quadro clínico não surpreende quem acompanha o cerco prolongado: meses de bloqueio e destruição de infraestrutura produzem fome. Antes mesmo da queda, equipes médicas reportavam altas taxas de desnutrição entre crianças que chegavam a Tawila; agora, com o fluxo ampliado e a subfinanciada resposta humanitária, o risco de mortalidade infantil cresce. A IOM/OIM já havia advertido que a população de El-Fasher vinha diminuindo de forma dramática em 2025, efeito direto do cerco das RSF e do colapso de serviços. Hoje, a pergunta central é como alimentar, abrigar e tratar dezenas de milhares de pessoas sem recursos, rotas seguras ou logística.
A rota de fuga em si virou uma armadilha: sem corredores humanitários, famílias tentam trilhas mais longas pelo deserto para evitar postos das milícias — e morrem no caminho por sede, ferimentos ou ataques. Em depoimentos recolhidos por equipes humanitárias, “todo mundo perdeu alguém”; crianças de 3 a 5 anos chegam desacompanhadas, incapazes de dizer o nome dos pais. Essa geometria da violência — que inclui sequestros com pedido de resgate — se alimenta da impunidade e do financiamento opaco de grupos armados, num país exaurido por golpes e pela destruição do tecido estatal.
Do lado internacional, a resposta ainda é insuficiente. O Conselho de Direitos Humanos da ONU discute sessão de emergência, enquanto mediadores tentam costurar cessar-fogo. Há apelos por investigações do Tribunal Penal Internacional e por sanções direcionadas a indivíduos e redes que alimentam a máquina de guerra — inclusive vozes que pedem interrupção de fluxos de armas para as RSF. No entanto, a ajuda humanitária está cronicamente subfinanciada (com planos de resposta financiados em apenas cerca de um quarto do necessário, segundo comunicados recentes), e a insegurança impede o acesso. Sem pressão política e financiamento, Tawila e outros campos ficam reduzidos a uma triagem interminável de sofrimento.
Para quem lê de uma perspectiva progressista, a história não é apenas de “dois lados em guerra”, mas de civis sob fogo cruzado e de estruturas de impunidade que permitem que massacres se repitam — muitas vezes com viés étnico em Darfur. A prioridade é proteger pessoas, não reputações de generais. Isso significa cobrar cessar-fogo verificável, corredores humanitários sob supervisão internacional, proteção de instalações de saúde e responsabilização penal por crimes contra a humanidade. Também implica rechaçar narrativas que tratam deslocados como “colaterais” e reconhecer que fome, sede e doença são armas quando se bloqueia deliberadamente comida, água e remédios.
Há uma dimensão regional que não pode ser subestimada. Ao empurrar ondas de refugiados para o Chade e outros vizinhos, a guerra desestabiliza fronteiras, pressiona orçamentos públicos frágeis e multiplica riscos de xenofobia e exploração. A cada campo superlotado, mulheres e crianças tornam-se mais vulneráveis a violência sexual e tráfico, enquanto jovens sem perspectivas são cooptados por milícias. Sem um pacote robusto de proteção, educação e renda para deslocados, a guerra se reproduz na próxima geração.
A comunidade internacional pode e deve fazer mais — e rápido. Primeiro, financiar integralmente o plano humanitário para o Sudão, ampliando água, saneamento, abrigo e saúde em Tawila e em toda Darfur. Segundo, parar o fluxo de armas e sancionar quem o promove — empresas, intermediários e Estados —, porque não existe “neutralidade” no lucro com a desgraça de civis. Terceiro, investir em responsabilização: se chefes e combatentes acreditam que não haverá consequências, massacres continuarão. Por fim, escutar as comunidades locais, redes de mulheres e lideranças civis — são elas que sustentam a vida quando o Estado desaba.
No campo da informação, o massacre em El-Fasher e a superlotação em Tawila sofrem ainda com apagões de internet, saques a estoques humanitários e medo de represálias contra quem denuncia. Jornalistas e organizações locais, quando conseguem publicar, falam de covas improvisadas e de buscas por desaparecidos que se arrastam por dias. O jornalismo independente e a documentação por satélite cumprem papel central para quebrar o silêncio — e a pressão pública, inclusive no Sul Global, pode ajudar a destravar decisões de chancelerias e bancos de desenvolvimento.
Nada disso substitui a paz. Mas paz não virá do nada: precisa de mediação séria, garantias e custo real para quem comete crimes de guerra. Até lá, cada litro de água, cada kit de higiene, cada tenda e cada profissional de saúde financiado marcam a diferença entre vida e morte em Tawila e nos demais campos de Darfur do Norte. É esse o ponto de partida ético: defender a vida sem ambiguidade.
Enquanto a política internacional discute fórmulas, mães carregam filhos desidratados na poeira de Tawila e idosos esperam por um atendimento que muitas vezes não chega. O massacre e o deslocamento em massa após a queda de El-Fasher não são “tragédias inevitáveis”: são o resultado de escolhas políticas — internas e externas — que podem e devem ser revertidas. Um mundo que se pretenda democrático e comprometido com direitos humanos precisa olhar para Darfur agora, antes que mais uma geração seja enterrada no silêncio de um campo superlotado.
Fontes
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G1 – Guerra no Sudão: milhares fogem para campos superlotados após grupo paramilitar promover massacre.
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Associated Press – Thousands flee to overcrowded camps after Sudan’s paramilitary captures el-Fasher.
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Reuters – People fleeing al-Fashir in Sudan are in a ‘disturbing’ condition, aid group says.
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TIME – ‘Everybody Is Missing Family Members’: Aid Worker’s Account From Sudan as Thousands Unaccounted For After Fleeing El Fasher.
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AP News – Fighting in Sudan’s besieged city triples number of displaced people in a nearby town: UN official.
