A tomada de El-Fasher pelas Forças de Apoio Rápido (RSF) desencadeou uma fuga em massa rumo a Tawila e outros abrigos já colapsados. Relatos apontam execuções, violência sexual e desaparecidos; ONU fala em guerra “fora de controle”, e a Promotoria do TPI recolhe provas de possíveis crimes contra a humanidade.
A queda de El-Fasher, capital de Darfur do Norte, para o grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (RSF) no fim de outubro abriu um novo e sombrio capítulo na guerra do Sudão. Em poucos dias, dezenas de milhares de pessoas deixaram a cidade sob relatos de massacres, execuções sumárias e estupros, buscando refúgio em Tawila, a cerca de 60–70 km dali, e em outras localidades. Os campos que já abrigavam centenas de milhares de deslocados rapidamente se tornaram superlotados, com falta de abrigo, água, alimentos e atendimento médico. Reuters+2The United Nations Office at Geneva+2
No terreno, organizações humanitárias descrevem chegadas em ondas, com feridos e crianças em estado grave de desnutrição. Médicos Sem Fronteiras (MSF) relata tratar centenas de traumas e um volume inquietante de menores desacompanhados, enquanto o hospital de Tawila trabalha no limite. Embora a cifra exata varie conforme a fonte e a data, estimativas recentes falam em mais de 80 mil pessoas em fuga desde a queda da cidade, enquanto dezenas de milhares permanecem presas ou desaparecidas — incapazes de alcançar corredores minimamente seguros. Reuters+2AP News+2
O que aconteceu em El-Fasher
El-Fasher suportou um cerco de 18 meses, com bombardeios, ataques de drones e um bloqueio que agravou a fome antes do assalto final. Quando a RSF consolidou o controle, surgiram relatos consistentes de assassinatos em massa, inclusive dentro de unidades de saúde — como o episódio do Hospital Saudita — e em bairros onde se abrigavam civis. As RSF negam atrocidades sistemáticas, mas testemunhos, imagens de satélite e denúncias de agências sustentam um padrão de violência. Reuters+1
O impacto humanitário foi imediato. Colunas de deslocados deixaram El-Fasher pelas estradas e trilhas do deserto, muitas vezes expostas a saques e abusos. Alguns conseguiram alcançar Tawila, onde se concentram acampamentos de deslocados e uma estrutura mínima de saúde; outros ficaram espalhados por rotas alternativas, sem meios de transporte, perdendo contato com familiares no trajeto. Tragédias no caminho — inclusive mortes por desidratação ou ferimentos — foram registradas por equipes de socorro. TIME
Campos lotados e ajuda no limite
Tawila já recebia, antes da queda de El-Fasher, centenas de milhares de deslocados. Autoridades da ONU e trabalhadores humanitários estimam que a área abriga por volta de 650 mil pessoas, tornando virtualmente impossível dar vazão a novos fluxos sem expansão de abrigos, ampliação do acesso humanitário e reforço de financiamento. As organizações relatam escassez de tendas, água potável e suprimentos médicos, além de surtos de doenças associadas à superlotação e ao saneamento precário — risco que aumenta com a chuva e a dificuldade de controle epidemiológico (cólera é uma preocupação recorrente). The United Nations Office at Geneva+1
O Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR) e agências parceiras descrevem um “fluxo significativo” saindo de El-Fasher rumo a Tawila; ainda assim, apenas uma parcela dos que fogem consegue chegar. A logística é difícil, os custos são altos e postos de controle armados impõem barreiras. Sem uma trégua verificável e corredores humanitários funcionais, a distância curta entre as cidades se transforma em travessia perigosa. The United Nations Office at Geneva
“Fora de controle”: alerta da ONU e investigação do TPI
Diante do agravamento do quadro, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou que a guerra está “saindo do controle” e defendeu um cessar-fogo imediato. O apelo ecoa o de agências humanitárias, que pedem também embargo de armas e acesso irrestrito para prestar assistência. Paralelamente, a Promotoria do Tribunal Penal Internacional (TPI) anunciou que coleta provas sobre supostos crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos em El-Fasher — incluindo execuções, violência sexual e ataques a civis. AP News+1
Juridicamente, a atuação do TPI tem precedentes em Darfur e busca evitar impunidade diante da repetição de padrões de violência. Tecnicamente, porém, investigar em meio ao conflito é um desafio: acesso limitado, provas frágeis e risco de revitimização. Ainda assim, documentar relatos e preservar evidências desde já pode ser determinante para futuras responsabilizações. icc-cpi.int
O tamanho da crise
A despeito de divergências entre estimativas, o consenso é que se trata de uma das piores crises humanitárias atuais. As migrações internas e transfronteiriças se acumulam desde 2023; há menções a milhões de deslocados no conjunto do país e fome (Fase 5 do IPC) já detectada em áreas de conflito — incluindo a própria El-Fasher antes e depois da tomada. A queda da cidade foi um marco simbólico e operacional: último grande reduto do Exército em Darfur, seu colapso consolidou o domínio urbano da RSF na região e desencadeou novos fluxos. The Guardian
Dados recentes apontam dezenas de milhares de pessoas em movimento após a ofensiva. Há relatórios com 36 mil deslocados em poucos dias, enquanto outras fontes elevam o número para mais de 80 mil, com apenas frações chegando a Tawila. Essa dispersão dificulta o planejamento de socorro: não se sabe, ao certo, onde está parte significativa dos que fugiram, quantos ficaram encurralados e quantos seguiram para rotas ainda mais longas, rumo a outros estados ou países vizinhos. The Guardian+2AP News+2
Por que El-Fasher importa
El-Fasher é nó logístico e político. Durante o cerco, tornou-se ponto de acolhimento de quem já fugia de outras áreas, abrigando mercados informais, postos de saúde improvisados e redes comunitárias que garantiram sobrevivência em condições extremas. Sua queda desorganizou esse frágil ecossistema, empurrando ainda mais gente para caminhos sem infraestrutura e deixando vazios que o Estado não consegue preencher. O vácuo de segurança e governança aumenta a vulnerabilidade a saques e abusos. Reuters
No plano militar, a captura consolida ganhos da RSF em Darfur e amplia sua capacidade de barganha. Para a população civil, no entanto, o resultado é uma agravação das ameaças imediatas: fome, doenças, violência e deslocamentos forçados. A distância curta até Tawila esconde barreiras de acesso e segurança que, na prática, impedem que a maioria chegue a abrigo minimamente digno. The United Nations Office at Geneva
O que dizem as fontes em campo
A Associated Press registrou, a partir do Cairo, relatos de que apenas alguns milhares conseguiram alcançar o campo mais próximo, enquanto muitos outros permanecem presos em El-Fasher ou nas redondezas. ONGs falam em superlotação e escassez — de tendas, alimentos e medicamentos —, além de ferimentos graves entre os recém-chegados e desnutrição aguda em crianças. Sobreviventes descrevem abusos no caminho e uma cidade assolada por ataques, inclusive a instalações de saúde. AP News
A Reuters, por sua vez, ouviu sobreviventes e equipes de MSF em Tawila: cerca de 10 mil teriam conseguido chegar, muitos malnutridos, com quase mil casos de trauma tratados em curto intervalo. O quadro inclui risco de surto de cólera e falta de saneamento adequado para o novo contingente. A agência também destaca que dezenas de milhares podem permanecer encurralados em El-Fasher, sem vias seguras de saída. Reuters
O Alto Comissariado da ONU em Genebra e o ACNUR confirmam o êxodo e reforçam que Tawila já abrigava uma população massiva de deslocados antes da queda de El-Fasher, transformando o novo fluxo em um choque adicional sobre infraestruturas exauridas. The United Nations Office at Geneva
E a diplomacia?
Houve sinais de mediação e propostas de cessar-fogo humanitário, mas a experiência recente na guerra do Sudão indica que trégua sem verificação e mecanismos de responsabilização tende a ruir. Enquanto diplomatas tentam reabrir canais, o acesso humanitário segue restrito, e a violência se espalha para outras regiões, como Kordofan, com relatos de ataques de drones contra civis. O ponto cego é sempre o mesmo: sem garantias de segurança e pressão efetiva por respeito às leis de guerra, civis seguem pagando a conta. AP News
O que observar a seguir
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Acesso humanitário em Tawila e entorno. Se corredores e janelas de segurança forem viabilizados, a taxa de chegada pode aumentar, reduzindo o contingente de desaparecidos e permitindo triagem melhor. Sem isso, o déficit de assistência tende a se aprofundar. The United Nations Office at Geneva
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Evolução das investigações do TPI. A coleta de evidências e a preservação de provas — incluindo testemunhos e registros médicos — é crucial para responsabilização futura. Um sinal visível de avanço pode ter efeito dissuasório e elevar o custo internacional da repetição de crimes. icc-cpi.int
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Fluxos secundários e fronteiras. Com Tawila saturada, parte dos deslocados pode seguir viagem a outras cidades ou cruzar fronteiras, aumentando a pressão sobre Chade, Etiópia e Sudão do Sul — onde a capacidade de acolhimento já está no limite. TIME
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Sinais de responsabilização regional. Além do TPI, governos e blocos podem ampliar sanções e embargos específicos se atrocidades forem confirmadas — movimento que, no passado, trouxe alguma pressão às dinâmicas do conflito. Reuters
Um olhar de centro
Um olhar centrado nos fatos indica três pontos. Primeiro, há corroboração múltipla — por Reuters, AP, The Guardian e agências da ONU — de fuga massiva e superlotação em Tawila, associadas a violências graves na tomada de El-Fasher. Segundo, a aritimética humanitária não fecha: dinheiro, acesso e segurança são insuficientes para a demanda crescente; sem trégua verificável, toda resposta é reativa. Terceiro, investigações e pressão internacional são necessárias, mas insuficientes se não houver vias seguras no terreno. Nesse contexto, a prioridade pragmática é proteger civis: corredores, ampliação de capacidade nos campos, água e saúde e mecanismos mínimos de prestação de contas. Isso não substitui a solução política, mas evita perdas irreparáveis enquanto ela não chega. Reuters+2AP News+2
Ao final, a história que chega de El-Fasher e Tawila é menos sobre linhas de frente e mais sobre vidas em suspenso. Entre massacres documentados, campos abarrotados e desaparecidos, o Sudão revela a face crua de um conflito que, sem pressão coordenada e resposta humanitária robusta, continuará transformando cidades em rotas de fuga e hospitais em alvos. A civilidade se mede, aqui, por quão rápido o mundo é capaz de abrir caminho para água, comida, segurança e justiça — antes que o deserto feche todas as saídas. AP News
Fontes
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Reuters – Injured, malnourished survivors from Sudan’s al-Fashir recount escape. Reuters
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AP News – Thousands flee to overcrowded camps after Sudan’s paramilitary captures el-Fasher. AP News
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The Guardian – At least 36,000 Sudanese have fled since fall of El Fasher to RSF, says UN agency. The Guardian
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AFP – Thousands feared ‘in grave danger’ in Sudan’s al-Fashir after fall to RSF. Al Arabiya English
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UN Geneva – ‘Horrific’ violence as thousands flee Sudan’s El Fasher. The United Nations Office at Geneva
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ICC – Statement of the ICC Office of the Prosecutor on the situation in El-Fasher, North Darfur. icc-cpi.int
