Ordem de prisão preventiva determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, após tentativa de fuga e violação da tornozeleira eletrônica, marca novo capítulo no enfrentamento ao golpismo e recoloca o STF no centro da luta pela democracia.
A madrugada de 22 de novembro de 2025 entrou para a história política brasileira. Em decisão sigilosa tomada poucas horas antes, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a prisão preventiva do ex-presidente Jair Bolsonaro. A ordem foi cumprida pela Polícia Federal (PF) em sua residência em Brasília, após a constatação de que o ex-mandatário havia danificado a tornozeleira eletrônica e articulava um movimento de rua que poderia servir de pretexto para uma fuga cinematográfica.
Trata-se de uma medida cautelar – e não ainda do início do cumprimento da pena de 27 anos e 3 meses de prisão à qual Bolsonaro foi condenado em setembro pela Primeira Turma do STF por chefiar a tentativa de golpe de Estado que visava reverter sua derrota nas eleições de 2022. A conversão da prisão domiciliar em prisão preventiva fecha um ciclo que começou com restrições de uso de redes sociais, avançou para o monitoramento eletrônico e, por fim, culminou na custódia em cela da PF em Brasília.
Da tornozeleira à cela: como se chegou à prisão preventiva
A trajetória que levou Bolsonaro à prisão preventiva é marcada por sucessivas escaladas de medidas do STF. Em julho de 2025, Moraes impôs cautelares como:
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uso de tornozeleira eletrônica;
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recolhimento domiciliar noturno e nos fins de semana;
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proibição de acessar embaixadas e consulados;
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vedação expressa ao uso de redes sociais, direta ou indiretamente, inclusive por meio de terceiros.
Poucos dias depois, diante da constatação de que Bolsonaro continuava a “instrumentalizar” perfis de aliados – inclusive de seus filhos – para atacar o STF e insuflar sua base, Moraes decretou prisão domiciliar, com proibição de visitas e apreensão de celulares.
Em 11 de setembro, veio a condenação histórica: 27 anos e 3 meses de prisão, por crimes que vão de tentativa de golpe de Estado a organização criminosa armada e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Apesar da pena, a prisão definitiva ainda dependia do esgotamento dos recursos – razão pela qual Bolsonaro seguia em casa, sob vigilância eletrônica e 24 horas de monitoramento policial.
O ponto de ruptura veio na madrugada de 22 de novembro. Segundo as investigações, a tornozeleira disparou um alerta pouco depois da meia-noite. A equipe responsável identificou sinais de violação física do equipamento; mais tarde, a PF detalharia que Bolsonaro teria usado um ferro de solda para danificar o dispositivo.
Paralelamente, aliados convocavam uma vigília religiosa em frente ao condomínio do ex-presidente. Para Moraes e para a PF, tratava-se de uma combinação explosiva: uma base radicalizada nas ruas, um líder condenado por tentativa de golpe e indícios de preparação para uma fuga – possivelmente em direção a uma embaixada estrangeira, à semelhança de outros casos recentes de figuras da extrema direita.
Resultado: pedido urgente da PF ao STF, parecer da Procuradoria-Geral da República apontando risco concreto de fuga e nova violação de medidas cautelares – e, por fim, a ordem de prisão preventiva.
Condenação por tentativa de golpe e o contexto do golpismo bolsonarista
A decisão de colocar Bolsonaro atrás das grades não surge do nada. Ela está ancorada na ação penal que apura a trama golpista de 2022–2023, incluindo o incentivo aos ataques de 8 de janeiro de 2023 contra as sedes dos Três Poderes em Brasília. A PF e a PGR descreveram, em detalhes, a atuação de um núcleo central liderado por Bolsonaro, com generais, ex-ministros e parlamentares, que buscou criar um ambiente de descrédito das urnas, fomentar insubordinação militar e articular caminhos para impedir a posse de Lula.
Nesse enquadramento, a imprensa progressista e setores da academia passaram a falar de golpismo bolsonarista e de um verdadeiro ecossistema de milícias digitais e gabinete do ódio operando para difundir desinformação, desacreditar o sistema eleitoral e atacar o STF. O 8 de janeiro é visto como ponto máximo dessa estratégia: milhares de manifestantes, insuflados por meses de discursos golpistas, avançaram contra o Congresso, o STF e o Palácio do Planalto, destruindo patrimônio público e pedindo intervenção militar.
A condenação de setembro e a posterior prisão preventiva se inscrevem, portanto, numa linha de leitura em que Bolsonaro deixa de ser apenas um ex-presidente polêmico e passa a ser tratado como líder de uma trama organizada contra a ordem democrática. Para muitos analistas, trata-se do fim de um longo ciclo de estado de exceção informal, no qual a extrema direita se sentia autorizada a testar limites institucionais sem consequências reais.
A defesa fala em perseguição; STF aponta risco de fuga e desrespeito às regras
Na audiência que se seguiu à prisão, Bolsonaro afirmou que não pretendia fugir e atribuiu a violação da tornozeleira a um suposto surto de paranoia e alucinações provocado pela combinação de medicamentos. Disse estar fragilizado por problemas de saúde e pelo histórico da facada de 2018.
Sua defesa deve insistir na tese de que a prisão preventiva seria desnecessária e desproporcional – argumento ecoado por aliados políticos, que falam em “perseguição” e “prisão política”. Nas redes, lideranças da direita e da extrema direita evocam expressões como “estado de exceção” e “STF ditatorial”, tentando capturar para si um vocabulário que, historicamente, foi usado pela esquerda para denunciar abusos judiciais da República de Curitiba e da Lava Jato.
O contraste, porém, é evidente: enquanto a República Lava Jato operou com vazamentos seletivos e conluio entre acusação e juiz para interferir diretamente no jogo eleitoral de 2018, como revelado pela Vaza Jato, o caso Bolsonaro se baseia em uma extensa cadeia de provas documentais, perícias, confissões de aliados e decisões colegiadas do STF.
Na votação que manteve Bolsonaro na cadeia, um painel de quatro ministros – Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Cristiano Zanin e Cármen Lúcia – confirmou, por unanimidade, que a violação da tornozeleira e o contexto de mobilização de apoiadores indicam risco de fuga e “desprezo às medidas determinadas pelo Judiciário”. Para Dino, a conduta do ex-presidente revelou um padrão: ele só recua quando é pego, e sempre testa as bordas das decisões da Corte.
Nesse cenário, ganha centralidade a leitura sobre a estratégia de Alexandre de Moraes: conter o golpismo bolsonarista, desarticular as milícias digitais e mostrar que não há “cidadãos acima da lei”, ainda que se trate de ex-presidente com enorme capital político.
STF, extrema direita e disputa de narrativa na mídia hegemônica
Como em todos os grandes momentos da crise brasileira recente, a batalha jurídica veio acompanhada de uma disputa intensa de narrativa. Parte da mídia hegemônica tratou a prisão de Bolsonaro como “passo arriscado” do STF, sublinhando riscos de radicalização da base bolsonarista e de desgaste institucional.
Já veículos independentes, juristas progressistas e coletivos de comunicação enfatizam que, desta vez, não se trata de golpe midiático, mas de resposta tardia a um projeto autoritário que flertou abertamente com a ruptura democrática – do questionamento das urnas à tentativa de “virar a mesa” com apoio de militares.
Nesse contexto, volta com força o mantra de que a mídia neoliberal não fala mais sozinha: portais alternativos, canais de YouTube, podcasts e coletivos de jornalismo de dados disputam a leitura do episódio, enquadrando a prisão preventiva como um marco na responsabilização da extrema direita por seus atos.
Para esse campo, a decisão do STF funciona como freio institucional ao “vale-tudo” do bolsonarismo, que foi do ataque à imprensa ao estímulo ao armamentismo, passando pela sabotagem de políticas sanitárias na pandemia e pela tolerância com discursos abertamente antidemocráticos. A leitura é de que, finalmente, a luta pela democracia deixa de ser apenas palavra de ordem de rua e passa a se traduzir em sentenças e medidas efetivas.
Prisão preventiva, democracia e o debate sobre limites do poder punitivo
Do ponto de vista jurídico, a prisão preventiva é medida excepcional: não é pena antecipada, mas instrumento para garantir a ordem pública, a instrução processual ou a aplicação da lei penal quando há risco concreto de fuga ou de obstrução de Justiça. No caso de Bolsonaro, Moraes e a PF apontam os três elementos:
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histórico de tentativa de contornar decisões judiciais;
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uso reiterado de estruturas políticas e digitais para pressionar instituições;
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indícios objetivos de preparação para escapar antes do início do cumprimento da pena.
Para setores da esquerda, a prisão do ex-presidente reabre um debate sensível: como defender a democracia sem reproduzir o uso seletivo e abusivo do direito penal que marcou a era da Lava Jato? A resposta tem passado, em muitos diagnósticos, por dois critérios: transparência dos processos e respeito ao devido processo legal – pontos que, até aqui, têm sido observados no caso Bolsonaro, com decisões colegiadas, direito ao contraditório e ampla divulgação dos fundamentos.
Ao mesmo tempo, organizações de direitos humanos alertam que o reforço da resposta punitiva ao golpismo não pode servir de pretexto para endurecer leis que recaiam, como sempre, com mais força sobre a população pobre, negra e periférica – o mesmo sistema penal que mantém o Brasil entre os países com maiores índices de encarceramento do mundo.
O que vem pela frente
Do ponto de vista processual, Bolsonaro continuará em prisão preventiva enquanto o STF avaliar que persistem os riscos que a justificaram. A defesa tenta converter a custódia em nova prisão domiciliar sob argumento de saúde, mas a Corte, fortalecida por decisões unânimes, dá sinais de que não pretende recuar facilmente.
Em paralelo, seguem os recursos contra a condenação de 27 anos, que, se mantida, levará Bolsonaro a cumprir pena em regime fechado – provavelmente em unidade especial da Polícia Federal ou em estrutura militar, enquanto não houver decisão sobre sua expulsão das fileiras do Exército.
No plano político, a prisão do ex-presidente reorganiza o tabuleiro da direita brasileira, abrindo espaço para novas lideranças disputarem o legado do bolsonarismo e testarem narrativas que vão do vitimismo (“perseguido político”) à tentativa de “descolar” a agenda econômica ultraliberal do peso do golpismo bolsonarista.
Seja qual for o desfecho, a prisão preventiva de Jair Bolsonaro já entrou para a história como um divisor de águas. Depois de anos em que o país conviveu com ameaças de ruptura institucional, ataques sistemáticos ao sistema eleitoral e às instituições, e um 8 de janeiro que reencenou fantasmas autoritários, o recado é cristalino: há custos para quem decide flertar com o golpe. E, desta vez, não foram apenas militantes de base que conheceram o sistema prisional por dentro – o próprio ex-presidente chegou lá.
Fontes
Reuters – Brazil top court votes to keep Bolsonaro in police custody
AP News – Brazilian Supreme Court upholds Bolsonaro’s jailing after ankle monitor tampering
Le Monde – Brazil’s ex-president Bolsonaro placed in preventive detention following an astonishing escape attempt
AP News – Brazilian Supreme Court panel sentences Bolsonaro to more than 27 years in prison for coup attempt
Agência Brasil – STF condena Bolsonaro a 27 anos e três meses de prisão
