Com placar de 6 a 1, Supremo reafirma que a nomeação de parentes para cargos políticos de alto escalão não configura nepotismo, desde que haja “qualificação técnica” — decisão que alimenta críticas sobre judicialização da política, concentrações de poder e o papel da mídia hegemônica na normalização do patrimonialismo.
Na sessão de 23 de outubro, o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria de 6 a 1 para manter o entendimento de que a nomeação de parentes para cargos políticos de alto escalão — como ministérios, secretarias estaduais e municipais — não configura nepotismo, desde que os indicados tenham “qualificação técnica” e que se trate de cargo de natureza política.
O julgamento, iniciado a partir de um recurso extraordinário com repercussão geral envolvendo uma lei do município de Tupã (SP), que autoriza a nomeação de parentes para secretarias municipais, deve fixar tese vinculante para todo o país. Embora a análise tenha sido suspensa para ajustes no voto do relator, ministro Luiz Fux, o placar já consolidado sinaliza a manutenção da exceção aberta pelo próprio Supremo à sua Súmula Vinculante 13, que veda o nepotismo na administração pública.
Na prática, a decisão mantém aberta a possibilidade de presidentes, governadores e prefeitos nomearem filhos, cônjuges, irmãos e outros parentes até o terceiro grau para cargos como ministros de Estado e secretários, desde que seja possível demonstrar alguma compatibilidade de currículo com a função.
Como votou o STF e o que está em jogo
O relator Luiz Fux foi acompanhado por Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli, formando maioria pela manutenção da jurisprudência que afasta a aplicação da Súmula 13 aos cargos de natureza política.
Na visão desses ministros, a vedação ao nepotismo deve atingir sobretudo cargos administrativos e comissionados tradicionais, em que não há componente político relevante. Já funções como ministérios e secretarias de governo seriam de “livre escolha” do chefe do Executivo, inseridas na lógica de confiança política. Alguns votos acrescentam a exigência de “qualificação técnica mínima”, tentativa de construir um filtro que diferencie o mero favorecimento familiar de indicações razoavelmente defensáveis.
Na contramão, o ministro Flávio Dino foi o único a votar pela revisão da jurisprudência, defendendo que a legislação que tipificou o nepotismo como improbidade administrativa não excepciona cargos políticos – e que, portanto, o Supremo deveria alinhar sua posição ao texto legal, proibindo a nomeação de parentes em qualquer esfera.
Dino destacou que, num país marcado pelo patrimonialismo e pela confusão entre público e privado, manter a brecha para parentes em altos cargos é reforçar uma cultura política de castas familiares e heranças de poder, ainda que embalada em discursos de confiança pessoal.
Da Súmula 13 à maioria de 6 a 1: uma exceção que virou regra
A decisão agora reafirmada pelo STF não surge do nada. Em 2008, a Corte aprovou a Súmula Vinculante 13, que estabeleceu a proibição de contratar parentes em cargos comissionados, funções de confiança e contratações cruzadas entre órgãos. Porém, ao longo dos anos, o próprio tribunal passou a construir uma exceção: cargos de natureza política – como ministérios e secretarias – não seriam alcançados pela súmula.
Em 2024, por 7 a 4, o STF já havia firmado entendimento de que “nepotismo não vale para cargos políticos” em um julgamento anterior, consolidando a distinção entre cargos políticos e demais funções públicas. O julgamento atual, ao tratar do tema 1.000 de repercussão geral, tem justamente o papel de dar contornos definitivos a essa jurisprudência e vinculá-la a todo o Judiciário.
Para críticos da decisão, o que se vê é a transformação de uma exceção em regra: uma súmula que nasceu como arma contra o clientelismo e o compadrio vai, pouco a pouco, sendo esvaziada pelo próprio tribunal que a criou. E isso ocorre num país em que a defesa da meritocracia convive, há décadas, com redes densas de parentescos em gabinetes, autarquias e estatais.
“Judicialização da política” ou “judicialização do patrimonialismo”?
Em boa parte da cobertura sobre o tema, o STF aparece como árbitro técnico, apenas “interpretando” os limites do nepotismo. Mas, à luz do vocabulário crítico de esquerda, não é exagero falar em judicialização da política e em um certo estado de exceção permanente, no qual decisões de 11 pessoas redefinem, a cada ciclo, as regras do jogo democrático.
A ironia é que, desta vez, a crítica não vem apenas de quem sempre denunciou a atuação do Supremo como contrapeso ao golpismo bolsonarista. Se em outros momentos a Corte foi vista como barreira às “milícias digitais” e ao autoritarismo de extrema direita, agora parte do campo progressista enxerga a mesma instituição chancelando práticas que alimentam o patrimonialismo e corroem a confiança nas instituições.
Há quem fale na consolidação de uma espécie de “estado de exceção seletivo”: duro com movimentos sociais, complacente com práticas tradicionais de poder; firme ao punir golpistas de baixa e alta patente, mas tolerante com a normalização do nepotismo político sob o argumento da “livre escolha” do governante.
Mídia, opinião pública e o “cinismo liberal”
A forma como a decisão foi enquadrada pela mídia hegemônica ajuda a entender por que o tema ainda não ganhou a centralidade que talvez merecesse. Em muitos veículos, o tom foi de “explicação didática”: matérias destacando que “nepotismo continua proibido para cargos administrativos”, que “apenas funções políticas foram excepcionadas” e que “há exigência de qualificação técnica”.
É a encarnação do cinismo ‘liberal’ da imprensa: ao invés de problematizar o efeito político de abrir espaço para familiares em cargos estratégicos, o noticiário tende a naturalizar a decisão, descrevendo-a como uma mera tecnicalidade jurídica – algo distante do cotidiano da população.
Enquanto isso, veículos independentes e jornalistas alinhados ao campo progressista acionam outras chaves: apontam que, num país esgarçado por desigualdades, permitir que o círculo familiar de prefeitos, governadores e presidentes ocupe secretarias e ministérios é aprofundar concentrações de poder já vistas como ilegítimas. Falam em risco de “clãs” políticos familiares controlarem orçamentos bilionários, sem que isso passe pelo escrutínio direto das urnas.
É nesse cenário que ganha peso a ideia de que Contrainformação é poder: ao tensionar o discurso oficial e o enquadramento da mídia neoliberal, mídias alternativas, coletivos de comunicação e jornalistas independentes buscam mostrar que o debate sobre nepotismo não é um detalhe jurídico, mas uma disputa sobre que tipo de república o Brasil deseja ser.
Nepotismo político e “luta pela democracia”
Do ponto de vista da luta pela democracia, o veredito do STF lança um dilema para o campo progressista. Por um lado, a mesma Corte que autorizou a exceção ao nepotismo foi, nos últimos anos, protagonista no enfrentamento ao golpismo e à extrema direita, especialmente na contenção do bolsonarismo.
Por outro, ao permitir que parentes de autoridades executivas ocupem cargos centrais, mesmo com requisitos formais de qualificação, o Supremo reforça um traço histórico do sistema político brasileiro: o entrelaçamento entre família, Estado e poder econômico. Em vez de ser vetor de democratização da justiça, a decisão é vista por muitos analistas como um recuo na agenda de combate ao patrimonialismo.
Essa contradição ajuda a explicar a ambivalência de parte da esquerda: defender o STF quando resiste a aventuras autoritárias, criticá-lo quando contribui para perpetuar privilégios. Longe de ser incoerência, essa postura parte da compreensão de que instituições não são monolíticas – e que a defesa da democracia exige tanto enfrentar golpistas quanto questionar rulings que ampliam a distância entre cidadãos comuns e as cúpulas do poder.
“Qualificação técnica” resolve?
Um dos pontos centrais da maioria é a exigência de “qualificação técnica” mínima como contrapeso à suspeita de favorecimento. Na prática, isso significaria que um filho de prefeito poderia ser secretário de saúde se tivesse formação na área, experiência em gestão ou trajetória compatível.
Críticos lembram, porém, que critérios formais podem ser facilmente driblados: diplomas, cargos anteriores em gabinetes e funções de confiança costumam ser usados como prova de “experiência”, mesmo quando a atuação concreta é pouco transparente. E, mais importante, a própria ideia de confiança política tende a se sobrepor à técnica em contextos de coalizão, disputa interna e barganhas partidárias.
Além disso, se o problema fosse apenas “falta de qualificação”, bastaria reforçar exigências objetivas para qualquer nomeação, independentemente de laços de sangue. Ao manter o parentesco como elemento neutro e apostar em um filtro supostamente técnico, a decisão corre o risco de legitimar exatamente aquilo que diz combater.
O que o STF está dizendo ao Brasil
O recado implícito da maioria do STF pode ser lido em duas camadas. Na superfície, diz-se ao país que há uma diferença entre favorecer parentes em cargos burocráticos e escolhê-los para posições políticas estratégicas. Na camada mais profunda, transmite-se a ideia de que o sistema político brasileiro pode continuar operando, sem grandes sobressaltos, com forte presença de famílias, clãs e dinastias no topo da máquina pública.
Para quem reivindica uma agenda de democratização do Estado – com mais transparência, controle social e redução das concentrações de poder – a mensagem é preocupante. Ela sugere que, em temas que afetam o coração do patrimonialismo brasileiro, o tribunal prefere preservar zonas cinzentas em nome da autonomia dos governantes.
Se o julgamento confirma ou não a tese de que vivemos num estado de exceção permanente, é debate em aberto. Mas é inegável que, mais uma vez, o Supremo se coloca no centro da disputa sobre os limites entre público e privado – e que a forma como a sociedade reage a esse tipo de decisão dirá muito sobre a qualidade da nossa democracia nas próximas décadas.
Fontes
Agência Brasil – STF tem maioria para manter nomeação de parentes para cargos políticos
Agência Brasil – STF adia final de julgamento sobre nomear parentes para cargo político
Correio Braziliense – STF forma maioria para manter permissão de nomeação de parentes para cargos políticos
Migalhas – STF: Maioria nega nepotismo e permite parentes em cargos políticos
InfoMoney – Supremo define que nomeação de parentes em cargos políticos não configura nepotismo
O Tempo – STF forma maioria para liberar nomeação de parentes em cargos políticos, como secretários e ministros
