Na abertura da conferência, Brasil busca transformar discurso em implementação com um plano de financiamento de US$ 1,3 trilhão/ano, integração de mercados de carbono e foco em resultados verificáveis — sob forte escrutínio geopolítico e fiscal
A COP30 começou, oficialmente, nesta segunda-feira (10 de novembro de 2025), em Belém do Pará, com uma pauta clara e ambiciosa: mudar o eixo do debate de “anúncios” para “implementação”. Ao sediar a conferência no coração da Amazônia, o Brasil tenta catalisar compromissos concretos — dinheiro novo, regras funcionais e métricas de resultado — mantendo o foco em justiça climática e integridade ambiental. O contexto, porém, é tudo menos trivial: economia global fraca, tensões geopolíticas, dificuldades orçamentárias em países doadores e um cansaço político diante de promessas não cumpridas nos ciclos anteriores de negociações multilaterais.
No plano doméstico e simbólico, a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos atos de abertura reforçou o recado: investir em clima é mais barato — e mais racional — do que financiar guerras, além de representar uma oportunidade de desenvolvimento para a região amazônica e para o país. A agenda do dia inaugural também destacou a participação de lideranças internacionais e premiados em Economia, sinalizando o esforço de aproximar finanças públicas e privadas do desafio da transição.
O que está em jogo: credibilidade, governança e escala
A experiência das COPs mostra que a credibilidade do regime climático depende menos de retórica e mais de três entregas: (1) financiamento acessível para quem mais precisa; (2) regras simples e integradas para os mercados de carbono; (3) métricas independentes que conversem com a vida real — de cidades expostas a extremos climáticos a cadeias produtivas que precisam reduzir emissões sem perder competitividade. É justamente nesse tripé que o Brasil tenta posicionar sua liderança, propondo que Belém seja lembrada como “a COP da implementação”.
No front financeiro, o país apresentou, às vésperas da abertura, o Baku to Belém Roadmap — um plano com quase 100 páginas que mira US$ 1,3 trilhão por ano em financiamento climático global, combinando reforma de bancos multilaterais, redução do custo de capital no Sul Global, novas garantias e melhor desenho de instrumentos para atrair capital privado. A proposta reconhece que metas climáticas não se realizam sem escala financeira e sem simplificar o acesso de países vulneráveis a recursos previsíveis. O pano de fundo político, contudo, é desafiador: doadores apertados fiscalmente, prioridades concorrentes e divergências sobre o papel de fundos florestais de grande porte.
O mesmo vale para o discurso internacional. Na sessão de abertura, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou que falhar na meta de 1,5 °C é “falha moral”, reforçando a urgência de abandonar a inércia e acelerar a transição com pragmatismo. Para um acordo que depende de confiança mútua, a mensagem é direta: sem dinheiro novo, sem datas críveis e sem mecanismos de execução verificáveis, a promessa do Acordo de Paris continuará distante.
Financiamento: da contabilidade ao desembolso
O Baku-Belém tenta sair do terreno da retórica e avançar em desenho institucional. A estratégia parte de cinco frentes: reformar o mandato de bancos multilaterais para assumir mais risco; ampliar garantias e acelerar due diligence para projetos verdes; reduzir a alavanca da dívida nos países mais frágeis; criar pipelines de projetos com governança robusta; e alinhar padrões de mensuração de impacto. No Brasil, o Ministério da Fazenda organizou, desde abril, um Círculo de Ministros das Finanças da COP30 para amadurecer a proposta e preparar recomendações à presidência da conferência. Em termos práticos, fala-se em cronogramas, indicadores, janelas de risco e auditorias independentes — os elementos que transformam promessas em desembolsos.
Ainda assim, há obstáculos. A recusa inicial do Reino Unido em aportar no Tropical Forests Forever Facility — veículo proposto pelo Brasil para mobilizar US$ 125 bilhões para conservação — ilustra o ceticismo de doadores quanto à governança de mecanismos de grande escala e à adicionalidade efetiva. A reação brasileira foi manter a diplomacia ativa e buscar uma coalizão de países e instituições dispostos a testar novos formatos de financiamento de base florestal. A próxima quinzena dirá se o plano angaria compromissos nominais suficientes para ancorar o mercado e sinalizar previsibilidade.
Regras para o carbono: integridade e interoperabilidade
O outro pilar de Belém é a tentativa de integrar mercados de carbono. Ao avançar na regulação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), o país envia dois sinais: (1) o carbono terá preço e (2) a contabilidade deverá ser compatível com padrões internacionais, para reduzir custo de compliance e evitar dupla contagem. Do ponto de vista de política pública, a meta é alinhar incentivos econômicos a cortes reais de emissões e reduzir o espaço para greenwashing. Do ponto de vista empresarial, a previsibilidade regulatória é tão relevante quanto o nível de preço: sem regras claras e auditáveis, o mercado não escala e a precificação perde credibilidade.
Integridade também significa inclusão. Projetos de carbono florestal e de uso da terra precisam respeitar direitos territoriais e assegurar repartição justa de benefícios a povos indígenas, comunidades tradicionais e produtores familiares — base histórica de conservação. Isso implica desenho contratual, monitoramento por satélite, consulta livre e informada e mecanismos de governança que blindem a captura por intermediários. A discussão técnica do Artigo 6 do Acordo de Paris permanece densa, mas a orientação de Belém é pragmática: interoperabilidade, verificação independente e foco em impacto mensurável.
Amazônia: menos vitrine, mais política pública
Sediar a COP às margens da maior floresta tropical do planeta carrega simbologia, mas o teste real é de política pública. A abertura trouxe o lembrete óbvio e necessário: sem segurança jurídica no campo, combate a crimes ambientais, zoneamento econômico-ecológico e infraestrutura básica (logística, conectividade, energia), a bioeconomia não escala. A narrativa da “nova economia da floresta” só se sustenta com cadeias de valor rastreáveis, crédito acessível, assistência técnica e compras públicas como âncora — algo que interessa tanto a governadores da região quanto a setores intensivos em matéria-prima, como alimentos, moda e construção. A conferência, nesse sentido, é parte de um processo mais longo de reformas regulatórias e arranjos produtivos.
Geopolítica do clima: ausências, coalizões e a janela de oportunidade
A COP30 acontece sob “céu carregado” na política internacional. Aliados tradicionais têm menos apetite fiscal; mudanças de governo recalibram prioridades; e a concorrência tecnológica entre grandes potências influencia cadeias de suprimento verde. Ainda assim, fóruns multilaterais mantêm valor único: dão voz a países vulneráveis e permitem que coalizões temáticas — como florestas, adaptação e cidades resilientes — avancem em acordos setoriais mesmo quando o consenso pleno é difícil. Essa “geopolítica do possível” pode entregar resultados parciais, porém relevantes, especialmente quando combinada a iniciativas nacionais robustas.
Implementação: o que observar nos próximos dias
Para além dos discursos, a utilidade prática de Belém dependerá de alguns marcos verificáveis:
- Compromissos financeiros com calendário — metas anuais, fontes, instrumentos, critérios e auditorias. A sinalização mínima é um pacote com milestones até 2030, capaz de reduzir o custo de capital para projetos em países vulneráveis.
- Avanço regulatório no Artigo 6 — maior clareza sobre contabilidade, integridade e interoperabilidade entre plataformas de crédito. Isso reduz incerteza e ajuda a preço-sinal guiar investimentos.
- Integração do SBCE a padrões globais — detalhamento técnico que permita ao Brasil atrair investimentos e evitar barreiras comerciais travestidas de “ajustes de fronteira”.
- Adoção de métricas sociais e territoriais — indicadores para aferir se o dinheiro chega a quem protege a floresta e a quem sofre os piores impactos dos extremos climáticos.
Se esses eixos avançarem, a COP30 pode recolocar o multilateralismo climático nos trilhos, com pragmatismo. Se ficarem no papel, o risco é ampliar a distância entre promessas e resultados — e corroer a confiança que sustenta o regime.
Ao longo do dia de abertura, a mensagem dos anfitriões foi consistente: não basta anunciar; é preciso entregar. A cobrança é compartilhada — dos países ricos, que historicamente prometeram mais do que desembolsaram; e das economias emergentes, que precisam fortalecer salvaguardas, acelerar licenças, desenhar projetos financiáveis e medir resultados com transparência. Belém, por sua localização e pelo acúmulo de políticas recentes, oferece um laboratório real para testar soluções: de sistemas de alerta e combate a incêndios a consórcios para saneamento, de bioindústrias a corredores logísticos de baixo carbono.
Como toda conferência multilateral, a COP30 refletirá o mundo como ele é: disputas, limitações e consensos possíveis. Um olhar equilibrado sugere que nenhum ator isolado tem as chaves do sucesso — nem governos nacionais, nem instituições multilaterais, nem o setor privado. O arranjo vencedor será, inevitavelmente, cooperativo e incremental: calibrar riscos, compartilhar custos, medir ganhos e corrigir rumos com base em evidências, não em slogans. Se Belém conseguir ancorar esse espírito em acordos e cronogramas concretos, terá cumprido sua tarefa histórica.
Ao fim, o saldo deste primeiro dia permite um diagnóstico: há senso de urgência, há propostas colocadas e há um país-anfitrião disposto a assumir riscos políticos para avançar. Falta, como sempre, o que não cabe nos palcos — diligência técnica, engenharia financeira e persistência administrativa. A Amazônia lembra: o tempo climático não espera calendário diplomático. Mas é justamente por isso que a implementação, palavra-chave desta COP, precisa sair do discurso e entrar no orçamento.
Fonte:
The Guardian – Cop30 live: crucial climate talks begin in Brazil as hosts insist summit must lead to ‘implementation’.
