Apesar da pausa nos combates mediada pelos EUA, população enfrenta colapso no saneamento, fome e chegada do inverno rigoroso
Gaza – O clima no terreno é de desespero contido. Desde que o cessar-fogo patrocinado por Washington entrou em vigor em 27 de outubro, os bombardeios em larga escala cessaram, mas a temperatura humanitária não para de subir. Organizações internacionais alertam que a faixa de Gaza vive uma das piores crises dos últimos anos, com o que está em jogo indo muito além da trégua militar: trata-se da sobrevivência de 2,3 milhões de pessoas em meio a chuvas torrenciais, destruição de abrigos improvisados e colapso quase total dos sistemas de saúde, água e saneamento.
Um cessar-fogo que não trouxe alívio
Nos bastidores das negociações que levaram ao acordo, interlocutores americanos, egípcios e qataris celebraram o entendimento como um passo de previsibilidade em um conflito que já durava mais de um ano. No entanto, no chão de Gaza, a correlação de forças entre a pausa nos combates e a capacidade de resposta humanitária continua dramaticamente desfavorável à população civil. Relatório conjunto da ONU divulgado nesta semana mostra que 96% dos habitantes dependem de ajuda externa para alimentação, e o estoque de itens básicos – tendas, cobertores, roupas de inverno e kits de higiene – está praticamente zerado.
Inverno rigoroso agrava a catástrofe
As chuvas que castigam a faixa desde o início de novembro transformaram acampamentos improvisados em lamaçais. “A atividade econômica é nula, o comércio foi destruído e o que sobrou de infraestrutura não resiste ao inverno”, resume um coordenador da UNRWA ouvido pela reportagem. Imagens aéreas revelam fileiras de barracas rasgadas e famílias inteiras abrigadas em escolas sem telhado ou em carcaças de prédios. O risco de surtos de cólera, hepatite A e doenças respiratórias cresce exponencialmente, sobretudo entre crianças – que representam quase metade da população gazense.
O que mudou com o cessar-fogo, na prática? A entrada de caminhões de ajuda aumentou marginalmente – de média diária de 80 antes da trégua para cerca de 250 nos últimos dias –, mas especialistas da OMS classificam o volume como “insuficiente para reverter o quadro catastrófico”. A curva de necessidades segue apontando para piora: o inverno rigoroso no Mediterrâneo Oriental deve trazer temperaturas próximas de 5 °C à noite, e a falta de roupas adequadas já causa casos de hipotermia.
Contexto: destruição sem precedentes
A destruição acumulada de 13 meses de guerra deixou 90% das moradias de Gaza inabitáveis ou seriamente danificadas, segundo o Banco Mundial. A rede de esgoto, atingida em mais de 70% de sua capacidade, despeja dejetos diretamente no mar ou em poças dentro dos acampamentos. “Estamos vendo o que os números mostram sem achismo: risco real de crise sanitária de grandes proporções”, alerta Margaret Harris, porta-voz da OMS em Genebra.
Movimentos no terreno e restrições israelenses
Do ponto de vista israelense, movimentos no terreno indicam cautela. Autoridades de Tel Aviv autorizaram a entrada de ajuda, mas mantêm restrições a itens de “dupla utilização” – como geradores, tubos de metal e certos medicamentos – sob alegação de segurança. Interlocutores do governo israelense consultados por agências internacionais afirmam que a ampliação do fluxo depende de “garantias” do Hamas sobre o destino dos reféns restantes e da não reconstituição de capacidade militar.
Articulação política no Cairo e em Doha
No Cairo e em Doha, mediadores egípcio e qatari trabalham para transformar o cessar-fogo temporário em algo mais duradoiro. Bastidores das conversas apontam para uma articulação política complexa que envolve troca de reféns por prisioneiros palestinos e possíveis eleições na Faixa. Enquanto isso, o Brasil – que ainda preside o G20 até o fim de novembro – tem usado sua posição para pressionar por maior abertura humanitária, cobrando “acesso irrestrito” de ajuda e citando o “Estado de Direito humanitário internacional”.
Tramitação da ajuda enfrenta entraves
A tramitação da ajuda humanitária enfrenta entraves burocráticos e logísticos. Caminhões ficam horas ou dias parados em Rafah e Kerem Shalom aguardando inspeção dupla – israelense e, por vezes, egípcia. Organizações humanitárias reclamam que o mecanismo atual funciona como uma articulação política que prioriza controle sobre velocidade.
O que está em jogo nos próximos 30 dias
O que está em jogo nos próximos 30 dias é crítico: a janela de inverno coincide com o fim da prorrogação automática do cessar-fogo. Caso não haja renovação ou acordo mais amplo, analistas temem retomada dos combates em escala ainda mais destrutiva. “A ancoragem humanitária é frágil”, resume um alto funcionário da ONU que pediu anonimato. “Sem fluxo contínuo e massivo de ajuda, qualquer trégua será apenas uma pausa antes do próximo colapso.”
Em meio ao lamaçal, crianças continuam brincando entre destroços. A imagem resume o paradoxo da faixa de Gaza em novembro de 2025: a guerra parou de explodir, mas a crise humanitária segue em ritmo acelerado. A comunidade internacional acompanha com apreensão os próximos movimentos no terreno. Por enquanto, o inverno chega antes da esperança.
Fontes
Reuters – Gaza faces humanitarian ‘catastrophe’ as winter sets in despite ceasefire
The Guardian – Gaza humanitarian crisis deepens as winter rains flood tent camps
AP News – UN warns of disease outbreak in Gaza as aid delivery remains restricted
AFP – Gaza: pluie et froid aggravent la crise humanitaire malgré la trêve
