Ao interromper o fluxo de dados com agências norte-americanas por causa de ataques a lanchas suspeitas no Caribe, governo colombiano testa limites da soberania nacional, expõe a batalha de narrativas e reacende o debate sobre Estado de Direito no combate ao narcotráfico.
A decisão do presidente colombiano, Gustavo Petro, de ordenar a suspensão do compartilhamento de inteligência com os Estados Unidos marcou uma guinada na relação mais longeva da região no front antidrogas. Em mensagem publicada no X, o mandatário determinou que os serviços de inteligência da força pública “suspendam envios de comunicações e outros tratos com agências de segurança norte-americanas” enquanto perdurarem os ataques com mísseis a embarcações no Caribe, operações que críticos equiparam a execuções extrajudiciais. Para Petro, “a luta contra as drogas deve ser subordinada aos direitos humanos dos povos caribenhos”. O movimento ocorre após meses de operações que, segundo números divulgados por Washington, deixaram ao menos 75 mortos desde agosto, e coincide com relatos de escalada militar norte-americana na região.
A reação pública não tardou. Reportagens destacaram que, além do rompimento de confiança com Bogotá, a estratégia de “ataques preventivos” contra lanchas rápidas — primeiro no sul do Caribe, depois se estendendo ao Pacífico oriental — vem gerando atritos diplomáticos com outros países e alimentando um contencioso jurídico sobre a legalidade do uso de força letal em alto-mar. Analistas também notaram que a Casa Branca não detalhou quais fluxos concretos de informação seriam afetados pela suspensão, um ponto sensível num ecossistema de cooperação que inclui troca de interceptações, listas de alvos e dados de rastreamento.
Enquanto isso, veículos internacionais registraram que a tensão encaixa numa moldura política mais ampla em Washington, onde a crise de governança doméstica convive com decisões de segurança no entorno estratégico dos EUA. Em cobertura ao vivo, o Guardian anotou que, além da Colômbia, o Reino Unido também revisou seus canais de inteligência diante de preocupações legais sobre o uso final de dados em operações letais contra supostos traficantes. O Pentágono, por seu turno, confirmou o deslocamento de um grupo de ataque de porta-aviões para a América Latina, alimentando a percepção de um ciclo ascendente de dissuasão militar no Caribe.
Fato, contexto e a escolha das palavras
Do ponto de vista estritamente factual, três elementos estruturam a notícia: (1) a ordem presidencial para interromper o compartilhamento de inteligência com os EUA; (2) o nexo causal declarado por Petro — os ataques com mísseis a lanchas suspeitas, em que morreram dezenas de pessoas; e (3) a incerteza operacional sobre o que, na prática, deixa de ser compartilhado entre Bogotá e Washington. Em termos de contexto, vale lembrar que a parceria antidrogas EUA–Colômbia foi, por décadas, o paradigma de cooperação hemisférica — combinando assistência técnica, disuasão no mar e operações de interdição — e passou por variações conforme o pêndulo político nos dois países. A escolha do léxico — “execuções extrajudiciais”, “autodefesa”, “ataques indiscriminados” — não é detalhe: ela formata a percepção pública e, portanto, o custo político de recuos ou endurecimentos.
Para quem lê com viés de centro-direita, esse é justamente o ponto: separar fatos de narrativas. Fato: houve ordem de suspensão de inteligência. Fato: os EUA admitem ataques letais a embarcações supostamente vinculadas a cartéis. Fato: há mortos e a contabilidade vem sendo apresentada por Washington. Narrativas: se eram “lanchas com peixe” ou “lanchas com cocaína”; se a resposta foi “proporcional” ou “excesso”; se houve “impunidade” prévia que justificasse elevar o nível do uso de força. Ao jornalismo cabe checar, mas também nomear: o que é tese política, o que é prova material, e onde entra o Estado de Direito — isto é, regras claras, transparência e controle.
Da parceria histórica ao choque de doutrinas
Colômbia foi, desde o Plan Colombia, um dos pilares da estratégia americana de lei e ordem no hemisfério: interdição marítima, cooperação de inteligência, treinamento e tecnologia. O eixo comum era deteriorar as cadeias logísticas do tráfico — reduzir a capacidade de transporte, destruir “narco-lanchas”, atacar depósitos e centros de comando. Na prática, contudo, a doutrina de “ataque antecipado” contra vetores móveis sempre habitou uma zona cinzenta entre soberania nacional de terceiros países, regras de engajamento em mar internacional e proteção de civis. Ao suspender a cooperação, Petro questiona justamente essa zona cinzenta: se a guerra às drogas pode operar fora de marco jurídico verificável, quem presta contas a quem quando há mortos que não passaram por juiz e sentença?
É nesse tabuleiro que surgiu a informação — veiculada por imprensa europeia — de que o Reino Unido teria reavaliado a própria colaboração, por receio de que dados compartilhados estivessem subsidiando alvos letais sem anteparo legal suficiente. Independentemente de confirmação integral, o sinal geopolítico foi claro: quando aliados começam a pisar no freio, a legitimidade da operação sai do campo técnico e entra no político-jurídico. Ao mesmo tempo, a presença naval ampliada dos EUA no Caribe reforça a face disuasória da campanha, com efeito prático sobre rotas e custos dos cartéis — e efeito político sobre governos que são cobrados por resultados internos de segurança
Bogotá, por sua vez, precisa calibrar custo-benefício. A interrupção da inteligência pode afetar investigações financeiras, rastreamento de comunicações e identificação de redes logísticas — ferramentas importantes para atacar o Brasil que dá certo da segurança regional: previsibilidade, comércio, regras claras. Para uma agenda conservadora, a pergunta é objetiva: a medida aumenta a tragédia humanitária ou abre espaço para cultura do crime? A resposta — qualquer que seja — precisa de métricas transparentes: apreensões, prisões de alto escalão, rotas desviadas, redução de homicídios em zonas costeiras. Sem indicadores críveis, o debate vira engenharia de narrativa.
Lei e ordem, soberania e a régua do Estado de Direito
Uma leitura de direita liberal, que privilegia segurança, mercado e instituições, costuma partir de quatro premissas:
1) Sem lei e ordem, não há liberdade. O combate ao narcotráfico depende de desorganizar o negócio — e isso envolve interdição dura em mar e terra. Em tese, ataques a vetores claramente hostis são parte desse pacote. O risco é a erosão do Estado de Direito quando a exceção vira regra: sem perícia independente, sem cadeia de custódia, sem auditoria de alvos, abre-se a porta para o arbítrio. A saída institucional é reforçar regras de engajamento, publicar após-ação (AAR) com dados auditáveis e submeter incidentes com mortos civis a escrutínio externo.
2) Soberania nacional não é cheque em branco para cartéis. A Colômbia tem razão ao defender que operações que respinguem em seu território ou em seus nacionais obedeçam a parâmetros legais. Mas, do outro lado, Washington argumenta que o narcotráfico é uma ameaça transnacional cujo estatismo falhou em conter; logo, disuasão e uso calibrado da força em alto-mar seriam instrumentos legítimos. Na prática, o equilíbrio se mede no detalhe: targeting baseado em inteligência robusta (e não em suposição), comunicação prévia com capitães quando possível, captura quando viável e força letal como último recurso — tudo documentado.
3) Transparência mata narrativas. Em disputa de versões, dados operacionais públicos — logs de radar, telemetria, imagens de satélite com georreferência, placas térmicas — reduzem espaço para “lacração” e “cancelamentos” discursivos. Mais do que spin, o que sustenta confiança é a prova. Se o governo colombiano quer reordenar a cooperação, pode propor um painel binacional de verificação com observadores convidados, prazos e metodologia forense clara. Se Washington quer manter a régua de lei e ordem, que aceite auditorias de incidentes com vítimas civis. É o antídoto contra o que a direita chama de engenharia de narrativa.
4) Custo econômico e social precisa entrar na conta. Interdições afetam seguros marítimos, rotas comerciais e pescadores artesanais; ao mesmo tempo, cartéis corroem a economia local, distorcem preços e semeiam violência. A régua de políticas públicas precisa ir além do “quem gritou mais alto”: metas de redução de oferta, desmantelamento de redes financeiras, queda de homicídios e respostas rápidas a danos colaterais (indenização e cuidados). Sem isso, o debate cai na vala comum da demagogia.
Três trilhos para sair do impasse
Trilho 1: Protocolo jurídico-operacional de alto padrão. É viável redesenhar a cooperação com cláusulas explícitas de direitos humanos e devido processo, sem desmontar a capacidade de interdição. A Colômbia pode condicionar o reenvio de inteligência a quatro salvaguardas: (a) targeting baseado em múltiplas fontes convergentes; (b) preferência por interceptação e captura; (c) relatório pós-ação público quando houver morte; (d) comissão externa para incidentes com civis. Isso preserva soberania e reafirma o Estado de Direito sem entregar terreno ao crime organizado.
Trilho 2: Auditoria independente de episódios letais. A imprensa internacional já noticiou números e alegações; é hora de peritos independentes checarem crateras, vetores, trajetórias, comunicações rádio. Ao final, ou confirma-se excesso e se cobra, ou valida-se a operação e se mantém a doutrina com ajustes. Ganham as instituições; perde a narrativa descolada de evidência.
Trilho 3: Reequilíbrio regional e diplomacia pública. Em paralelo, há um tabuleiro maior: deslocamento de meios navais norte-americanos, vizinhos inquietos, rivais ideológicos mobilizando retórica. Se a Colômbia quer liderança responsável, precisa explicar ao público — com números e marcos — como vai manter a segurança costeira, blindar populações e sufocar finanças de cartéis durante a suspensão. Comunicação estratégica não é “lacração”; é prestação de contas.
No fim, a ordem de Petro é um estalo que obriga o hemisfério a discutir o que ficou cômodo demais: qual é a régua de lei e ordem aceitável numa guerra que já dura meio século? A direita pedirá firmeza e previsibilidade; a esquerda falará de direitos e história. Entre um e outro, há um terreno sólido chamado Estado de Direito. Se Bogotá e Washington toparem pavimentá-lo com transparência, auditoria e regras, o debate sai da espuma da engenharia de narrativa e volta para onde sempre deveria estar: resultados concretos contra o crime sem atropelar pessoas e instituições. Sem isso, seguimos reféns de slogans — e os cartéis agradecem.
Fontes:
The Guardian – Live blog: US politics and global fallout; menção à suspensão de inteligência por Colômbia e Reino Unido e ao deslocamento do USS Gerald R. Ford.
Al Jazeera – Colombia’s Petro halts intelligence sharing with US over Caribbean strikes.
Euronews – Colombia to suspend intelligence cooperation with US over strikes on drug vessels.
Anadolu Agency – Colombia halts intelligence sharing with US over strikes in Caribbean.
