Famílias Denunciam Tortura e Dificuldade no Reconhecimento de Vítimas em Cenário de Dor e Caos
A megaoperação policial que assolou os complexos da Penha e Alemão, no Rio de Janeiro, em 29 de outubro de 2025, culminou em uma tragédia de proporções históricas, registrando mais de 120 mortes e tornando-se o episódio mais letal da história do estado. No epicentro dessa dor coletiva, familiares de vítimas, como o jovem Jean Alex Santos Campos, e moradores das comunidades afetadas clamam por justiça e denunciam a brutalidade da ação, apontando para sinais de tortura em muitos dos corpos. A dificuldade no reconhecimento dos falecidos no Instituto Médico Legal (IML) Afrânio Peixoto amplifica o sofrimento, revelando o profundo drama humano que se desenrola por trás dos números chocantes da violência.
Contexto
A manhã de 29 de outubro de 2025 amanheceu sob o som de intensos tiroteios nas favelas da Penha e Alemão. A megaoperação policial, que envolveu um grande contingente de forças de segurança, tinha como objetivo combater o crime organizado e desarticular a atuação de grupos armados que, segundo as autoridades, dominam essas regiões, notadamente o Comando Vermelho. Contudo, a escala de mortes e a forma como a operação foi conduzida rapidamente suscitaram questionamentos e condenações por parte de organizações de direitos humanos e da própria população local.
A letalidade da ação surpreendeu até mesmo aqueles acostumados com a dura realidade da violência urbana carioca. Com mais de 120 óbitos confirmados, a operação superou episódios anteriores de alta mortalidade, como a chacina do Jacarezinho, gravando seu nome como a mais sangrenta na memória recente do estado. Esse dado coloca em xeque as estratégias de segurança pública adotadas, que frequentemente resultam em confrontos desproporcionais e um alto número de vítimas fatais.
As comunidades da Penha e do Alemão são historicamente marcadas por incursões policiais e pela presença ostensiva de facções. Moradores relatam viver sob constante tensão, onde a linha entre a proteção e a violência estatal muitas vezes se confunde. A reportagem, presente in loco na Vila Cruzeiro, na Praça do Inter e nas imediações do IML Afrânio Peixoto, pôde constatar o clima de terror e desolação que se instalou após a operação, com ruas esvaziadas e o luto estampado nos rostos de quem perdeu seus entes queridos.
O Drama de Jean Alex Santos Campos e Outras Vítimas
Entre as muitas histórias de dor, a de Jean Alex Santos Campos ressoa com particular intensidade. Jovem, com um futuro interrompido, Jean Alex se tornou um símbolo do custo humano dessas operações. Seu avô, que preferiu manter o anonimato por questões de segurança, relatou o desespero de tentar identificar o neto em meio a tantos corpos, muitos deles irreconhecíveis devido à violência. A busca por clareza e justiça para Jean Alex e para os outros 120 mortos na Penha e Alemão tornou-se um grito coletivo.
Similarmente, a história de Victor, outro jovem morto na operação, é carregada de emoção. Sua companheira, Carol Malícia, mãe de sua filha, compartilhou sua angústia e a dor de ver a vida de seu parceiro ceifada. “Ele me disse ‘Vou me cuidar, pai, te amo’ antes de sair de casa naquele dia”, foi um relato que a reportagem de O Globo obteve, ilustrando a última comunicação de uma das vítimas antes da tragédia, um adeus que se tornou eterno para muitos.
Os depoimentos são unânimes em apontar para a falta de respeito e a brutalidade empregadas. Uma moradora, que reside há 37 anos no Complexo da Penha e preferiu não se identificar, descreveu o horror vivenciado: “Foi o dia mais assustador que já presenciei. Não era uma operação, era um massacre”. Essas falas reforçam a narrativa de que a ação policial transcendeu os limites da legalidade e da proporcionalidade, deixando um rastro de mortes e trauma nas comunidades.
Impactos da Decisão
A decisão de realizar uma megaoperação com tamanha letalidade tem gerado uma onda de impactos sociais e políticos profundos. Socialmente, o medo e a desconfiança nas instituições de segurança foram intensificados. A população das favelas, já vulnerável, sente-se ainda mais desprotegida e estigmatizada. A dificuldade em enterrar os mortos, com a sobrecarga do IML Afrânio Peixoto e a necessidade de exames complexos para identificação, impõe um fardo adicional às famílias enlutadas.
No âmbito político, a operação reacendeu o debate sobre as políticas de segurança pública no Rio de Janeiro e no Brasil. Organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional e a Rede de Observatórios da Segurança, criticaram veementemente a abordagem, classificando-a como uma violação de direitos fundamentais. A pressão sobre as autoridades para uma investigação transparente e imparcial se intensificou, com pedidos para que os responsáveis pelas mortes e pelas denúncias de tortura sejam responsabilizados.
Economicamente, o impacto imediato é o da paralisação de atividades e o êxodo temporário de moradores, além do trauma que afeta a produtividade e o bem-estar das comunidades. A longo prazo, a violência sistêmica e as operações de alto risco afastam investimentos e dificultam o desenvolvimento social, perpetuando um ciclo de pobreza e exclusão. A credibilidade do estado em garantir a segurança de todos os seus cidadãos, independentemente de onde vivam, é severamente abalada.
Acusações de Tortura e Desrespeito
As denúncias de sinais de tortura nos corpos são um dos pontos mais alarmantes da tragédia. Familiares e moradores que estiveram no IML relatam marcas e ferimentos que, segundo eles, indicam que as vítimas não foram mortas apenas em confronto. Essas acusações exigem uma investigação rigorosa e independente, pois, se confirmadas, representam uma grave violação dos direitos humanos e um abuso de poder que não pode ser tolerado em um estado democrático de direito.
A dificuldade no processo de reconhecimento dos corpos no IML Afrânio Peixoto é mais uma camada de sofrimento. A sobrecarga do instituto, aliada à complexidade dos casos de mortes violentas e às denúncias de corpos que apresentavam sinais de violência além dos tiros, dificultou a liberação. Esse cenário prolonga a agonia das famílias, que precisam aguardar por exames periciais e comparações de DNA, adiando o direito a um enterro digno para seus entes.
Próximos Passos
Diante da magnitude dos eventos e das graves denúncias, os próximos passos envolvem uma série de ações em diferentes frentes. O Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro são esperados para abrir inquéritos aprofundados para apurar as circunstâncias de cada morte e as alegações de tortura. A sociedade civil organizada, ativistas de direitos humanos e organizações internacionais já se mobilizam para acompanhar de perto essas investigações e garantir que a justiça seja feita.
Há uma expectativa de que haja uma reavaliação das táticas e estratégias empregadas em operações policiais em áreas conflagradas. A comunidade acadêmica e pesquisadores da área de segurança pública devem apresentar análises e propostas para abordagens menos letais e mais eficazes no combate ao crime, que priorizem a inteligência e o respeito aos direitos humanos. O objetivo é evitar que cenários como o da Penha e Alemão se repitam, interrompendo o ciclo de violência.
Para as famílias das vítimas, a luta por justiça e reparação será longa. A criação de canais de denúncia seguros e o apoio jurídico e psicossocial se mostram essenciais neste momento. A repercussão nacional e internacional da megaoperação mantém os olhos do mundo voltados para o Rio de Janeiro, exigindo uma resposta clara e contundente das autoridades sobre as medidas que serão tomadas para coibir abusos e garantir a segurança e a dignidade de todos os cidadãos.
Fonte:
O Globo – “Vou me cuidar, pai, te amo”, disse um dos mortos na Penha durante a megaoperação policial que deixou mais de 120 mortos. O Globo
