Pressionados por críticas ao seu próprio imperialismo, EUA e potências europeias fazem questão de dizer em público que qualquer acordo de paz “precisa respeitar integralmente a soberania da Ucrânia” — enquanto mantêm seus interesses estratégicos em jogo.
Nas últimas rodadas de negociações sobre a guerra na Ucrânia, em Genebra e em reuniões do G7, um recado passou a ser repetido em coro por Washington, capitais europeias e instituições multilaterais: qualquer acordo de paz com a Rússia “precisa respeitar integralmente a soberania e a integridade territorial da Ucrânia”.
A frase, em tom de princípio não negociável, aparece em comunicados do G7, em falas de chefes de governo europeus e em declarações do próprio governo dos Estados Unidos. Ela responde não apenas à ofensiva russa, mas também às críticas crescentes de que Washington estaria disposto a empurrar Kiev para uma paz “a qualquer custo”, mesmo à custa de concessões territoriais e limitações à sua política externa.
O que está em jogo no “recado público” sobre soberania
No curto prazo, o recado tem um alvo imediato: Moscou. Ao afirmar que a soberania nacional ucraniana é cláusula pétrea, EUA e aliados tentam sinalizar que não aceitarão um acordo que consolide, de fato, a ocupação de territórios ucranianos pela Rússia ou que legitime alterações de fronteira obtidas pela força.
Mas o recado também é dirigido a outro público: governos do chamado Sul Global, onde cresce a percepção de que a guerra se tornou mais um capítulo do embate entre imperialismo ocidental e um eixo Rússia–China que se apresenta como bloco anti-imperialista. Em vários desses países, há desconfiança de que, por trás dos discursos sobre democracia e direito internacional, as grandes potências operam com dois pesos e duas medidas.
Ao enfatizar, nas últimas semanas, que qualquer plano de paz deve ser “baseado na Carta da ONU” e no “pleno respeito à soberania e à integridade territorial da Ucrânia”, documentos do G7 e de aliados europeus tentam resgatar esse terreno normativo. O recado é: não se trata apenas de um jogo de influência entre blocos, mas de uma violação frontal às regras mínimas do sistema internacional.
Bastidores de um plano polêmico
Esse endurecimento de tom não surgiu no vazio. Segundo reportagens da imprensa britânica, um rascunho inicial de plano de paz articulado com forte influência de Washington chegou a prever que a Ucrânia deveria ceder territórios hoje ocupados pela Rússia, abrir mão de sua futura adesão à OTAN e aceitar algum tipo de anistia para crimes de guerra russos.
A reação europeia foi dura. Governos como o da Alemanha e de aliados do leste europeu viram na proposta um risco de “paz de capitulação”, que deixaria a Ucrânia vulnerável e enviaria ao mundo um sinal perigoso: fronteiras podem ser redesenhadas pela força, desde que se chegue depois a um arranjo diplomático “aceitável”. Sob pressão, o texto foi refeito, e negociadores norte-americanos passaram a insistir, publicamente, na necessidade de “preservar a soberania da Ucrânia”.
Essa reviravolta revela que a fórmula “qualquer acordo precisa respeitar integralmente a soberania da Ucrânia” não é apenas princípio abstrato, mas resposta a uma disputa interna entre aliados sobre até onde ir em concessões a Moscou para encerrar o conflito.
Soberania entre a norma e a realpolitik
Do ponto de vista do direito internacional, a posição parece cristalina: a Carta da ONU proíbe o uso da força para alterar fronteiras e protege a integridade territorial dos Estados. Na prática, contudo, a história recente é marcada por exceções, ambiguidades e intervenções seletivas – muitas delas protagonizadas pelos próprios EUA e europeus em nome de “intervenções humanitárias” ou “guerras preventivas”.
É aí que o discurso atual encontra seu limite. Ao denunciar a agressão russa e reivindicar a defesa da soberania nacional ucraniana, o Ocidente tenta se reposicionar como guardião da ordem internacional – enquanto muitas sociedades recordam o histórico de invasões, sanções unilaterais e mudanças de regime apoiadas por Washington e aliados. Para analistas críticos, há um claro esforço de reconstrução da legitimidade perdida após décadas de imperialismo seletivo.
Isso não relativiza a responsabilidade russa: a invasão da Ucrânia é, por definição, violação de soberania. Mas coloca sob escrutínio a narrativa de que se está diante de um embate simples entre “defensores do direito internacional” e “violadores da ordem”. Para parte da esquerda internacional, o eixo central do conflito é a disputa entre concentrações de poder militares e econômicas – OTAN de um lado, Kremlin do outro – enquanto a população ucraniana é sacrificada num tabuleiro que vai muito além de Kiev e Moscou.
O olhar do Sul Global e as críticas ao duplo padrão
Em fóruns multilaterais e declarações oficiais, países do Sul Global vêm reiterando o princípio de respeito à soberania nacional e condenando o uso da força pela Rússia. Ao mesmo tempo, cobram coerência de EUA e Europa em outros cenários, como a Palestina, onde as mesmas capitais que defendem a integridade territorial da Ucrânia hesitam em usar a mesma linguagem diante da ocupação de territórios palestinos.
Essa percepção de duplo padrão alimenta leituras de que a guerra na Ucrânia é instrumentalizada pela mídia hegemônica e pelos governos ocidentais para reafirmar sua centralidade geopolítica, enquanto conflitos no Oriente Médio, na África ou na América Latina recebem menos cobertura, menos sanções e menos mobilização. É nesse contexto que ganha força o discurso de que “a mídia neoliberal não fala mais sozinha”, abrindo espaço a canais de contrainformação que tentam enquadrar o conflito em um quadro mais amplo de disputas sistêmicas.
Ao insistirem no respeito à soberania ucraniana, EUA e aliados sabem que também falam para esses públicos. A mensagem busca mostrar que, ao menos neste caso, o bloco ocidental está alinhado com a letra da Carta da ONU. Mas, sem autocrítica consistente sobre seu próprio histórico de intervenções, esse discurso tende a ser recebido com reservas em parte considerável do mundo.
A posição do G7: paz “justa e duradoura”
Documentos recentes do G7 – tanto de chefes de Estado quanto de chanceleres – repetem uma fórmula que se tornou padrão: apoio “inquebrantável” à Ucrânia “pelo tempo que for necessário” e defesa de uma paz “compreensiva, justa e duradoura”, “em linha com o direito internacional, incluindo a Carta da ONU, com pleno respeito à soberania e à integridade territorial da Ucrânia”.
Os mesmos textos afirmam que não pode haver negociações de paz “sobre a Ucrânia sem a Ucrânia”, ecoando a rejeição de Kiev a qualquer tentativa de desenhar um acordo em mesas de bastidores, sem a presença de representantes ucranianos. A chamada “Fórmula de Paz de Zelensky” – que inclui retirada total das tropas russas, responsabilização por crimes de guerra e garantias de segurança robustas – é citada como roteiro preferencial pelos aliados ocidentais.
Mas, de novo, há tensão entre o discurso e a realidade. Enquanto declarações insistem na integridade territorial completa, diplomatas admitem reservadamente que um eventual cessar-fogo pode, na prática, congelar linhas de frente por um período prolongado. A diferença entre “paz justa” e “paz possível” permanece em aberto.
Pressões internas em Kiev e o cansaço de guerra
Ao mesmo tempo, a mensagem dos EUA e aliados de que “não haverá acordo que desrespeite a soberania ucraniana” responde a pressões dentro da própria Ucrânia. O governo de Volodymyr Zelensky enfrenta oposição crescente de setores que rejeitam qualquer concessão territorial, bem como de grupos que temem que o país seja empurrado para um compromisso negociado que deixe regiões permanentes sob influência russa.
Do outro lado, há uma população exausta após anos de guerra, mobilizações sucessivas e destruição de infraestrutura. À medida que o conflito se prolonga, cresce o risco de que qualquer proposta de cessar-fogo – mesmo que parcial – ganhe apoio social simplesmente por prometer algum alívio imediato. Nesse contexto, o discurso firme sobre soberania também funciona como blindagem política para Kiev: sinaliza que, ao menos oficialmente, não se negocia “por cima” da cabeça do país.
Entre a paz negociada e a paz imposta
Vista em perspectiva, a insistência de EUA e aliados em que “qualquer acordo precisa respeitar integralmente a soberania da Ucrânia” é um movimento de equilíbrio delicado. De um lado, tenta evitar a imagem de que o Ocidente está pronto para “lavar as mãos” e aceitar uma partilha territorial ditada pela força russa. De outro, busca preservar espaço para a realpolitik: a possibilidade de arranjos transitórios, zonas desmilitarizadas ou formatos híbridos de controle de fronteiras que, na prática, dificilmente corresponderão à restituição imediata de todos os territórios.
Para setores progressistas, o desafio é não cair em armadilhas simplistas. Defender o princípio da soberania nacional – inclusive da Ucrânia – não significa endossar automaticamente a agenda estratégica de Washington ou da OTAN. Ao contrário: significa reivindicar que qualquer solução de paz seja construída com protagonismo ucraniano e respeito à autodeterminação de seu povo, e não apenas como capítulo de uma disputa entre grandes potências.
Ao mesmo tempo, é preciso questionar a lógica de prolongar indefinidamente uma guerra de desgaste em nome de “não recompensar a agressão”, quando quem paga a conta são, sobretudo, civis ucranianos – além de populações pobres no resto do mundo, afetadas por choques de energia e alimentos.
No fim, o recado público de EUA e aliados sobre o respeito integral à soberania da Ucrânia diz muito tanto sobre o que se quer negociar quanto sobre o que se quer esconder. O desafio colocado à comunidade internacional – e em especial ao Sul Global – é construir uma agenda que combine defesa do direito internacional, crítica ao imperialismo em todas as suas formas e pressão por uma paz que não seja apenas conveniente aos grandes blocos, mas minimamente justa para quem hoje vive sob as bombas.
Fontes
The Guardian – Trump hints at “something good” after Ukraine peace talks as EU says “work remains”
The Times – Peace plan “must respect Ukraine’s sovereignty”, US agrees
Reuters – G7 renews support for Ukraine, condemns Russian “escalation”
G7 / Governo italiano – G7 Leaders’ statement in support of Ukraine
G7 / Governo do Canadá – Statement of the G7 Foreign Ministers’ Meeting on Ukraine
Ministério das Relações Exteriores do Japão – G7 Foreign Ministers’ Statement on Ukraine
