O primeiro-ministro do Iraque, Mohammed Shia al-Sudani, afirmou em 3 de novembro de 2025 que o país só conseguirá desarmar as facções armadas quando a coalizão liderada pelos EUA concluir sua retirada. Segundo ele, com a ameaça do ISIS reduzida e maior estabilidade interna, a prioridade é colocar todas as armas sob controle do Estado, oferecendo dois caminhos aos grupos: incorporação às forças oficiais ou atuação política sem armas. A fala ocorre em meio à sua campanha de reeleição e a um cronograma que mira a saída completa da coalizão até setembro de 2026. Reuters
A declaração se encaixa numa transição já em curso: Washington vem reduzindo e reconfigurando sua missão no Iraque, com foco crescente em cooperação bilateral, concentração de efetivos em Erbil e transferência de responsabilidades às forças iraquianas. A narrativa oficial aponta uma diminuição de cerca de 20% do contingente e um redesenho que mantém coordenação, mas reposiciona capacidades para Siria e para tarefas de treinamento, inteligência e proteção de infraestrutura. AP News
Para entender o que está em jogo, é preciso voltar a 2016, quando o Parlamento institucionalizou as Forças de Mobilização Popular (PMF/Hashd al-Shaabi) por lei específica, conferindo status legal a parte das formações que haviam sido decisivas no combate ao ISIS. O movimento resolveu uma parcela do problema — deu arcabouço jurídico —, mas deixou pendentes dilemas clássicos: cadeia de comando única, disciplina e limites operacionais sob a autoridade do Ministério da Defesa/Interior. É esse “déficit de unificação” que o governo afirma querer fechar ao integrar ou desmobilizar grupos remanescentes. The Library of Congress
Há um pano de fundo regional incontornável. Desde o início de 2024, Bagdá e Washington abriram rodadas formais para encerrar a missão multinacional e reformatar a relação em bases bilaterais, com métricas sobre ameaças remanescentes e capacidade iraquiana. O objetivo explícito foi evitar vácuos de segurança: reduzir presença militar sem estimular ataques de grupos armados nem fragilizar o controle estatal. Al Jazeera
Sob uma lente de centro, que rejeita a romantização de gestos simbólicos, mas também o fatalismo que descarta qualquer diálogo, a fala de al-Sudani abre uma janela estreita para uma negociação com condicionalidades. É possível desarmar facções e encerrar a missão estrangeira sem cair em espirais de violência? Sim — se houver sequência, verificação e capacidade do Estado para absorver e fiscalizar.
O que realmente muda com a fala de al-Sudani
- Sequência declarada
O governo explicita um sequenciamento: retirada completa da coalizão → programa de desarmamento → armas sob o Estado. Esse encadeamento busca retirar o pretexto político usado por grupos que se legitimam como “resistência” à presença estrangeira e, ao mesmo tempo, maximizar adesões voluntárias a esquemas de integração (forças oficiais) ou conversão política (partidos sem armas). É um cálculo de custo-benefício dirigido ao eleitorado doméstico e aos parceiros externos. Reuters - Transição de missão dos EUA
Do lado americano, o recuo é real, mas graduado. O redesenho anunciado em outubro inclui menos tropas, mudança de foco para a Síria e concentração em Erbil, preservando linhas de cooperação com Bagdá. Isso reduz a fricção política sem abandonar capacidades críticas (inteligência, antiterrorismo, proteção de infraestrutura). AP News - Sinal contraditório nas facções
Em abril de 2025, reportagens exclusivas indicaram que milícias alinhadas ao Irã consideraram desarmar para evitar confronto direto com os EUA — uma inflexão que apontaria cálculo racional diante de pressão externa. Ainda assim, houve negativas e debate público sobre o real alcance dessas conversas. O ponto, para o centro, é que há margem de negociação, mas sem garantias — por isso, a importância de métricas e verificação. Reuters
O “caminho do meio”: pressão calibrada + diálogo com métricas
A abordagem centrista não confunde retirada com concessão nem diálogo com ingenuidade. Ela combina:
- Dissuasão suficiente para reduzir incentivos à violência (proteção de infraestrutura, capacidades de resposta, coordenação de inteligência);
- Canais formais com objetivos verificáveis (listas de armamento, cronogramas de recolhimento, auditorias de arsenais, rotas de financiamento mapeadas);
- DDR com porta de saída econômica (desarmar, desmobilizar e reintegrar), ancorado em emprego civil nas frentes que o próprio governo elegeu como prioridade: energia, construção, saneamento, logística.
Em termos práticos: sem planilha, não há paz. É preciso transformar promessas em indicadores públicos (número de armas recolhidas, percentuais de efetivos integrados, queda sustentada de incidentes) e gatilhos de curso (se ataques subirem, ajuste do cronograma).
Economia política da segurança: o papel do gás, da luz e do emprego
Al-Sudani vem articulando seu discurso de soberania com uma agenda económica: acordos com GE, Chevron e ExxonMobil, meta de zerar o flaring até 2027 e reduzir a dependência energética externa, ao mesmo tempo em que promove obras e expansão do funcionalismo para estabilizar o tecido social. A mensagem é: sem serviços que funcionem, a segurança não se sustenta — e a conversão de combatentes em trabalhadores não acontece. Para um centrismo de resultados, isso é condição necessária (mas não suficiente): sem controle de arsenais e cadeia de comando unificada, investimentos e emprego não prosperam. Reuters
Riscos de “vácuo” e como evitá-los
O trauma da região ensina que vácuos de segurança são rapidamente ocupados. A transição precisa de válvulas de segurança:
- Linhas diretas militares e protocolos de prevenção de incidentes;
- Handover de bases com inventário auditado e controle de perímetro;
- Mecanismos de verificação (com ONU e parceiros) para o DDR e direitos humanos;
- Aperto financeiro sobre rotas ilícitas (contrabando, cash-couriers) que alimentam arsenais paralelos.
A redução gradual da coalizão — com capacidade de reversão tática se necessário — é o antídoto contra a percepção de abandono. Ao mesmo tempo, sinaliza às facções que o relógio corre: ou aderem a um processo organizado, ou se isolam política e economicamente.
Política doméstica: o que o eleitor decide
Às vésperas das urnas, al-Sudani vende uma síntese: soberania sem sacrifício da estabilidade. O centrismo lê esse projeto como viável se o governo transformar promessas em governança mensurável. Isso requer transparência (divulgação de metas), controle social do gasto (obras e empregos que atinjam quem mais precisa) e regras claras para responsabilização de abusos — inclusive quando praticados por figuras influentes. Sem isso, a agenda de “todas as armas sob o Estado” corre o risco de se converter em slogan.
O que observar nas próximas semanas
- Coreografia institucional: entrega de bases, inventários e cronogramas públicos de handover;
- Indicadores de segurança: tendência sustentada de queda em incidentes e ataques;
- DDR na prática: número de armas recolhidas, efetivos integrados e vagas de trabalho vinculadas a programas de requalificação;
- Sinais externos: notas de Teerã e de Washington, e a continuidade da cooperação técnica em antiterrorismo e proteção de infraestrutura.
Em resumo, a frase-chave de al-Sudani — “todas as armas sob o Estado” — só se concretiza com sequência, verificação e capacidade. A retirada da coalizão não deve ser gatilho de vazio, mas ponte para ordem pública profissional e economia que inclua. É o caminho do meio: pressão calibrada para conter riscos e diplomacia com métricas para consolidar a paz possível.
Parágrafo final
O Iraque pode, sim, virar a página: concluir a transição da coalizão com controle estatal sobre as armas, reintegração econômica de ex-combatentes e serviços públicos que sustentem a segurança. Isso exige um pacto verificável — entre governo, sociedade e parceiros — que evite vácuos e priorize resultados. Nem euforia, nem cinismo: sequência, dados e instituições.
Fontes
- Reuters – Iraq can disarm factions only when the US withdraws, prime minister says. Reuters
- AP News – US military starts drawing down its mission in Iraq countering the Islamic State group. AP News
- Stars and Stripes – US military begins reducing its mission in Iraq, Pentagon says. Stars and Stripes
- Al Jazeera – US, Iraq begin formal talks on winding down US-led military coalition. Al Jazeera
- Library of Congress – Iraq: Legislating the Status of the Popular Mobilization Forces. The Library of Congress
- Reuters – Iran-backed militias in Iraq ready to disarm to avert Trump wrath. Reuters
