Após o assassinato de Carlos Manzo no Dia dos Mortos, governo federal mobiliza 10,5 mil agentes (Exército, Força Aérea e Guarda Nacional), anuncia R$ 57 bilhões de pesos para desmantelar laboratórios, sufocar extorsões e fortalecer investigações — com prestação de contas a cada 15 dias.
A execução do prefeito de Uruapan, Carlos Manzo, durante as celebrações do Dia dos Mortos, expôs de forma brutal o nível de precarização da segurança pública em Michoacán — uma região há anos atravessada por disputas de cartéis, guerra às drogas e economias ilícitas. A resposta do governo de Claudia Sheinbaum veio com ambição e um recado político inequívoco: o “Plano Michoacán para Paz e Justiça”, anunciado no Palácio Nacional, desloca mais de 10.500 integrantes do Exército, da Força Aérea e da Guarda Nacional e acopla uma carteira de 57 bilhões de pesos para ações de segurança, inteligência e políticas sociais. Além do esforço muscular, Sheinbaum prometeu dar a cara à tapa: haverá balanços públicos a cada 15 dias para acompanhar resultados, um gesto de transparência que tenta quebrar o ciclo de anúncios sem monitoramento que tanto desgastou estratégias anteriores.
O assassinato de Manzo, alvo de oito disparos em plena praça, chocou o país e catalisou protestos em Michoacán. A investigação identificou o autor dos disparos como um jovem de 17 anos, morto no local por agentes de segurança, e as autoridades sustentam o envolvimento do crime organizado na ação — um modus operandi que ilustra a captura de adolescentes por redes criminosas e o adestramento paramilitar em “campos de treinamento”. Sua viúva, Grecia Quiroz, assumiu a prefeitura com a promessa de continuidade do enfrentamento às quadrilhas.
No desenho do plano, o governo federal mira três frentes. Primeiro, a asfixia da cadeia produtiva do crime: destruição de laboratórios, neutralização de “campos de treinamento” e bloqueio a fluxos de armas e precursores químicos. Segundo, o combate frontal à extorsão — flagelo que recai sobre produtores de abacate e limão, comerciantes e transportadores, e que corrói comunidades com um “imposto” paralelo imposto por grupos armados. Terceiro, o reforço do aparato estadual, com tecnologia (helicópteros, drones, aeronaves de vigilância), mais polícia investigativa e Ministério Público fortalecido, para transformar prisões em sentenças.
A opção por integrar segurança e políticas sociais pode sinalizar uma correção de rumo. Em vez de apostar exclusivamente no confronto, Sheinbaum acopla investimento social — educação, emprego, infraestrutura, turismo e agricultura — para atacar fatores de recrutamento. É um reconhecimento de que a fórmula da guerra às drogas, em seu desenho punitivista e militarizado, fracassou ao produzir entulho institucional, deslocamento de rotas e recrudescimento de violência sem derrubar a economia ilícita. O governo assume que “segurança é pública”, e não um feudo de corporações armadas, e tenta restituir o protagonismo da investigação e da inteligência sobre a pirotecnia de operações espetaculares, campo fértil para letalidade policial e violações.
Há, porém, um fio de navalha. Michoacán é laboratório de tensões estruturais: ali, extorsões se tornaram parte do “custo de fazer negócios” — com produtores de limão e abacate denunciando pedágios por quilo colhido — e as quadrilhas disputam corredores logísticos, do porto de Lázaro Cárdenas às estradas que irrigam o Pacífico. A promessa federal de sufocar a extorsão precisa aterrissar no chão de comunidades que, há anos, negociam sobrevivência em meio a concentrações de poder armadas e conivência de autoridades locais. Se a estratégia não fragmentar e isolar as redes de proteção política e econômica dos cartéis, o risco é produzir apenas deslocamento geográfico da violência.
O componente de soberania nacional também se impôs no anúncio. Diante de pressões externas por “resultados” e ofertas de colaboração, Sheinbaum foi categórica: o México aceita cooperação de inteligência, mas não a presença direta de forças estrangeiras em seu território. É uma linha de princípio que preserva a autonomia decisória, recusa atalhos de imperialismo travestidos de assistência e reafirma que o enfrentamento ao crime organizado deve operar dentro do pacto democrático e do controle civil.
A prestação de contas quinzenal — detalhada pela própria presidente — é um gesto de ruptura simbólica com a opacidade. Ao prometer atualizar a nação a cada duas semanas, Sheinbaum assume corresponsabilidade e baixa a guarda à crítica: se a curva de homicídios, extorsões e sequestros não ceder, o desgaste será proporcional à aposta. Esse compromisso público responde a um anseio legítimo por democratização das comunicações e contrasta com a lógica da mídia hegemônica, que tantas vezes reduz a segurança a clipes de confronto e manchetes que “ganham no grito”. A agenda de resultados, se for aberta, pode ativar redes locais, universidades e observatórios independentes — afinal, contrainformação é poder quando a sociedade monitora e audita o Estado.
Outro aspecto decisivo será o tratamento às forças no terreno. A mobilização de mais de 10,5 mil agentes não pode replicar padrões de ocupação que, em experiências passadas, alimentaram denúncias de abusos, prisões em massa e violações de garantias — o caminho curto para o estado de exceção informal. A diretriz pública deve ser cristalina: foco em inteligência, apreensões qualificadas, proteção de vítimas e testemunhas, incremento de capacidade pericial e coordenação com fiscalias para não converter operações em manchetes efêmeras. Segurança é pública e, logo, deve ser transparente, auditável e guiada por protocolos que reduzam a letalidade policial — sobretudo em áreas densas, onde a linha entre presença dissuasória e violência estatal é perigosamente tênue.
O peso simbólico do caso Manzo obriga resultados. O prefeito — comparado por alguns à retórica “mão dura” centro-americana, rótulo que ele rejeitava — havia cobrado Brasília mexicana por mais ação. Seu assassinato por um adolescente escancara a engenharia social do crime organizado, que captura juventudes com promessas de renda rápida e pertencimento. É por isso que o componente social do plano não é adereço: bolsas estudantis, empregos e serviços de saúde podem construir alternativas concretas à economia criminal, sobretudo quando a vida é rebaixada a uma escolha entre aliciamento e migração.
O teste, enfim, será de coerência e escala. Sem cooperação federativa e blindagem contra sabotagens de elites locais, a eficácia tende a se diluir. Sem “cinturão” de políticas sociais, a repressão apenas reorganiza fluxos criminais. Sem meta clara de reduzir extorsões — o imposto clandestino que asfixia o cotidiano —, a sensação de insegurança persistirá mesmo com mais viaturas e sobrevoos. E sem que a investigação alcance os escalões intermediários e superiores das redes, os rádios mudam de frequência, mas os “caixas” das quadrilhas continuam a pingar.
Há sinais promissores. O compromisso de seguir o tema “todas as duas semanas” nas coletivas matinais cria um ritual de escrutínio. O reforço de inteligência — anunciado pelo secretário Omar García Harfuch — indica aposta em investigações e prisões cirúrgicas, não apenas em saturação territorial. E a ênfase em sufocar extorsão e desmonte de laboratórios ataca o coração financeiro e produtivo dos grupos. Mas é preciso ir além da urgência: construir governança territorial com participação social, envolver produtores, sindicatos e cooperativas em pactos de proteção e uso de tecnologia (alertas, botões de pânico, monitoramento de cargas) para estreitar o espaço de chantagem e captura.
A esquerda que defende soberania nacional e direitos sociais tem aqui uma encruzilhada clara: ou prova que é possível reduzir a violência com Estado forte, transparente e orientado a direitos — substituindo a retórica vazia da guerra às drogas por uma política pública baseada em evidências —, ou permitirá que a frustração popular seja colonizada por soluções de exceção que corroem a democracia por dentro. Em Michoacán, mais que helicópteros e tropas, o que vai decidir o futuro é a capacidade de recuperar a confiança cívica e disputar a juventude — hoje, alvo preferencial das economias criminais — com escola, renda, cultura e projeto de país.
Se o Plano Michoacán para Paz e Justiça tiver fôlego e coerência, poderá se tornar referência regional de enfrentamento às economias ilegais sem abrir mão da lei, do devido processo e dos direitos humanos. Se fracassar, reforçará o ceticismo social e alimentará a máquina da desesperança. O relógio corre, e a cada 15 dias — como prometeu a presidente — a sociedade terá a chance de conferir se a promessa de paz e justiça está saindo do papel e entrando nas ruas, nas fazendas de limão e abacate, nas escolas e nas praças que a violência insiste em interditar.
Fontes
Reuters – Mexico unveils security operation in violent Michoacan state after brazen assassination of mayor.
AP News – Mexico to send more troops and money to Michoacan after mayor’s killing.
Reuters – Teenager identified as killer of assassinated Mexican mayor.
El País – Harfuch asegura que Manzo contaba con protección y que lo mataron aprovechando un evento público.
