A maior ação policial da história do estado deixa 117 “suspeitos” e 4 policiais mortos; governo sustenta vínculo de 95% dos identificados com o Comando Vermelho, enquanto Defensoria e organizações de direitos humanos denunciam indícios de letalidade/violência policial e práticas de estado de exceção em áreas densamente povoadas.
O balanço oficial da “Operação Contenção” confirmou o que moradores, defensores públicos e organizações independentes já haviam indicado desde as primeiras horas: trata-se da ação policial mais letal da história do estado. São 121 mortos — 117 classificados como “suspeitos” e 4 policiais — após uma mobilização de cerca de 2,5 mil agentes em complexos de favelas estratégicos na Zona Norte do Rio. Na cronologia do dia, a contagem de mortos começou em 64 e escalou ao longo de 48 horas, com relatos de corpos recolhidos por moradores e levados a vias públicas em protesto. As cenas e os números — além do impacto sobre escolas, transporte e comércio — repercutiram de imediato na imprensa internacional e acenderam alertas de organismos multilaterais e em capitais estrangeiras.
Do lado do governo estadual e das polícias, a narrativa é de “resultado expressivo” contra o Comando Vermelho. A Polícia Civil afirmou que 95% dos identificados tinham ligação com a facção e celebrou apreensões de armas e prisões. Mas um dado divulgado por reportagem da Reuters complicou a linha oficial: apesar da escala da operação, nenhum dos 69 nomes do topo do organograma do CV foi preso ou morto. A informação alimentou críticas sobre a proporcionalidade do emprego da força e a efetividade de ações massivas em áreas densas para desarticular o núcleo dirigente do crime organizado.
Ainda no terreno, a disputa de versões veio acompanhada por acusações graves — e verificáveis. Moradores e defensores públicos relataram marcas de tiros à queima-roupa, sinais de tortura e degola em pelo menos um caso, além de remoções de corpos sem cadeia de custódia clara. Diante das denúncias, o ministro do STF Alexandre de Moraes determinou a preservação integral de todos os vestígios — perícias, laudos e registros — relativos à operação, acolhendo pedido da Defensoria Pública da União. O despacho, que mira a integridade probatória e a responsabilização, reforça que o tema já está sob escrutínio do Supremo e do Ministério Público.
O pano de fundo jurídico não é novo. No caso da ADPF 635 — a “ADPF das Favelas” —, o Supremo já havia fixado parâmetros para reduzir a letalidade/violência policial em operações, incluindo restrições durante a pandemia, proteção de escolas e hospitais, preservação de provas e monitoramento por câmeras corporais e geolocalização. A diretriz parte de um princípio simples: segurança é pública, e isso implica accountability e controle externo para que o combate ao crime não devore direitos fundamentais. Com a “Operação Contenção”, esse arcabouço volta ao centro do debate, cobrando coerência entre discurso e prática.
Enquanto a política se reorganiza para reagir, a cobertura internacional ratifica a gravidade. Em poucas horas, veículos como AP, The Guardian e Reuters cravaram a operação como a mais letal da história do Rio — e do Brasil —, apontando o patamar de mortos, o volume de agentes mobilizados e a ausência de prisões de alto comando do CV. A AFP/France24 destacou a oscilação do número final de vítimas (119, 121 ou 132, a depender do recorte e da fonte) e reuniu depoimentos de familiares sobre supostas execuções. O consenso entre observadores externos e organizações de direitos humanos é o mesmo: o Estado deve investigar com independência, sem alinhamento automático à narrativa de êxito, e com prioridade à verdade factual.
Entre o “mapa de calor” e a vida nas vielas
Os números, sozinhos, não dão conta do que aconteceu. A operação paralisou corredores de mobilidade, fechou unidades de ensino e alterou rotinas de trabalho em bairros inteiros. Em favelas como Alemão e Penha, o “barulho de guerra” virou trilha de um dia em que o helicóptero não parou e em que blindados viraram esquina após esquina. No fluxo das horas, formou-se a imagem mais chocante: dezenas de corpos enfileirados por moradores, à espera de identificação e perícia. É nessas encruzilhadas que os termos consagrados por um jornalismo crítico fazem sentido: a “guerra às drogas = genocídio da juventude negra” aponta para um padrão que as estatísticas reforçam ano após ano; a polícia mata comunica a responsabilidade objetiva do Estado no uso da força; e estado de exceção nomeia a suspensão tácita de garantias em territórios precarizados.
Aqui, o vocabulário importa — e não é mero floreio. A tradição do jornalismo progressista brasileiro cobra que, diante de operações desta escala, o foco saia da contabilidade de fuzis e volte para a cadeia de comando, os procedimentos e o pós-operação: quem autorizou, como autorizou, que protocolos de abordagem, socorro e custódia foram seguidos (ou não). É o que costuma faltar quando a mídia hegemônica transforma megaoperações em espetáculo, reproduzindo boletins oficiais sem contraste e sem a voz do território. Por isso, insistimos: democratização das comunicações é condição para accountability; e Contrainformação é poder quando mapeia, com método, cada rua, cada horário, cada vítima.
Proporcionalidade, eficácia e o alvo errado
Há um problema estratégico embutido no desenho de ações como a “Operação Contenção”: a equação custo-benefício em áreas densamente povoadas raramente fecha quando a meta pública é “neutralizar a alta liderança”. A própria cobertura internacional registrou que, apesar do número de mortos e das prisões, o núcleo de comando do Comando Vermelho não foi capturado nem morto. Com isso, cresce a percepção de que o grosso das vítimas está na base da pirâmide criminal — alvos facilmente substituíveis em economias ilícitas capilarizadas —, o que pode produzir o oposto do prometido: reorganização rápida do negócio, escalada de retaliações e aprofundamento do medo cotidiano.
A Defensoria Pública e ONGs contestam a proporcionalidade da ação e a legalidade de condutas específicas, como invasões domiciliares sem mandado, obstrução de socorro a feridos e manuseio de corpos e objetos sem cadeia de custódia. É a isso que se refere a pressão sobre o STF e o MP: impor que a apuração alcance a cadeia de comando, evitando que o rastilho da responsabilização morra na base (o soldado na ponta) e nunca chegue aos escalões que desenham e aprovam as operações. Nesse sentido, a decisão de preservar vestígios é ponto de partida — não de chegada.
O lugar da política pública: entre helicópteros e políticas sociais
Do ponto de vista de política criminal, a experiência internacional sugere que megaoperações têm efeito limitado sem um pacote robusto de prevenção, dissuasão econômica e justiça territorial. O Rio conhece esse roteiro desde os anos 1990: a cada “megaoperação”, uma promessa de retomada que não enfrenta renda, moradia, escola, transporte e saúde — infraestrutura mínima para quebrar o ciclo de recrutamento e violência. O resultado, reiterado, é uma cidade que alterna normalidade aparente e sobressaltos, com picos de letalidade e recordes trágicos. E cada novo recorde empurra a régua da tolerância um pouco mais para cima.
É nesse cruzamento que entram, de novo, as categorias do glossário político-comunicacional que embasam esta análise: democratização das comunicações para iluminar a tomada de decisão, frear o viralatismo (a imitação acrítica de modelos militarizados que falharam alhures) e recolocar os direitos na moldura de soberania nacional — aqui entendida como capacidade do Estado de garantir segurança com legalidade e dignidade, especialmente onde a cidadania é, há décadas, programa incompleto. Segurança é pública significa também que chefes de governo e secretários respondem por cada morte sob sua jurisdição — e não podem “ganhar no grito” na coletiva do dia seguinte.
O que vem agora
No curto prazo, o contencioso jurídico tende a se concentrar em três frentes: (1) identificação e perícia independentes das vítimas, inclusive com participação federal; (2) auditoria dos procedimentos operacionais (câmeras corporais, geolocalização, cadeia de custódia); e (3) responsabilização penal e administrativa com foco em autoria, materialidade e comando. A médio prazo, será inevitável religar as discussões da ADPF 635 a um plano de gestão de risco para operações em áreas densas — calendário, horário, raio de segurança para escolas e postos de saúde, monitoramento externo em tempo real e delimitação de objetivos verificáveis (e audíveis à sociedade).
No plano político, o governo federal já defendeu investigação independente; a Comissão Interamericana de Direitos Humanos repudiou a letalidade e pediu apuração diligente, inclusive sobre a cadeia de comando. Em paralelo, o noticiário europeu acompanha o caso com atenção redobrada, somando a pauta de direitos humanos a riscos reputacionais de eventos internacionais. Sem um freio de arrumação que una a repressão inteligente à redução da letalidade, a espiral volta logo — e, com ela, a pergunta que mais importa: como garantir segurança sem suspender direitos onde eles são mais raros?
A “Operação Contenção” vai além do dia em que blindados cruzaram a cidade e helicópteros pairaram sobre telhados. Ela convoca o país a decidir se o atalho da “eficiência” — medido em cadáveres — seguirá sendo a régua da política de segurança ou se a sociedade exigirá um padrão de civilidade compatível com a Constituição. Contrainformação é poder quando se traduz em jornalismo que investiga, nomeia e conecta pontos; o resto é ruído. Entre a dor das famílias e a obrigação do Estado, há um caminho possível: o da verdade pericial, da responsabilização sem exceções e da reorganização de uma política pública que pare de tratar favelas como fronteira interna — e comece a tratá-las como cidades onde a lei deve proteger, antes de punir.
Fontes consultadas
Reuters – Brazil’s deadliest police raid failed to capture or kill gang leaders.
Reuters – Corpses line Rio street after Brazil’s deadliest operation against drug gangs.
AP News – Death toll from Rio de Janeiro police raid on drug gang rises to 121.
The Guardian – Brazil to seek independent inquiry into deadly police raid that killed 121 people.
The Guardian – Brazil: at least 64 reported killed in Rio’s worst day of violence amid police favela raids.
AFP/France 24 – What we do and don’t know about Rio’s deadly police raid.
STF – ADPF 635 (informativo institucional e medidas para redução da letalidade).
Agência Brasil – Supreme Court orders full preservation of evidence on Rio favela raid.
