Um encontro na Amazônia coloca a justiça climática no centro — e expõe a resistência das potências ricas em financiar a transição que o Sul Global já paga com vidas e florestas
A 30ª Conferência do Clima da ONU (COP30) começou hoje em Belém, no coração da Amazônia, com uma pergunta incontornável: quem vai pagar a conta da transição ecológica — e quem continuará pagando o preço do atraso? Do cais do Ver-o-Peso aos corredores do centro de convenções, o tom é de urgência e de disputa. O Brasil, país-anfitrião e símbolo planetário da biodiversidade, tenta enquadrar o encontro como uma “COP da implementação”, com foco em dinheiro na mesa, integração de mercados de carbono e proteção efetiva de florestas. Mas, como admite a própria diplomacia brasileira, o cenário é o mais tenso da década: a cooperação climática está sofrendo pressão direta de um mundo mais fragmentado, de economias em desaceleração e de interesses fósseis ainda poderosos.
Do ponto de vista de quem vive nas margens da floresta — povos indígenas, comunidades ribeirinhas, agricultores familiares — a agenda é concreta: adaptação às secas e cheias extremas, combate ao fogo, renda digna para produzir sem desmatar, proteção territorial e acesso a tecnologias. Do ponto de vista de quem decide a liberação de trilhões de dólares nos grandes centros financeiros, a disputa é outra: como compartilhar riscos, quem define as regras dos créditos de carbono, como calibrar o papel dos bancos multilaterais e, sobretudo, como manter a competitividade de cadeias produtivas que, até ontem, lucravam com a destruição. Em Belém, esses dois mundos se encontram — e a pergunta sobre quem manda em que tipo de futuro volta à mesa com toda a força.
Uma COP no limite do consenso
No rito das COPs, a palavra “consenso” costuma esconder assimetrias. Países mais ricos exigem metas e metodologias “robustas”; países em desenvolvimento pedem previsibilidade de financiamento, flexibilidade regulatória e transferência de tecnologia. Em 2025, a clivagem é mais nítida: metade das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) atualizadas vem do Sul Global, enquanto grandes emissores chegaram sem chefes de Estado e com sinais ambíguos sobre ambição. O risco é transformar a “COP da implementação” na “COP da postergação”.
O Brasil tenta quebrar essa inércia com o “Baku to Belém Roadmap”, uma proposta para escalar o financiamento climático a US$ 1,3 trilhão por ano — volume compatível com a tarefa de adaptar cidades e campos, proteger biomas e acelerar a energia limpa. A ideia é mobilizar recursos públicos e privados, reduzir o custo de capital para o Sul Global e empoderar bancos multilaterais a assumir mais risco. O plano, apresentado na semana que antecedeu a abertura, não é um slogan; é uma engenharia institucional e financeira com ambição de virar norma. Mas a reação inicial revela o tamanho do obstáculo: governos centrais, como o do Reino Unido, resistem a aportar em instrumentos florestais de larga escala, como o Tropical Forests Forever Facility. O choque entre a urgência da Amazônia e a parcimônia do Norte desenvolvimentista está, novamente, à vista.
Carbono não é ficção: mercado, lei e justiça
Outra frente em Belém é a integração de mercados de carbono. O Brasil chegou à COP30 com a arquitetura de um sistema nacional de comércio de emissões (SBCE) e com a tese de que alinhar plataformas nacionais e regionais pode dar escala e transparência à precificação do carbono. Isso importa por três razões: cria incentivos econômicos reais para cortar emissões; reduz o risco de “greenwashing” ao estabelecer contabilidade interoperável; pode canalizar recursos para quem preserva. Mas há um porém: crédito de carbono não pode virar licença para poluir — especialmente para setores fósseis que capturam a regulação e empurram o pico de emissões para um futuro que nunca chega. O desenho das regras sob o Artigo 6 do Acordo de Paris, portanto, é uma batalha técnica com consequências morais.
Do ponto de vista progressista, falar de mercados só faz sentido se os fluxos financeiros chegarem a comunidades e territórios que mantêm a floresta em pé, com governança social e consentimento livre, prévio e informado. Isso significa incluir cooperativas, associações indígenas e quilombolas na titularidade dos projetos, garantir repartição justa de benefícios e blindar as iniciativas contra a financiarização predatória que já marcou fases anteriores do “desenvolvimentismo verde”. Em outras palavras: o carbono tem dono — e não é a corretora sediada em Manhattan.
Amazônia no centro — e não como cenário
Há um ganho simbólico e estratégico em realizar uma COP às margens da maior floresta tropical do planeta. O discurso de abertura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva recupera uma linha histórica: mais de 30 anos depois da Cúpula da Terra no Rio, a Convenção do Clima volta ao país onde nasceu — agora diante de impactos climáticos mais severos e de um mundo em disputa aberta pela rota tecnológica da transição. Lula insiste em justiça e soberania: proteger a Amazônia não é “terceirizar” o desenvolvimento, mas liderar uma nova economia de base florestal, com ciência, bioindústria, rastreabilidade e inclusão. O recado também mira quem, no Brasil, ainda aposta em expansão fóssil: não há contradição maior que perfurar novos poços enquanto se pede dinheiro para salvar a floresta.
Para movimentos sociais, povos originários e juventudes, Belém é mais que palco. É espaço de disputa de narrativa e de política pública. A pauta vai de direitos territoriais e demarcações à responsabilização de cadeias globais — gado, couro, soja, mineração, moda — que externalizam custos socioambientais e concentram lucros. Setores como o fashion, frequentemente ausentes do debate substantivo, são chamados a abandonar o marketing verde e encarar métricas de descarbonização, rastreabilidade e remuneração justa. A floresta que veste o mundo pede que o mundo, enfim, a vista com respeito.
O impasse estrutural: dinheiro barato para quem precisa, regras duras para quem pode
Se há uma síntese dos nós de Belém, ela é financeira. Países vulneráveis à crise climática pagam juros mais altos, têm menor espaço fiscal e enfrentam choques sucessivos (clima, saúde, guerra) que elevam a pobreza e a insegurança alimentar. A proposta brasileira de escalar o financiamento para US$ 1,3 trilhão/ano tenta corrigir parte dessa distorção ao convocar bancos multilaterais a assumir mais risco e ao convocar o setor privado a abandonar a lógica de “projetos boutique”. O que está em jogo é transformar promessas em pipeline de investimentos reais: adaptação urbana, agricultura de baixo carbono, energia renovável distribuída, restauração florestal em escala e indústria verde. Sem isso, a conversa sobre metas vira contabilidade de PowerPoint.
Ao mesmo tempo, cresce a percepção de que negociar em plenárias não basta. A transição está avançando por tecnologia e mercado — de baterias a energia solar — com velocidade maior que a da diplomacia, como notam analistas de energia. O risco é criar duas realidades: uma economia limpa que segue, e uma governança climática que patina. Para evitar a cisão, Belém precisa entregar sinalizações críveis: regra clara para o carbono, cronograma para eliminar subsídios fósseis, metas de adaptação financiáveis e um calendário de desembolsos verificável.
A geopolítica das ausências e das alianças improváveis
O comparecimento desigual de líderes ilustra a fadiga do multilateralismo — e, paradoxalmente, sua indispensabilidade. Mesmo sem a presença de algumas chefias de Estado, a COP30 reúne quase 200 delegações. É o único espaço onde Tuvalu, Paquistão e Sudão podem cobrar justiça diretamente dos maiores emissores, e onde Brasil, Índia e China podem operar táticas de coalizão para arrancar compromissos. A notícia ruim: o vácuo de ambição das potências ricas alimenta ceticismo e abre flancos para retrocessos, como tentativas de relativizar metas e empurrar custos para quem menos emitiu. A notícia boa: o Sul Global está mais coordenado e vocal, e a Amazônia dá legitimidade a uma plataforma que combina justiça social, ciência e economia verde.
No meio dessa dança, desenha-se uma agenda de convergências possíveis: cooperação em sistemas de alerta e combate a incêndios, rastreabilidade de commodities, proteção de defensores ambientais, financiamento híbrido para bioeconomia e cidades resilientes. Não é pouco. Em um mundo de guerras e “desglobalização”, fazer o básico — e fazê-lo bem — já muda trajetórias.
Implementar é verbo no presente
Belém não pode ser só um marco geográfico; precisa ser um ponto de inflexão político. “Implementar” significa, aqui, sair da retórica e entrar no orçamento. Significa que uma família ribeirinha consiga crédito barato para reflorestar a margem do rio; que uma comunidade indígena tenha internet e energia limpa para gerir seu território; que uma prefeitura no semiárido acesse recursos para drenagem e moradia digna; que um produtor de leite no Sul receba assistência técnica e pague menos juros para integrar árvores e pasto. Implementar é tornar real, no cotidiano, o que foi negociado em planilhas diplomáticas. É essa tradução — com participação social, transparência e controle — que define se a COP30 terá sido um rito ou um começo.
No curto prazo, os sinais a observar são concretos: haverá cronograma para o tal US$ 1,3 trilhão/ano? As regras do Artigo 6 protegerão integridade ambiental e direitos de povos e comunidades? Bancos multilaterais anunciarão janelas de risco e garantias mais justas? Haverá compromisso verificável com o fim dos subsídios fósseis? O que Belém pode prometer ao mundo é menos glamour e mais governança — menos “announceables”, mais desembolsos. E isso, nesta década, vale ouro.
Por fim, há uma dimensão democrática que não se mede em gigatoneladas: a de ouvir quem sempre foi silenciado. A floresta não é vazia, nem a transição é neutra. Decidir “como” e “para quem” será a nova economia verde é escolher um projeto de país — e de mundo. Em Belém, a esquerda que coloca a vida, o trabalho e o território no centro tem a tarefa de transformar a razão moral em arranjo institucional. Se conseguir, não será só uma vitória do Brasil, mas da ideia de que desenvolvimento e justiça cabem na mesma frase.
O que a COP30 já provou, no seu primeiro dia, é que não há tempo para a velha política do adiar. A Amazônia, o semiárido, as periferias urbanas e as ilhas do Pacífico estão dizendo o óbvio: ou a conta fecha para todos, ou não fecha para ninguém. E, se for para escolher, que se escolha pelo lado da vida.
A história que sairá de Belém — e que nossa geração contará — dependerá do tamanho da coragem política para romper com um passado extrativista e financiar, de fato, um futuro vivo. O Brasil ofereceu uma estrada: financiamento em escala, carbono com integridade, direitos no centro. Cabe às potências ricas e às instituições financeiras atravessarem a ponte. A Amazônia não espera; ela resiste. E resiste pedindo menos promessas e mais implementação.
Fonte:
Reuters – Brazil launches plan to scale climate finance to $1.3 trillion a year.
