O acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia é a grande miragem da diplomacia sul-americana. Por mais de duas décadas, ele tem brilhado no horizonte: um prêmio monumental que promete integrar dois dos maiores mercados do mundo, selar uma aliança estratégica e modernizar as economias da região. E, no entanto, a cada vez que o acordo parece ao alcance das mãos, novas barreiras surgem. Desta vez, o obstáculo não vem das exigências ambientais de Bruxelas ou do protecionismo dos agricultores franceses, mas de dentro do próprio bloco. Em uma escalada de tensões que expõe as profundas fissuras do Mercosul, o governo do Paraguai elevou o tom e emitiu uma ameaça clara: sem uma revisão da estrutura tarifária do bloco, o país não hesitará em vetar a ratificação do histórico acordo com a UE.
Este não é um mero desentendimento diplomático. A postura assertiva de Assunção é o sintoma mais agudo de uma crise estrutural que corrói o Mercosul por dentro. É a manifestação de um conflito entre duas visões de mundo econômicas que se tornaram quase irreconciliáveis: de um lado, o modelo mais industrial e protecionista dos sócios maiores, Brasil e Argentina; do outro, o modelo ágil, de livre-comércio, almejado pelos sócios menores, Paraguai e Uruguai. O acordo com a UE, portanto, tornou-se o refém e o campo de batalha para uma luta que definirá a alma e o futuro da integração sul-americana.
Nesta análise, vamos dissecar o pomo da discórdia – a Tarifa Externa Comum –, explorar os interesses conflitantes que dividem o bloco, avaliar os imensos desafios para a liderança regional do Brasil e ponderar sobre o risco real de estagnação ou fratura do projeto de integração mais ambicioso do continente.
O Pomo da Discórdia: O Que é a Tarifa Externa Comum (TEC)?
No coração da disputa está um instrumento técnico, mas de imenso impacto: a Tarifa Externa Comum (TEC). Em essência, a TEC é a “muralha comercial” que os países do Mercosul erguem em conjunto contra o resto do mundo. É uma alíquota de importação unificada que todos os membros aplicam a produtos vindos de fora do bloco. Sua função é dupla:
- Incentivar o comércio interno: Ao tornar os produtos de fora mais caros, a TEC estimula empresas e consumidores a comprarem de seus vizinhos dentro do Mercosul.
- Aumentar o poder de barganha: Ao negociar como um bloco unificado, os países têm mais peso para conseguir melhores termos em acordos comerciais.
O problema é que uma muralha que protege alguns pode ser uma prisão para outros.
- A Posição de Brasil e Argentina: Para as duas maiores economias, a TEC é um pilar de suas políticas industriais. Setores como o automobilístico, de bens de capital e têxtil, que empregam milhões de pessoas mas nem sempre são globalmente competitivos, dependem dessa proteção tarifária para sobreviver à concorrência de produtos asiáticos, por exemplo. Para eles, uma redução drástica e rápida da TEC seria um convite à desindustrialização.
- A Posição do Paraguai (e do Uruguai): Para o Paraguai, uma economia com uma base industrial menor e uma vocação para ser um hub logístico e comercial, a TEC alta é um entrave. Ela encarece os bens de consumo e os insumos que o país importa do resto do mundo para sua população e para sua indústria de montagem (maquila). Assunção e Montevidéu sonham em ser uma espécie de “Singapura da América do Sul”: economias abertas, com baixas tarifas, que atraem investimentos e servem como porta de entrada de mercadorias para o continente. Dentro da estrutura atual do Mercosul, esse modelo de negócio é inviável.
Duas Visões em Conflito: O Dilema Existencial do Bloco
A disputa pela TEC revela que, após mais de 30 anos, os membros do Mercosul não conseguem mais concordar sobre o propósito fundamental do bloco.
O Mercosul como Fortaleza Industrial: A visão original, largamente defendida por Brasília e Buenos Aires, é a de um mercado comum protegido que permita o desenvolvimento de cadeias produtivas regionais. Nesta visão, o objetivo é fortalecer a indústria local para, só então, competir globalmente. A abertura para o mundo deve ser lenta, gradual e negociada para não destruir os parques industriais existentes.
O Mercosul como Plataforma para o Mundo: A visão defendida por Paraguai e Uruguai é a de um bloco que sirva como uma plataforma de lançamento para a inserção global. Eles argumentam que a proteção excessiva gerou ineficiência e complacência, e que a única forma de modernizar suas economias é através da competição e do livre-comércio. O Uruguai, por exemplo, já desafiou as regras do bloco ao iniciar negociações para um acordo de livre-comércio unilateral com a China, um sinal claro da mesma frustração.
Essa divergência fundamental, que reflete as “assimetrias estruturais” de economias de tamanhos e vocações tão diferentes, é o pecado original do Mercosul, e a ameaça paraguaia é apenas seu sintoma mais recente e perigoso.
O Desafio da Liderança Brasileira
Como a maior economia e potência diplomática da região, o Brasil se encontra em uma posição extremamente delicada. A conclusão do acordo com a União Europeia é uma prioridade estratégica para o governo brasileiro, representando uma grande vitória geopolítica e uma oportunidade de acesso a um mercado de 450 milhões de consumidores. No entanto, o Itamaraty está sob intensa pressão de setores industriais domésticos, como a FIESP e a CNI, que temem que as concessões necessárias para salvar o acordo – tanto para a UE quanto internamente para o Paraguai – resultem em uma abertura prejudicial para a indústria nacional.
Liderar, neste contexto, exige mais do que poder; exige a capacidade de fazer concessões e de construir consensos. Ameaças de um parceiro historicamente próximo e dependente como o Paraguai não podem ser ignoradas. A solução para o impasse exigirá que o Brasil apresente propostas criativas, como um mecanismo de “TEC flexível” que permita aos sócios menores alguma margem para negociar tarifas diferenciadas, ou a criação de fundos de compensação para mitigar os impactos da abertura em setores sensíveis. Sem uma demonstração de flexibilidade por parte do Brasil, a intransigência paraguaia tem o potencial de paralisar não apenas o acordo com a UE, mas a própria agenda de integração do bloco.
Conclusão: Reinventar-se ou Morrer
A ameaça do Paraguai de vetar o acordo com a União Europeia é um grito de alerta que ecoa por todo o Cone Sul. Não é um blefe, mas o resultado de uma frustração genuína e de longa data com um modelo de integração que, na visão dos sócios menores, privilegia os interesses industriais de Brasil e Argentina em detrimento de suas próprias vocações econômicas.
O Mercosul está em uma encruzilhada existencial. O imobilismo e a incapacidade de se adaptar às novas realidades econômicas de seus membros o condenam à irrelevância. A crise atual, provocada pela assertividade paraguaia, é ao mesmo tempo um grande risco e uma oportunidade única. Ela força o Brasil a exercer sua liderança de forma construtiva e força todos os membros a sentar à mesa para redefinir, honestamente, o que eles esperam do bloco no século XXI. A conclusão do acordo com a UE deixou de ser apenas um objetivo comercial; tornou-se o teste decisivo para a capacidade do Mercosul de se reinventar e, em última análise, de sobreviver.
