Restrições de visto contra alto funcionário haitiano expõem laços obscuros entre poder e crime, em meio a uma crise que testa os limites da intervenção internacional e da estabilidade institucional no país caribenho.
Nos bastidores do poder em Porto Príncipe, a temperatura política escalou abruptamente nesta segunda-feira, 25 de novembro de 2025, quando os Estados Unidos anunciaram sanções de visto contra Fritz Alphonse Jean, economista e membro proeminente do Conselho Presidencial de Transição do Haiti. Acusado de laços com gangs que controlam 90% da capital e vastas áreas do interior, Jean – ex-governador do Banco Central e ex-presidente interino do conselho – negou veementemente as alegações, descrevendo-as como uma manobra para influenciar as negociações eleitorais de 2026. Interlocutores do governo americano, no entanto, insistem que as medidas visam restaurar a credibilidade das instituições haitianas, obstruídas por redes de corrupção e violência. Mas o que está em jogo aqui transcende o indivíduo: em um país sem eleições desde 2016 e sem presidente desde o assassinato de Jovenel Moïse em 2021, essa sanção destaca a crônica fragilidade da governabilidade, convidando a uma reflexão crítica sobre como intervenções externas podem equilibrar punição e reconstrução, sem agravar o vácuo de poder. Contexto e dados para além do fato: o Haiti não é mero palco de caos, mas um espelho das tensões globais entre soberania e responsabilidade internacional, onde o Estado de Direito oscila entre aspirações e realidades brutais.
A decisão americana chega em um momento pivotal, com o conselho transitório – formado após a renúncia do primeiro-ministro Ariel Henry em abril de 2024, em meio a acusações de corrupção – programado para entregar o poder em fevereiro de 2026. No entanto, movimentos no Palácio Nacional indicam recuos: eleições provisórias, inicialmente marcadas para novembro de 2025, foram adiadas para agosto e dezembro de 2026, devido à violência que paralisou o país. Aliados de Jean dizem que as sanções são uma sinalização ao mercado de que Washington prioriza a desarticulação de redes criminosas, mas o próprio Jean, em coletiva à imprensa, exibiu mensagens supostamente de embaixadas dos EUA e Canadá, ameaçando revogações de vistos para forçar a manutenção do atual primeiro-ministro, Alix Didier Fils-Aimé. “Isso é interferência externa em nossa articulação política“, afirmou ele, ecoando críticas de ex-primeiro-ministro Claude Joseph, que condenou o que chamou de “ditames estrangeiros”. Do outro lado, o Departamento de Estado americano, sob a administração Trump, enquadra a medida como parte de uma ofensiva mais ampla contra gangs designados como organizações terroristas estrangeiras desde janeiro de 2025, incluindo Viv Ansanm e Gran Grif, com recompensas de US$ 5 milhões por líderes como Jimmy “Barbecue” Chérizier.
A Crônica da Instabilidade e o Vácuo Institucional
O que mudou nos arranjos do poder no Haiti? Desde o assassinato de Moïse, o país opera em um limbo constitucional, sem legisladores eleitos desde janeiro de 2023 e com o Parlamento inativo desde 2019. O conselho transitório, composto por nove membros – muitos deles elites políticas acusados de escândalos de suborno –, assumiu para restaurar a segurança, o império da lei e organizar eleições livres. No entanto, a correlação de forças favorece os gangs: a coalizão Viv Ansanm controla não só Porto Príncipe, mas expansões para os departamentos de Centre e Artibonite, extorquindo negócios, matando civis e disputando territórios com armas de calibre militar, muitas oriundas de fluxos ilegais da Flórida. De janeiro a setembro de 2024, mais de 4.300 mortes foram registradas, incluindo membros de gangs, segundo o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos (OHCHR). Ataques coordenados entre fevereiro e maio, e novamente em outubro, fecharam o principal aeroporto internacional repetidas vezes, suspendendo voos da Sunrise Airways e isolando o país.
Essa violência não é isolada: redes de poder entre elites econômicas, políticas e policiais alimentam o ciclo. Relatórios da Human Rights Watch (HRW) de 2025 documentam como gangs, com supostos laços a autoridades, interrompem serviços essenciais – eletricidade, água, saúde e educação –, restringindo o acesso a bens básicos. Documentos mostram novo arranjo: investigações revelam que grupos criminosos exploram recursos naturais ilegalmente, financiando-se com tráfico de armas e drogas, o que o Conselho de Segurança da ONU agora sanciona explicitamente na Resolução 2794, renovada em outubro de 2025. Diferença entre fato e opinião: os fatos são claros – 85% de Porto Príncipe sob controle gangueiro –, mas opiniões divergem sobre se as elites, como Jean, são vítimas de calúnia ou facilitadores do caos. Essa ambiguidade testa o garantismo, onde a presunção de inocência colide com evidências de obstrução à luta anti-gangue, como alegado pelos EUA.
Por que importa essa crônica? O Haiti, com 11,7 milhões de habitantes, enfrenta uma crise multidimensional que afeta a estabilidade regional. Pesquisas eleitorais e séries históricas – embora escassas devido à insegurança – indicam uma margem de erro alta na confiança pública, com variação dentro da viés de resposta moldado pelo medo. Dados e comportamento do eleitor, sem achismo, mostram migração para áreas seguras no exterior: de janeiro a dezembro de 2024, quase 200 mil haitianos foram deportados por governos vizinhos, apesar dos riscos, contrariando apelos da UNHCR para extensão de proteção sob a Declaração de Cartagena de 1984. Internamente, 703 mil pessoas – 25% crianças – estão deslocadas, o maior índice per capita global, vivendo em assentamentos informais sob risco constante, segundo a Organização Internacional para Migrações (OIM).
As Sanções e Seus Alvos: Entre Justiça e Pressão Política
As restrições impostas a Jean – proibição de entrada nos EUA e revogação de vistos – são as mais recentes em uma série de medidas. Em outubro, os EUA sancionaram um líder de gang ligado a Viv Ansanm, ex-policial, e o Canadá seguiu com restrições semelhantes. A Resolução 2794 da ONU, adotada por unanimidade, renovou por um ano o regime de sanções – embargo de armas, proibições de viagem e congelamento de ativos –, adicionando Dimitri Hérard e Kempes Sanon à lista por ameaçarem a paz. Novos alvos incluem indivíduos envolvidos na exploração ilícita de recursos naturais, com chamados para mais sanções contra financiadores de gangs. Crítica ao lavajatismo ecoa aqui: enquanto França, Dinamarca e Reino Unido lamentam a omissão de menções explícitas à violência de gênero – que afeta desproporcionalmente mulheres e meninas –, a Rússia alerta contra o uso de restrições para alterar o panorama político.
O que os números mostram é um impacto ambíguo: sanções visam desmantelar troca de favores entre elites e criminosos, mas críticos como Jean argumentam que elas travam a articulação política no Congresso haitiano – ou o que resta dele –, priorizando agendas externas sobre soluções locais. Série do PoderData (adaptada a contextos internacionais) apontaria estabilidade frágil na aprovação do conselho, mas com registro histórico e transparência demandando mais accountability. Ambiente de negócios e confiança despenca: com 64% da população abaixo de US$ 3,65 diários, segundo o Banco Mundial, o fluxo internacional de ajuda humanitária – US$ 674 milhões prometidos para 2024 – é insuficiente, agravado por ataques a instalações da Médicos Sem Fronteiras (MSF), que suspendeu operações em novembro devido a ameaças de estupro e morte por grupos de autodefesa e polícia.
Impacto Humanitário e o Desafio Econômico: Além da Violência
O que muda com essas sanções? No curto prazo, pouco: a Missão de Apoio à Segurança Multinacional (MSS), liderada por quênianos com contribuições de Jamaica e Bahamas, opera com apenas 416 de 2.500 efetivos previstos, limitada a patrulhas sem poderes de prisão. Em setembro, o Haiti pediu sua transformação em operação de paz da ONU para financiamento estável, apoiado pelos EUA – principal doador da MSS. No entanto, atividade econômica e emprego colapsa: 5,5 milhões precisam de assistência, 5,4 milhões enfrentam insegurança alimentar aguda, com 6 mil em fome catastrófica, per Programa Mundial de Alimentos. O sistema de saúde opera a 40% de capacidade, com 40 mil profissionais fugindo da violência; cólera matou 1.306 desde 2022, e 84% dos detentos – em prisões superlotadas por três vezes – aguardam julgamento, com 168 mortes por desnutrição em 2024.
Educação e gênero sofrem: 1,2 milhão de crianças sem escola, e 5.400 casos de violência baseada em gênero reportados até outubro, 72% sexuais por gangs. Ambiente piora após decisões contraditórias: enquanto sanções prometem previsibilidade, deportações em massa – 97% pela República Dominicana – e fluxos de armas dos EUA minam a ancoragem fiscal haitiana, com PIB encolhendo e inflação galopante. Curva de juros precifica riscos elevados, e o BC local luta para estabilizar o gourde em meio ao caos.
Respostas Internacionais, O Equilíbrio entre Intervenção e Soberania
A ONU, UE, Canadá e EUA impuseram embargos de armas e medidas direcionadas, mas o consenso é frágil: Panamá destaca a simbiose entre elites e gangs, China cobra ações concretas contra fluxos de armas do “país fonte principal”, e Paquistão alerta para o uso judicioso de sanções para não punir o povo. O Haiti, em declaração, vê as medidas como dissuasão, comprometendo-se a processar os sancionados nacionalmente. Mapa do poder atualiza forças: o conselho negocia com o centrão haitiano – bloco pragmático de interesses locais – para aprovar reformas, mas fisiologismo prevalece, com negociações travadas na repartição de recursos.
Por que importa para o mundo? O Haiti testa os freios e contrapesos globais: intervenções como a MSS fortalecem a polícia nacional, mas sem endereço às raízes – corrupção, desigualdade e armas ilegais –, perpetuam o ciclo. Garantismo pauta o debate: sanções restauram devido processo ou configuram abuso de autoridade externa? Uma análise equilibrada sugere que, sem reformas estruturais locais, medidas externas são paliativos.
Em meio a esse turbilhão, o Haiti clama por uma transição que priorize governança sobre conflito, convidando nações ricas a refletirem: sanções isolam ou catalisam mudança? Enquanto gangs ditam o ritmo em Porto Príncipe, o futuro depende de uma base aliada interna e externa, tecendo estabilidade onde o caos reina há décadas. O leitor, ao ponderar esses dados para decidir, deve questionar: em um mundo interconectado, onde termina a ajuda e começa a intromissão?
Referências
AP News – US sanctions Haitian official Fritz Alphonse Jean over alleged gang ties
Al Jazeera – US imposes visa sanctions against Haitian official on governing council
United Nations – Security Council Renews Sanctions Regime on Haiti, Unanimously Adopting Resolution 2794 (2025)
Human Rights Watch – World Report 2025: Haiti
