País da África Ocidental chega às eleições gerais de 2025 sem Parlamento, com disputa sobre o fim do mandato presidencial, histórico de tentativas de golpe e explosão do tráfico de cocaína — cenário que testa limites da soberania nacional e da frágil luta pela democracia.
Quando os eleitores de Guiné-Bissau forem às urnas, em novembro de 2025, não estarão apenas escolhendo presidente e novos deputados. Estarão votando em meio a uma crise institucional prolongada, num país que soma pelo menos 18 tentativas ou golpes de Estado desde a independência, em 1973, e que volta a ser descrito por analistas como “narco-Estado” pela centralidade da cocaína em sua economia política.
O atual presidente, Umaro Sissoco Embaló, no poder desde 2020, busca um segundo mandato, algo raro na história recente do país. Sua reeleição é vista como incerta, depois de um mandato marcado por dissolução do Parlamento, sucessivas crises com as Forças Armadas e denúncias de que estaria estendendo seu tempo no cargo para além do permitido pela Constituição.
Inicialmente previstas para 2024, as eleições gerais foram adiadas sob o argumento de “instabilidade” e “falta de condições técnicas e financeiras”, e remarcadas para novembro de 2025. O adiamento acirrou a disputa entre governo e oposição: partidos reunidos na coalizão PAI Terra Ranka e outros aliados acusam Embaló de “manobra” para se manter no poder, em um país sem Parlamento desde dezembro de 2023.
Parlamento dissolvido, calendário quebrado e disputa sobre o mandato
A crise atual tem um marco claro. Em dezembro de 2023, após confrontos em Bissau entre elementos da Guarda Nacional e forças leais à Presidência, Embaló classificou o episódio como “tentativa de golpe” e decretou a dissolução da Assembleia Nacional Popular, recém-eleita meses antes e dominada pela oposição da plataforma PAI Terra Ranka, liderada pelo histórico PAIGC.
Desde então, o país vive sem Parlamento em funcionamento, governado por decretos presidenciais e por um primeiro-ministro nomeado diretamente por Embaló, após a demissão do chefe de governo indicado pela maioria opositora.
A decisão reforçou a impressão, entre críticos internos e externos, de que Guiné-Bissau caminha para um estado de exceção permanente, em que a regra constitucional é continuamente ajustada à conveniência do presidente de plantão.
Em 2025, a disputa ganhou novo capítulo: a oposição passou a defender que o mandato de Embaló se encerrou em 27 de fevereiro, cinco anos após sua posse, enquanto a Suprema Corte de Justiça decidiu que o prazo se estende até 4 de setembro.
Embaló, por sua vez, marcou as eleições para novembro de 2025 e anunciou oficialmente que concorre à reeleição, recuando de promessa anterior de não disputar um segundo mandato.
A coalizão opositora PAI Terra Ranka, apoiada por outros partidos, reagiu convocando protestos e chegou a ameaçar “paralisar o país” na data em que considera que o mandato presidencial terminou, acusando Embaló de prolongar seu governo sem base constitucional.
País “viciado” em golpes
Para entender por que as eleições de 2025 são consideradas de alto risco, é preciso olhar para o passado. Desde a independência de Portugal, em 1973/74, Guiné-Bissau atravessa ciclos de instabilidade que misturam intervenção militar, disputas intra-elite e tentativas frustradas de construção democrática.
Em 1980, um golpe militar derrubou o primeiro presidente, Luís Cabral, inaugurando um padrão de alternância entre governos civis e regimes de força. Nas décadas seguintes, o país enfrentou guerra civil, assassinatos políticos e sucessivas rupturas constitucionais — processo que pesquisadores descrevem como “democratização militarizada”, na qual eleições convivem com a tutela constante das Forças Armadas.
Nem a chegada do multipartidarismo, em 1991, conseguiu estabilizar o quadro. Desde então, presidentes eleitos enfrentam forte contestação, e nenhum conseguiu concluir dois mandatos.
Nos últimos anos, o país voltou a viver episódios de tensão aguda:
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Em fevereiro de 2022, Embaló afirmou ter sobrevivido a uma tentativa de golpe, após tiroteios próximos ao palácio presidencial;
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Em novembro/dezembro de 2023, confrontos entre Guarda Nacional e forças presidenciais foram novamente classificados pelo governo como “tentativa de golpe”, servindo de base para a dissolução do Parlamento;
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A oposição, por sua vez, acusa o presidente de praticar um “golpe constitucional” ao dissolver uma assembleia legitimamente eleita e concentrar poderes no Executivo.
Essa disputa pelo uso da palavra golpe revela uma batalha mais profunda pelo significado de democracia no país — e ajuda a explicar por que há receio de que o resultado das urnas, qualquer que seja, seja contestado por algum dos lados.
Cocaína, elites e concentrações de poder
A instabilidade política de Guiné-Bissau não pode ser separada de outro fator central: o papel do país como corredor estratégico do tráfico de cocaína entre América do Sul e Europa. Desde meados dos anos 2000, relatórios da ONU e de centros de pesquisa vêm apontando o território bissau-guineense como plataforma para desembarque e redistribuição de grandes carregamentos, em conluio com segmentos das Forças Armadas e da elite política.
Nos últimos anos, estudos mostram que o mercado da cocaína “voltou a florescer” no país, com toneladas de droga transitando pelo litoral, presença de traficantes estrangeiros em hotéis de luxo e queda do preço local de crack, indício de maior disponibilidade.
Para analistas, os lucros do tráfico financiaram uma sofisticada “rede de proteção” formada por oficiais, empresários e políticos, neutralizando tentativas de reforma e alimentando ciclos de crise.
Reportagens recentes da Reuters destacam que, mesmo em meio à campanha eleitoral de 2025, Guiné-Bissau continua a ser descrito como hub central da cocaína na África Ocidental, com o governo Embaló acusado pela oposição de não enfrentar, de forma séria, a penetração do crime organizado no Estado.
Sob a lente da esquerda, esse quadro é lido como expressão extrema de concentrações de poder ilegítimas: uma minoria armada e conectada a redes transnacionais captura o Estado, enquanto a maioria da população vive na pobreza e com serviços públicos precários.
ECOWAS, Rússia e o jogo geopolítico
A crise eleitoral de 2025 também se desenrola num tabuleiro regional tenso. A Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (ECOWAS), que já lida com golpes militares em Níger, Mali e Burkina Faso, enviou uma missão política a Bissau para mediar o impasse sobre o fim do mandato presidencial e o calendário eleitoral.
A tentativa fracassou: o presidente Embaló chegou a ameaçar expulsar a delegação, que deixou o país antes do previsto. O bloco regional e a ONU alertaram para o risco de ruptura institucional, mas o governo acusou a missão de interferência indevida em assuntos internos.
Ao mesmo tempo, Embaló intensificou sua aproximação com Moscou, viajando para se encontrar com Vladimir Putin e discutir cooperação econômica e de segurança — movimento que ecoa a reconfiguração geopolítica em outros países africanos, com maior presença russa em áreas antes dominadas por potências europeias.
Nesse contexto, parte da análise progressista enxerga o país no cruzamento entre diferentes vetores de imperialismo: o das antigas potências coloniais, o das instituições financeiras internacionais e o das novas parcerias militares com Rússia e outros atores. A defesa da soberania nacional aparece, então, não como alinhamento automático a um “bloco anti-imperialista”, mas como busca por margens reais de decisão popular numa economia dependente e capturada pelo narcotráfico.
Mídia, eleições e Contrainformação é poder
Do lado informativo, Guiné-Bissau sofre com forte dependência de agências estrangeiras e veículos internacionais, o que faz com que a narrativa sobre o país seja, muitas vezes, reduzida a dois clichês: “país dos golpes” e “narco-Estado”.
A crítica à mídia hegemônica — central no vocabulário de jornalistas de esquerda brasileiros — ajuda a iluminar esse problema: quem define o que é “instabilidade crônica” e o que é luta pela democracia em um país pequeno, periférico e com herança colonial pesada?
Enquanto grandes redes internacionais enfatizam a volatilidade e o risco, veículos locais, organizações da sociedade civil e pesquisadores insistem em temas pouco visíveis:
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o impacto da crise política na vida cotidiana, nos serviços de saúde e na educação;
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a atuação de movimentos de mulheres e jovens pela transparência e contra a violência;
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iniciativas para construir controles civis sobre militares e forças de segurança.
É nesse cenário que o lema “Contrainformação é poder” ganha relevância: ampliar o acesso a fontes locais, fortalecer rádios comunitárias, coletivos digitais e parcerias com mídias africanas progressistas é fundamental para romper o enquadramento simplificador imposto pela mídia neoliberal global.
Risco real: disputa nas ruas, nas urnas e nos quartéis
Às vésperas da votação, três frentes de tensão se cruzam em Guiné-Bissau:
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Institucional – um presidente que governa sem Parlamento desde 2023, com calendário eleitoral alterado e mandato em disputa;
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Militar – Forças Armadas e forças de segurança com histórico de intervenção política, em um contexto de múltiplas tentativas de golpe na última década;
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Criminal – redes de tráfico de cocaína com influência sobre setores do Estado, num mercado em franca expansão.
Se o resultado eleitoral for apertado — cenário considerado provável por analistas, com Embaló enfrentando forte concorrência de Fernando Dias e de outras lideranças apoiadas pelo PAIGC — há risco de contestação nas ruas e de pressões sobre militares, num país em que a fronteira entre crise política e quartelada sempre foi porosa.
Para movimentos sociais bissau-guineenses, a tarefa é dupla: impedir novas aventuras autoritárias e, ao mesmo tempo, evitar que o combate ao golpismo sirva de justificativa para reforçar apenas soluções de “segurança dura” apoiadas por parceiros externos, em detrimento de políticas sociais, emprego e fortalecimento da sociedade civil. Nessa perspectiva, segurança é pública, não apenas assunto de militares e acordos de cooperação com potências estrangeiras.
O resultado das eleições não resolverá, sozinho, décadas de instabilidade e desigualdade. Mas poderá indicar se Guiné-Bissau continuará presa a um ciclo de dissoluções, golpes e ajustes de conveniência — ou se abre, enfim, uma brecha para um projeto de país que combine luta pela democracia, combate ao narcotráfico e reconstrução institucional ancorada em participação popular e controle civil sobre as armas.
Fontes
Reuters – Guinea-Bissau opposition vows to ‘paralyse’ country in election timing row
Reuters – Guinea-Bissau president to run for second term, backtracking on vow to step down
Reuters – Guinea-Bissau’s Embalo eyes re-election as cocaine trade, instability thrive
Reuters – Guinea-Bissau’s Embalo faces tough re-election bid after unstable first term
AP News – West African mission sent to Guinea-Bissau to resolve dispute leaves following president’s threats
International IDEA – Guinea-Bissau – June 2023 / November 2024 Democracy Tracker
Wikipedia / IPU – 2023 Guinea-Bissau parliamentary election; Guinea-Bissau June 2023 election results
Democracy in Africa – Guinea-Bissau’s political crisis: a nation on the brink of authoritarianism
Global Initiative – Cocaine politics in West Africa – Guinea-Bissau’s protection networks
