O Brasil apresentou, nesta quarta (15.out), o relatório de uma coalizão de 35 ministros de Finanças com propostas para escalar o financiamento climático global a US$ 1,3 trilhão por ano, resposta central às demandas do Sul Global às vésperas da COP30, que ocorrerá em Belém (PA) em novembro. O documento de 111 páginas recomenda mudanças em classificações de risco (ratings), prêmios de seguro e nas prioridades de empréstimo de bancos de desenvolvimento, integrando a agenda climática ao coração da política macroeconômica. A publicação coincidiu com encontros preparatórios em Brasília, que avançaram na definição de métricas de progresso (incluindo adaptação), mas sem acordo vinculante para 2025.
Por que agora: a rota “Baku–Belém” e a meta de US$ 1,3 tri/ano
A meta de US$ 1,3 trilhão/ano até 2035 foi endossada no processo da ONU (CMA) e embala a chamada Baku-to-Belém Roadmap, esforço conjunto das presidências da COP29 (Azerbaijão) e COP30 (Brasil) para transformar ambição em fluxo financeiro real para países em desenvolvimento. A decisão 1/CMA.6 pede que “todos os atores” colaborem para elevar o financiamento a esse patamar, a partir de fontes públicas e privadas, com instrumentos não geradores de dívida e que criem espaço fiscal.
No front doméstico e diplomático, o Ministério da Fazenda do Brasil criou o Círculo de Ministros de Finanças da COP30, plataforma que, ao longo de 2025, coordenou consultas técnicas e políticas para alimentar o roteiro a ser levado a Belém. Entre as cinco prioridades do Círculo estão: reforma dos bancos multilaterais de desenvolvimento (MDBs); expansão do financiamento concessional; plataformas-país para atrair investimento sustentável; instrumentos inovadores para mobilizar capital privado; e aperfeiçoamentos regulatórios para finanças sustentáveis.
O que o relatório propõe (e o que ficou de fora)
O relatório dos 35 ministros — liderado pelo Brasil — dá diretrizes para governos, reguladores e instituições financeiras baratearem o custo de capital onde ele é mais alto: nos países que mais precisam adaptar-se e descarbonizar. Entre as propostas centrais, estão:
- Ratings e risco: fortalecer regulações de gestão de risco e incentivar bancos a precificar empréstimos pelo risco do projeto, e não apenas pelo risco soberano do país;
- Seguros: reduzir prêmios e expandir coberturas via arranjos de pooling e parcerias com o setor;
- MDBs: reorientar mandatos e carteiras para multiplicar a mobilização de capital privado;
- Mercados de carbono: construir uma coalizão para harmonizar padrões, com vistas a convergir para um preço global.
Houve, contudo, abertura de guarda na versão final: caiu o trecho de um rascunho de agosto que defendia explicitamente US$ 250 bilhões anuais em financiamento concessional até 2035. A supressão sugere a busca de consenso mais amplo, ainda que menos ambicioso na forma — sem fechar a porta para metas numéricas em 2026.
Onde Brasília quer chegar
Na leitura brasileira, ministros da área econômica são peças-chave: sentam nos conselhos dos MDBs e podem destravar gargalos que hoje encarecem projetos climáticos. “Finanças costumam ser o gargalo”, disse Tatiana Rosito, secretária de Assuntos Internacionais da Fazenda, ao defender “mainstreaming” da agenda climática na macro. O objetivo pragmático é reduzir spreads e aumentar previsibilidade para investimento em transição energética, adaptação, cidades, natureza e transição justa.
Esse desenho ecoa análises técnicas publicadas ao longo do ano por redes como a Climate Policy Initiative (CPI), que sustentam a necessidade de combinar garantias, estruturas de blended finance, instrumentos de hedge cambial e securitização para “puxar” capital privado a custo compatível com horizontes longos. O roteiro “Baku–Belém”, segundo a CPI, mira um mix entre setor privado, MDBs, fundos climáticos e cooperação Sul–Sul para bater o número de US$ 1,3 tri/ano.
O estado da arte: onde estamos e o que falta
Os MDBs informaram um recorde de US$ 137 bilhões em financiamento climático em 2024, movimento que “puxa” também o privado. Mas, mesmo com esse avanço, o “gap” para US$ 1,3 trilhão/ano é gigantesco — é preciso multiplicar por várias vezes a escala atual e baratear o funding para projetos em países com maior custo de capital.
Nos encontros técnicos em Brasília nesta semana, delegações de mais de 70 países ajustaram métricas de progresso, sobretudo em adaptação, mas não bateram o martelo sobre um acordo final na COP30 — a alternativa em debate é priorizar “pacotes menores” sem exigir unanimidade. A presidência da COP30, André Corrêa do Lago, e a ministra Marina Silva reforçaram a urgência de transição dos fósseis, tema que segue sensível para nações muito dependentes de petróleo, gás e carvão.
Viés de esquerda: finanças a serviço da vida, com justiça climática e soberania
Sob a ótica progressista, financiamento climático não é caridade: é reparação e investimento para evitar perdas humanas e econômicas maiores. A economia do clima — defendem centrais de esquerda — precisa romper com a lógica que cobra prêmios de risco desproporcionais do Sul Global e privatiza ganhos enquanto socializa perdas via dívida cara e choques climáticos.
1) Ratings que enxerguem o risco real — e não perpetuem o viés estrutural
As propostas do relatório para desacoplar a avaliação de crédito do CEP (Código de Endereço do País) e focar no risco do projeto são um passo civilizatório. Um parque solar com PPAs de longo prazo e garantias robustas não deve pagar o juro de uma crise política passageira. Ao empurrar ajustes regulatórios e transparência de dados (físicos e financeiros), o plano abre caminho para que seguros e garantias façam seu papel: mudar a curva de risco.
2) Bancos públicos como catalisadores, não substitutos
A esquerda sustenta que MDBs e bancos nacionais de desenvolvimento devem alavancar — e não apenas substituir — o capital privado. Isso significa padrões harmonizados, termos padronizados, uso estratégico de garantias e capital híbrido para “de-risking” onde o mercado não entra sozinho. É também papel dos MDBs ancorar moedas locais e proteger contra volatilidade cambial, que encarece projetos e pode arruinar cronogramas de obras.
3) Concessional onde ele é insubstituível: adaptação, natureza e transição justa
Ao sinalizar que o relatório recuou da meta explícita para US$ 250 bilhões/ano em concessional, cresce a responsabilidade de preservar o foco em áreas onde só o dinheiro barato destrava: adaptação (defesas contra extremos climáticos), natureza (florestas, água, solos) e transição justa (qualificação, compensação a trabalhadores e municípios). A falta de concessional nessas frentes trava pipeline e impede escala.
4) Carbono com integridade e preço, mas com salvaguardas sociais
A harmonização de padrões de mercados de carbono pode oferecer receita em moeda forte para países florestais — desde que amparada por direitos indígenas, consulta prévia e benefício local. Sem isso, o preço do carbono não se sustenta politicamente nem cria desenvolvimento.
5) Métricas que importam para gente real
O avanço em métricas de adaptação feito em Brasília precisa virar condição de desenho de projeto: quantas vidas protegidas, que infraestruturas foram resilientes, qual a redução de perdas econômicas? Para a esquerda, essa é a bússola — e não apenas toneladas de CO₂ evitadas.
O que observar até Belém
- Lista de medidas regulatórias que saem do papel (ratings, seguros, política de crédito dos MDBs);
- Sinalização em concessional para adaptação, natureza e transição justa;
- Arranjos de preço de carbono com integridade e salvaguardas;
- Pacotes “não consensuais” que possam ser anunciados na COP30 sem unanimidade, mas com impacto mensurável em 2026.
No bottom line, a agenda brasileira tem chance de virar o jogo se produzir uma combinação de alívio do custo de capital + escala de instrumentos + métricas sociais claras. Em um mundo que já sente a conta dos eventos extremos, adiar investimento é tornar a dívida maior — financeira e humana.
Parágrafo final
Se a “Rota a US$ 1,3 trilhão/ano” avançar com reformas financeiras e pactos de proteção social, a COP30 pode marcar a passagem de uma diplomacia de promessas para uma economia de entregas. A esquerda vê nesse roteiro a oportunidade de reconstruir a finança internacional para servir gente e natureza — e não o contrário. O teste, em Belém, será simples: quanto caiu o custo de capital, quanto subiu o volume mobilizado, e quem, concretamente, foi protegido.
Fontes
- Reuters – Brazil showcases finance ministers’ plan for $1.3 trln in yearly finance. Reuters
- UNFCCC – Baku to Belém Roadmap to 1.3T (Decision 1/CMA.6 e cronograma). UNFCCC
- Ministério da Fazenda (Brasil) – Brazil Launches COP30 Circle of Finance Ministers… gov.br
- Climate Policy Initiative – Advancing the Baku-to-Belém Climate Finance Roadmap. Climate Policy Initiative
- Reuters – Development banks’ climate finance hit record $137 billion in 2024. Reuters
