A expectativa pela reabertura da passagem de Rafah, entre Gaza e Egito, voltou ao centro do noticiário nesta sexta-feira (17). Sinais vindos de Tel Aviv e do Cairo indicam que o posto poderá voltar a operar “nos próximos dias”, inicialmente com ênfase no trânsito de pessoas, enquanto a maior parte da carga humanitária seguiria por Kerem Shalom, sob inspeção reforçada. Em paralelo, a Autoridade Palestina (AP) afirmou estar pronta para operar o lado palestino do cruzamento — questão-chave para destravar uma solução de médio prazo. No terreno, a pressão é imensa: a OMS reporta surtos e um sistema de saúde esgarçado; a ONU repete que a ajuda que entra ainda é insuficiente. Um desenho de centro — pragmático, incremental e mensurável — busca sintetizar as demandas humanitárias com os requisitos de segurança e de governança.
O ponto de partida: cessar-fogo frágil, desconfiança alta e fome persistente
O cessar-fogo em vigor reduziu os combates, mas segue tensionado por trocas de acusações: Israel diz que o Hamas tem atrasado a devolução de restos mortais de reféns; o Hamas rebate e fala em obstáculos físicos e colapsos de túneis, pedindo que mediadores acelerem as próximas etapas do acordo — incluindo reabertura de fronteiras, reconstrução e definição da administração local. Nesse ambiente de confiança baixa, qualquer abertura mal calibrada pode virar motivo para novo fechamento. Reuters e AP descrevem o impasse: Israel diz preparar a reabertura de Rafah para pessoas, mantendo a ajuda via Kerem Shalom; o Hamas pede implementação integral das cláusulas; mediadores insistem em previsibilidade logística.
Do lado humanitário, o diagnóstico é duro. A OMS e veículos como o Guardian apontam doenças “fora de controle”, com uma fração dos hospitais operando e déficit crônico de alimentos, água e saneamento. Apesar de algum fluxo recente, a entrada diária fica aquém do necessário para 2,2–2,3 milhões de pessoas deslocadas e traumatizadas. A reabertura de Rafah, portanto, não é só simbólica: é um nó crítico para evacuações médicas, reunificação familiar e redundância logística — componentes que salvam vidas e reduzem a pressão sobre outras passagens.
Um plano “ao centro”: abrir com metas, governança e camadas de proteção
O viés de centro parte de três premissas:
- Humanitário primeiro, com mensuração pública: estabelecer metas diárias mínimas por categoria (alimentos, água, saneamento, medicamentos, combustível hospitalar), publicar boletins de entrada e distribuição (OCHA/OMS) e vincular desempenho a ajustes operacionais semanais. Transparência reduz ruído político e focaliza a cobrança em resultados, não em promessas.
- Segurança como habilitadora, não bloqueio: inspeção 100% da carga, scanners de alta energia, pesagem cruzada e rastreabilidade do depósito ao ponto de entrega (GPS e lacres digitais). O objetivo não é travar, é blindar o fluxo contra desvios e itens de uso dual, evitando o abre–fecha reativo que já devastou a previsibilidade operacional. A literatura e a experiência recente mostram que cadeias auditáveis minimizam tentativas de contrabando e melhoram a eficiência dos comboios.
- Governança compartilhada e verificável: a AP declara-se pronta para operar o lado palestino; a proposta centrista é combiná-la com presença executiva de agências da ONU/UE e coordenação egípcia, com protocolos claros de pessoal, rota e fallback. O desenho reduz a disputa binária “ou Israel ou Hamas” e ancora o posto numa gestão civil com instrumentos de monitoramento e veto técnicos quando surgirem alertas de segurança.
Fases sugeridas (com gatilhos de desempenho)
- Fase 1 – Pessoas e saúde (dias 0–15): Rafah reabre para evacuações médicas, reunificação familiar documentada e retorno de estrangeiros; a carga pesada continua por Kerem Shalom, onde a infraestrutura de triagem é maior. Indicadores: número de pacientes evacuados/dia; tempo de travessia; toneladas essenciais (alimentos, água, combustível hospitalar) entregues e confirmadas na ponta.
- Fase 2 – Infraestrutura vital (dias 15–45): com metas cumpridas e segurança estável, Rafah recebe insumos de água/esgoto, abrigo e cadeia de frio para vacinas; mantém-se lista negativa transparente e auditorias surpresa.
- Fase 3 – Normalização condicionada (após dia 45): ampliações graduais de categorias e volumes condicionadas a métricas de entrega efetiva, baixa incidência de incidentes e compliance da equipe de campo.
A lógica de “gating” reduz o risco de se abrir muito, muito rápido e precisar fechar tudo após o primeiro incidente. Isso interessa a todos: civis, operadores logísticos, Egito — que também enfrenta ameaças no Sinai — e doadores, que querem ver resultado por dólar.
O papel do Egito e a linha vermelha da soberania
Cairo tem reiterado que não bloqueia por capricho, e sim por uma combinação de danos, requisitos de inspeção e riscos de segurança — inclusive jihadismo no Sinai. Além disso, o Egito insiste que não aceitará deslocamento forçado de palestinos para seu território. Um arranjo centrista reconhece essas linhas vermelhas e apoia capacidades: equipamentos, equipe e financiamento para ampliar triagem, escolta e gestão de filas. Trata-se de cooperar para estabilizar a fronteira, não de terceirizar a crise.
Quem abre o portão em Gaza?
A disponibilidade da Autoridade Palestina pode ser a peça que faltava para a governança do lado palestino. A proposta de centro é operacionalizar essa oferta com:
- Equipe nomeada e auditada, com registro biométrico e treinamento conjunto;
- CCTVs e registro de operações com acesso para ONU/UE/Egito;
- Protocolos de interrupção (gatilhos claros para pausar categorias de carga em caso de alerta, sem fechar o posto inteiro);
- Relatórios diários sobre tempos de processamento, volumes e discrepâncias apontadas por verificação independente.
Essa engenharia cria confiança funcional e tira Rafah do ciclo da disputa política, onde cada incidente vira justificativa para uma paralisação total.
Por que insistir em metas e não só em manchetes
Na prática, Gaza vive um colapso sanitário: malnutrição e doença se retroalimentam, e cada dia sem previsibilidade piora indicadores de crianças e pacientes crônicos. Editorialistas e entidades médicas vêm pedindo restauração de normas humanitárias e proteção ao sistema de saúde. Um acordo centrado em entregas verificáveis — não em comunicados grandiloquentes — tem mais chance de reduzir mortalidade evitável ao longo de semanas.
Como lidar com o impasse político do cessar-fogo
O noticiário registra troca de acusações sobre violações da trégua e prazos de entrega de restos mortais; há também relatos de que a decisão de abrir Rafah avançou após devoluções recentes. Um viés de centro não ignora a disputa — mas a coloca em paralelo ao humanitário, com trilhos independentes: o mecanismo de ajuda não deve parar porque o político emperrou. Ao mesmo tempo, cumprir etapas do acordo (inclusive as mais dolorosas) ajuda a sustentar o corredor. Equilíbrio e redundância logística são os antídotos contra a politização da sobrevivência.
KPIs que importam (e são publicáveis)
- Caminhões/dia por categoria (alimento, WASH, saúde, abrigo, combustível hospitalar);
- Pontos de entrega confirmados (comprobantes assinados e lacres intactos);
- Tempo de ciclo por caminhão (fila–inspeção–entrada–entrega);
- Incidentes (tentativas de desvio, danos, violência de perímetro) e respostas;
- Evacuações médicas/dia e tempo porta a porta;
- Taxa de indisponibilidade (horas em que o posto ficou inoperante e motivo).
Publicar esses dados diariamente cria accountability simétrica: operadores e autoridades são cobrados pelo que controlam, e ajustes ficam baseados em evidência, não em retórica.
Abrir Rafah é necessário e possível — se for tratado como projeto de engenharia humanitária e de segurança, não como símbolo político. Um caminho centrista propõe abrir já para pessoas, escala controlada para cargas, AP operando com tutela técnica internacional e metas públicas para sair do improviso. Não é uma solução definitiva para Gaza; é a ponte pragmática entre a urgência de hoje e uma reconstrução que levará anos. A alternativa — portas que abrem e fecham a golpes de manchete — mantém todos presos à exceção permanente. Com regras claras, redundância e métricas, Rafah pode voltar a ser porta de entrada para a vida, e não uma alavanca de barganha.
Fontes
- AP News — Gaza awaits the reopening of the Rafah border crossing, its link to the outside world. AP News
- Reuters — Israel, Hamas trade blame over truce violations amid delay in return of dead hostages. Reuters
- Reuters — Hamas urges mediators to push for next steps under ceasefire. Reuters
- The Guardian — Infectious diseases in Gaza ‘spiralling out of control’, says WHO — live. The Guardian
- WHO — People in Gaza starving, sick and dying as aid blockade continues. Organização Mundial da Saúde
- Al-Monitor (Reuters) — Israel to open Gaza’s Rafah crossing, cancels planned measures against Hamas. Al-Monitor
- Al-Monitor — Palestinian Authority says it is ready to operate Rafah crossing. Al-Monitor
- Yahoo News (Reuters) — Palestinian Authority says it is ready to operate Rafah crossing. Yahoo News
- bdnews24 (Reuters) — Palestinian Authority ready to operate Rafah crossing. bdnews24
- Ahram Online — North Sinai governor defends Egypt’s stance on Rafah crossing. Ahram Online
- Ahram Online — Sinai governor to US senators: food rots waiting at Rafah. Ahram Online. Ahram Online
- Ahram Online — Egypt stands up to Netanyahu’s provocations. Ahram Online
- The Lancet — Stop the starvation: restore civilian aid and protect health care in Gaza. The Lancet
