O primeiro-ministro iraquiano, Mohammed Shia al-Sudani, afirmou que só será possível desarmar as facções armadas — muitas delas vinculadas às Forças de Mobilização Popular (PMF/Hashd al-Shaabi) — quando a coalizão internacional liderada pelos EUA concluir a retirada do país. Em entrevista publicada na segunda-feira (3/11), ele descreveu um roteiro no qual, com a saída total da coalizão, o governo aplicaria um “programa claro” para pôr todas as armas sob controle estatal, oferecendo duas portas de saída: incorporação às instituições oficiais de segurança ou entrada na política, sem armas. Al-Sudani argumentou que a ameaça do Estado Islâmico (ISIS) diminuiu e que a segurança interna permite encerrar a missão estrangeira. Reuters
A fala não surge no vácuo: é o capítulo mais recente de um processo que, desde 2024, vem reconfigurando a presença militar dos EUA e aliados no Iraque. Em outubro, o Pentágono já havia sinalizado redução do contingente e transferência gradual de responsabilidades ao Exército iraquiano — menos de 2 mil militares permaneceriam no país, com foco em cooperação bilateral e uma concentração maior em Erbil, no Curdistão, enquanto parte das capacidades se deslocaria para a Síria. Reuters
Do lado iraquiano, a mensagem combina soberania, pragmatismo e política doméstica. Al-Sudani disputa a reeleição neste mês e tenta se apresentar como o “construtor-em-chefe”: quem entrega infraestrutura, emprego e serviços — e, ao mesmo tempo, recoloca a segurança nas mãos do Estado, sem depender de forças externas nem tolerar arsenais paralelos. Ao vincular desarmamento ao fim da presença estrangeira, ele fala com bases nacionalistas e camadas populares cansadas de guerras, checkpoints e blecautes. Mas também sinaliza a Washington: a transição será mais estável se as milícias perderem a justificativa política que usam há anos — a “ocupação” — e se o Estado puder reintegrar combatentes com garantias econômicas e políticas. Reuters
A engenharia política do “monopólio da força” — e por que a esquerda vê espaço para pactos sociais
Uma leitura progressista da segurança pública no Iraque parte de um princípio elementar: monopólio legítimo da força exige Estado forte, serviços básicos que funcionam e portas de reintegração para quem largará as armas. Não se trata apenas de confiscar fuzis, mas de reconstruir confiança em instituições que convivem com falta de empregos formais, redes de patronagem e zonas cinzentas de autoridade.
Nesse ponto, a trajetória jurídica das PMF pesa. Em 2016, o Parlamento legalizou e enquadrou as PMF dentro da máquina estatal por meio de uma lei específica, criando a Comissão de Mobilização Popular. Ou seja, parte das facções já é estatal — o dilema é o que fazer com grupos paralelos, lideranças autônomas e linhas de comando fora do Ministério da Defesa. A lei de 2016 foi uma resposta política ao papel decisivo dessas forças na luta contra o ISIS, mas deixou pendentes limites operacionais, disciplina e integração plena na cadeia de comando. The Library of Congress
A própria cronologia da retirada mostra que a conversa é gradual. Planos e versões variaram: etapas de 2025 (com fechamento do Ain al-Asad e saídas de Bagdá) e fase final em 2026, com consolidação da presença apenas em eixos de cooperação e em bases curdas antes do término total. O primeiro-ministro reafirma agora que o horizonte de saída completa segue na mesa, enquanto fontes locais vinham projetando um encerramento por etapas desde o ano passado. O essencial, para o governo, é a sequência lógica: retirada completa → programa de desarmamento → armas sob o Estado. Reuters
Da perspectiva da esquerda democrática, isso abre espaço para políticas de DDR (desarmar, desmobilizar e reintegrar) com ênfase social: emprego civil (obras, energia, saneamento), educação técnica para ex-combatentes, saúde mental, e valorização de carreiras nas forças de segurança com formação em direitos humanos. É também o caminho para profissionalizar as instituições armadas e reduzir dependências clientelistas.
Washington, Teerã e o fio da navalha: por que a janela de oportunidade é real (e estreita)
Al-Sudani vive entre duas pressões: dos EUA, que exigem contenção das milícias alinhadas ao Irã, e de atores pró-Irã que exigem a saída total dos EUA. Em 2024 e 2025, ciclos de ataques e retaliações testaram o processo, com pausas e retomadas; relatórios de think tanks e veículos especializados registraram novas investidas contra posições ligadas aos EUA no meio de 2025, após meses de trégua. Cada míssil lançado erosiona a confiança necessária para acordos de desarmamento, além de tensionar os sindicatos do petróleo, transportes e serviços por medo de escalada. JINSA
Foi nesse tabuleiro de pressão cruzada que, em janeiro de 2024, Bagdá e Washington abriram a mesa formal para definir o futuro da coalizão. O desenho sempre foi duplo: encerrar a missão de combate ao ISIS no Iraque e reformatar a relação para cooperação bilateral, preservando coordenação na Síria onde o risco de rearticulação jihadista é maior. Em 2025, os EUA já reduziam efetivos e realocavam capacidades, enquanto negociavam entregas de bases ao governo iraquiano. Al Jazeera
Para a esquerda, evitar nova espiral militar é prioritário. Não porque dissuadir seja irrelevante — ela é necessária —, mas porque sem previsibilidade não há investimento, nem política social de largo alcance. Quanto mais perto do fim da presença estrangeira, mais plausível fica isolar facções recalcitrantes, ampliando o custo político de manter armas fora do Estado.
Economia política da segurança: gás, eletricidade e empregos contam tanto quanto tanques
O primeiro-ministro tem ancorado seu discurso numa pauta de reconstrução econômica: acordos com empresas norte-americanas (como GE, Chevron, ExxonMobil), meta de zerar o flaring de gás até 2027 e uso de recursos domésticos para reduzir importações de energia. Na leitura do governo, serviço público e obras formam a base material de uma segurança sustentável; só assim se reorganiza o mercado de trabalho e se quebra o incentivo para redes armadas capturarem territórios e pessoas. Reuters
Do ponto de vista social, isso passa por salários previsíveis, tarifas de energia estáveis, investimento em água e transporte — áreas onde orçamentos recordes foram anunciados para estabilizar a vida cotidiana. A esquerda aplaude o foco em serviços universais, mas alerta: sem transparência e controle social do gasto, o risco de patrimonialismo se mantém. Desarmar, aqui, depende também de emprego decente; força pública ligada ao Estado de direito; justiça que funcione; política tributária que financie o social sem punir os mais pobres. Reuters
O que muda “no dia seguinte” da retirada — e o que a esquerda propõe
Se a retirada avançar, três frentes precisam andar em paralelo:
- DDR com carteira assinada: pacotes de requalificação profissional voltados a energia, construção, saneamento, logística e agricultura, priorizando regiões mais militarizadas;
- Reforma policial/forças: padronização de treinamento, cadeia de comando unificada, mecanismos de ouvidoria e investigação independente de abusos;
- Pacto federativo: curdos, sunitas e xiitas em arranjos orçamentários transparentes para segurança, petróleo e serviços, com metas e indicadores públicos.
A premissa é simples: monopólio da força não se decreta, constrói-se. E só dura se a política entregar — luz, água, escola, hospital, trabalho e justiça.
O relógio eleitoral e a coreografia regional
Há também o tempo da política. Às vésperas das eleições de 11/11, al-Sudani tenta equilibrar: dizer ao eleitor que pode concluir a retirada sem abrir espaço a novas guerras e sem entregar a segurança a atores que escapam ao controle civil. A entrevista desta semana o coloca como árbitro entre Washington e Teerã, reforçando o discurso de neutralidade e de “Iraque primeiro” — um nacionalismo cívico, não sectário, com porta entreaberta para cooperação econômica com todos. Nesse modelo, EUA deixam de ser “botão vermelho” da segurança e viram parceiro econômico; e milícias deixam de ser “seguro” da comunidade e se convertem em trabalho e representação política sem armas. Reuters
Claro, não há garantias. Incidentes isolados podem provocar respostas militares e suspender conversas — lembrança amarga de 2024-2025, quando ataques e retaliações quase implodiram a mesa. Por isso, a transição precisa de válvulas de segurança: linhas diretas militares, mecanismos de verificação do cumprimento de cronogramas e coordenação com a ONU para monitorar DDR e direitos humanos. Reuters
Em suma, a fala de al-Sudani recoloca a política no centro da segurança. O “fim das armas fora do Estado” não virá por decreto nem por bombardeio, mas por pacto social, economia real e instituições que funcionam. Se a coalizão sair e o Estado ocupar o espaço com serviços e direitos, a janela de desarmamento deixa de ser slogan e vira política de Estado — a leitura de esquerda que prioriza vidas, trabalho e dignidade.
Parágrafo final
O Iraque vive uma chance rara de virar a página: encerrar a presença militar estrangeira, isolar quem insiste no fuzil e abrir caminho para um Estado que proteja, não terceirize a violência. Desarmar facções não é premiá-las; é retirar pretextos, oferecer alternativas e afirmar a lei. Com cronograma transparente, apoio internacional à reintegração e vigilância cidadã sobre o orçamento, a promessa de al-Sudani pode se transformar em segurança com justiça social — a única que dura.
Fontes
- Reuters – Iraq can disarm factions only when the US withdraws, prime minister says. Reuters
- Reuters – Pentagon says Iraq mission being scaled back. Reuters
- Al Jazeera – US, Iraq begin formal talks on winding down US-led military coalition. Al Jazeera
- Library of Congress (Global Legal Monitor) – Iraq: Legislating the Status of the Popular Mobilization Forces. The Library of Congress
- JINSA (PDF) – Iran Projectile Tracker: Attacks Against U.S. Troops Resume. JINSA
