Porta-vozes de Moscou falam em “preferência” por solução diplomática, mas reconhecem pausa nas conversas e mantêm condições máximas; analistas veem correlação de forças desfavorável a avanços rápidos e um tabuleiro em que o que está em jogo ainda é a consolidação de ganhos no campo de batalha.
A mensagem do Kremlin tem dois tempos — e ambos falam alto. No discurso público, a cúpula russa repete que “prefere” encerrar a guerra por via diplomática. Nos bastidores do poder, porém, admite que o processo está em pausa e que não há, por ora, sinalização concreta de Kyiv para retomar as conversas. Essa ambivalência vem sendo vocalizada pelo porta-voz Dmitry Peskov desde meados do ano: em julho, ele rejeitou a leitura de que as tratativas estivessem “travadas”; em setembro, ao contrário, falou em “pausa” e culpou capitais europeias por “atrapalhar” o diálogo — um ziguezague que, por si, ajuda a explicar a temperatura política elevada e a percepção de processo estagnado.
A linha oficial, reafirmada por Peskov, é que a Rússia “alcançaria seus objetivos de preferência por meios diplomáticos”, mas que a “operação militar especial” segue enquanto não houver acordo. Na prática, Moscou condiciona avanços a exigências já conhecidas — abandono das aspirações da Ucrânia à OTAN e retirada de tropas de regiões que a Rússia reivindica —, um pacote que Kyiv considera inaceitável. A correlação de forças nas mesas de negociação, portanto, continua desfavorável às concessões mútuas.
Em setembro, o tom ficou ainda mais desalentador para quem esperava previsibilidade: o Kremlin reconheceu publicamente que as conversas estavam em “pausa”, embora sem fechar canais técnicos de comunicação. É uma admissão importante, pois oficializa o que interlocutores já sinalizavam — não há, por ora, governança negociadora que destrave um cessar-fogo. Ao mesmo tempo, Moscou disse “aguardar um sinal de Kyiv” e terceirizou culpas à Europa.
No fim de setembro, Peskov dobrou a aposta na narrativa da espera: “não há sinais de Kyiv” para retomar o diálogo, afirmou, reforçando a ideia de tramitação diplomática congelada. Na linguagem de chancelerias, trata-se de sinalização para manter a pressão sobre o lado ucraniano e sobre mediadores ocidentais, ao mesmo tempo em que preserva a “opção militar” como instrumento de barganha — uma estratégia de articulação externa com impacto doméstico.
Introdução: entre a retórica e o terreno
O presidente Vladimir Putin tem alternado mensagens que, ao mesmo tempo, vendem disponibilidade para um acordo e reafirmam linhas vermelhas amplas. Em junho, em meio a tentativas de retomada de conversas diretas em Istambul, ele foi explícito ao definir as propostas como “absolutamente contraditórias” — um eufemismo para “sem convergência”. Na leitura de contexto e dados para além do fato, a frase traduz a escolha do Kremlin por manter pressão enquanto experimenta ganhos táticos em frentes específicas.
Ao mesmo tempo, interlocutores do governo russo sugerem que um acordo é “processo prolongado”, ecoando o diagnóstico de que não há atalhos. É o tipo de sinalização ao mercado diplomático (as capitais e organismos que arbitram custos e sanções) que reduz expectativas de curto prazo e empurra o calendário para novas temporadas de guerra de desgaste.
Desenvolvimento: o impasse em camadas
Do lado russo, o recado é que “o que muda” depende de um pacote amplo: reconhecimento de “realidades territoriais”, neutralidade ucraniana e alívios nas sanções — exigências que, nos bastidores, funcionam como piso, não teto. Do lado ucraniano, há a leitura de que ceder nessas frentes equivaleria a formalizar perdas estratégicas irrecuperáveis. Resultado: as conversas que foram reabertas com fanfarra em 2025 tiveram arranjos procedimentais (trocas de prisioneiros e corpos) e pouco além disso.
Em julho, quando Washington voltou a autorizar o envio de munições críticas, Peskov tentou enquadrar a crítica externa e negou que o processo estivesse “parado”. A sinalização buscava conter a narrativa de fracasso diplomático e manter viva a ideia de uma “terceira rodada” em Istambul — desde que Kyiv topasse o convite. No paralelo, o Kremlin reforçou que “o terreno muda diariamente”, um aviso de que avanços militares seriam convertidos em moeda na mesa. O que está em jogo é claro: congelar o conflito em termos favoráveis à Rússia.
Em setembro, contudo, a narrativa oficial passou a admitir a pausa — e a culpar capitais europeias por “atrapalhar” as conversas, citando como obstáculo as discussões sobre garantias de segurança para a Ucrânia no pós-guerra. É um uso clássico de framing: deslocar o foco para atores externos e apresentar o Kremlin como parte “aberta ao diálogo” que enfrenta barreiras impostas pelo Ocidente.
Essa retórica também atende à opinião pública doméstica, ao comunicar que Moscou “quer a paz” mas não aceitará “rendição disfarçada”. Para fora, ela opera como sinalização a mediadores — “trazemos paz se o pacote vier nos nossos termos” — e como lembrete de que, sem ancoragem diplomática concreta, a guerra segue no compasso de uma logística que a Rússia domina melhor do que em 2022.
Análise: por que a “estagnação” persiste
A palavra do Kremlin alterna entre “não está travado” (julho) e “pausa” (setembro), mas o desenho estratégico não muda: Moscou não vê vantagem em acelerar um acordo enquanto a curva de custos — punições econômicas, insumos militares, desgaste social — permanece gerenciável e enquanto o mapa do poder no terreno favorece consolidar posições. O que importa: uma paz rápida é improvável sem uma mudança material da correlação de forças ou um pacote de garantias que atenda a pontos centrais russos.
Do outro lado, Kyiv e aliados argumentam que ceder sobre soberania e OTAN significaria legitimar anexações e enfraquecer a regra do jogo do sistema internacional. Enquanto isso, a União Europeia e os Estados Unidos testam uma linha incremental: aumentar a pressão militar e econômica e, simultaneamente, manter canais de articulação para mínimos humanitários (trocas de prisioneiros, corredores, energia). Mas a Rússia lê esses incentivos como insuficientes para alterar seu cálculo.
Em síntese, a “estagnação” decorre de três travas: incompatibilidade de propostas; sequência de pré-condições sobre território e segurança; e uso calculado do tempo como alavanca negocial. Nada disso sugere destrave rápido — e a própria chancelaria russa passou a chamar o processo de “prolongado”, alinhando expectativa com realidade.
Bastidores e leitura “centro”
No bastidor do dia, diplomatas descrevem um jogo de espelhos: cada avanço militar vira “ativo” para o lado que o conquista; cada sanção, “passivo” a ser compensado com mais resiliência econômica. Enquanto isso, declarações públicas funcionam como sinalização para diferentes plateias (doméstica, aliada e adversária). Em consonância com um viés de centro, esta análise separa fato de opinião e privilegia contexto e dados para além do fato, evitando tanto o voluntarismo de “paz já” sem lastro quanto o determinismo de “guerra infinita”.
O que está em jogo, ao fim, é se 2025/2026 será lembrado como o período de um cessar-fogo negociado — ainda que imperfeito — ou como mais uma etapa de ajustes de fronte nas frentes leste e sul. Para qualquer uma dessas saídas, persistem duas condições objetivas: (a) um mecanismo verificável de garantias (securitárias e econômicas) e (b) um desenho territorial que, ainda que provisório, seja palatável o suficiente para ambos os lados levarem ao público interno sem colapsar sua governabilidade.
Sem isso, a retórica de “queremos o fim da guerra” continuará casada à prática de avançar “no compasso do campo” — e a palavra “estagnação” seguirá como atalho para descrever um processo que, nos bastidores, é tudo menos imóvel.
Fontes:
Reuters – Kremlin says the Ukraine peace process has not stalled.
Reuters – Kremlin says Russia-Ukraine talks are paused, accuses Europe of hindering them.
Reuters – There have been no signals from Kyiv about resuming Russia-Ukraine talks, Kremlin says.
AFP – Putin says Russia and Ukraine nowhere close on peace terms.
AP News – A Kremlin official says Russia sees efforts to end Ukraine war as a drawn-out process.
