Jerusalém é uma cidade onde cada pedra respira história e cada esquina pode se tornar o epicentro de uma crise internacional. É um lugar onde a diplomacia exige a máxima delicadeza. E foi precisamente ali que um incidente envolvendo diplomatas brasileiros e forças de segurança israelenses levou o governo brasileiro a traçar uma linha vermelha. Em resposta, o Palácio do Itamaraty utilizou um de seus instrumentos mais fortes e formais: a convocação do embaixador de Israel em Brasília para prestar esclarecimentos. Este ato, que pode parecer protocolar para o público leigo, é, na linguagem cifrada da diplomacia, um sonoro protesto, uma demonstração de profundo descontentamento.
A convocação do embaixador, no entanto, transcende em muito o incidente específico que a motivou. Ela é um ato deliberado e calculado do Brasil para reafirmar, de forma inequívoca, os pilares de sua política externa histórica para o Oriente Médio: o apego irrestrito ao direito internacional, a defesa da solução de dois Estados para o conflito israelense-palestino, e o não reconhecimento da soberania de Israel sobre Jerusalém Oriental. Em um momento de crescente instabilidade na região, o Brasil sentiu a necessidade de enviar uma mensagem clara não apenas a Israel, mas ao mundo: sua diplomacia é guiada por princípios, e esses princípios não são negociáveis.
Nesta análise, vamos decodificar o significado de uma “convocação” diplomática, explorar o contexto do incidente em Jerusalém, dissecar a doutrina do Itamaraty para o conflito e entender as implicações geopolíticas desta assertiva postura brasileira.
A Gramática da Diplomacia: O Peso de uma “Convocação”
No xadrez das relações internacionais, os movimentos são carregados de simbolismo. Uma “convocação” de um embaixador estrangeiro não é uma simples reunião. É um ato formal que denota um nível sério de agravo. Diferente de uma nota de protesto, que é enviada por canais burocráticos, a convocação obriga o mais alto representante de um país estrangeiro a se deslocar até o Ministério das Relações Exteriores do país anfitrião para, essencialmente, “ouvir uma reprimenda”. Ele é formalmente notificado da queixa e tem o dever de reportar a gravidade da situação diretamente à sua capital. É um gesto raro, reservado para situações consideradas graves o suficiente para arriscar um esfriamento nas relações bilaterais.
O incidente que serviu de gatilho, segundo fontes, envolveu o impedimento da livre circulação de diplomatas brasileiros credenciados que se encontravam em missão oficial em Jerusalém Oriental, perto da Esplanada das Mesquitas. Para o Brasil, a questão é dupla: é uma falha de segurança que viola as convenções de Viena sobre relações diplomáticas e, mais profundamente, é uma tentativa de exercer soberania sobre um território que o Brasil – e a vasta maioria da comunidade internacional – não reconhece como parte de Israel.
O Coração da Disputa: O Status de Jerusalém
Para entender a reação brasileira, é imperativo entender a complexidade do status de Jerusalém.
- O Consenso Internacional: De acordo com as resoluções das Nações Unidas, notadamente a Resolução 242 do Conselho de Segurança, Jerusalém Oriental é considerada um território ocupado por Israel desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967. O consenso global, do qual o Brasil é um dos fiéis defensores, é que o status final de toda a cidade de Jerusalém deve ser um dos pontos centrais a ser decidido em negociações de paz diretas entre israelenses e palestinos.
- A Posição Histórica do Brasil: Por décadas, e através de governos de diferentes espectros ideológicos, o Brasil tem mantido uma coerência notável nesta questão. A política externa brasileira não reconhece Jerusalém como a capital de Israel; por essa razão, a embaixada brasileira, assim como a da maioria dos países, está localizada em Tel Aviv. Ao convocar o embaixador, o Itamaraty não está inovando, mas sim reafirmando vigorosamente essa doutrina tradicional, sinalizando que qualquer desvio dessa norma será recebido com uma resposta diplomática firme.
A Política Externa Brasileira para o Oriente Médio: A Busca pelo Equilíbrio
A postura do Brasil na questão de Jerusalém é um microcosmo de sua abordagem para todo o Oriente Médio, uma política que pode ser definida como de “equilíbrio responsável”.
Amigo de Israel, Defensor da Causa Palestina: O Brasil busca cultivar relações amistosas e mutuamente benéficas com o Estado de Israel, reconhecendo sua soberania e seu direito à segurança. A cooperação em áreas como tecnologia, agronegócio e inteligência de segurança é robusta. Ao mesmo tempo, o Brasil é um defensor histórico e consistente do direito à autodeterminação do povo palestino. Nos fóruns multilaterais como a ONU, o Brasil consistentemente vota a favor de resoluções que condenam a expansão de assentamentos israelenses nos territórios ocupados e que apoiam a criação de um Estado palestino.
A Solução de Dois Estados como Pedra Angular: A base de toda essa política é a crença de que a única solução justa e duradoura para o conflito é a criação de um Estado da Palestina economicamente viável e territorialmente contíguo, vivendo lado a lado, em paz e segurança, com o Estado de Israel, com base nas fronteiras de 1967 e com Jerusalém Oriental como sua capital.
Pragmatismo e Interesses Nacionais: Além dos princípios, há razões pragmáticas para essa política. O Brasil é lar da maior diáspora libanesa do mundo e de uma influente comunidade de ascendência árabe. Adicionalmente, os países da Liga Árabe representam um mercado de bilhões de dólares para as exportações brasileiras, especialmente de proteína animal Halal, sendo o Brasil o maior fornecedor mundial. Uma política externa equilibrada é, portanto, essencial para os interesses econômicos nacionais.
Conclusão: Uma Diplomacia de Princípios em um Mundo de Pressões
A convocação do embaixador israelense pelo Itamaraty é um ato diplomático de grande peso simbólico. É uma mensagem calculada de que, embora o Brasil valorize sua amizade e parceria com Israel, essa relação não se dará ao custo de abandonar os princípios fundamentais do direito internacional e a sua tradicional defesa de uma paz justa e negociada para o Oriente Médio.
Em um cenário global onde as posições sobre este conflito são frequentemente marcadas pela polarização, o Brasil reafirma sua aposta no caminho do meio, no multilateralismo e na autoridade das Nações Unidas. A ação do Itamaraty serve como um lembrete de que a política externa brasileira, em seus melhores momentos, busca ser “ativa e altiva” – pragmática em seus interesses, mas intransigente em seus princípios. E para o Brasil, a solução de dois Estados e o respeito às resoluções da ONU sobre Jerusalém são, inequivocamente, uma questão de princípio.
