Designação do Cartel de los Soles como organização terrorista estrangeira amplia a pressão sobre Nicolás Maduro, tensiona a região e reabre o debate sobre onde termina o crime organizado e onde começa o terrorismo de Estado.
A decisão dos Estados Unidos de classificar o Cartel de los Soles — apontado por Washington como uma rede de narcotráfico chefiada por Nicolás Maduro e altos quadros do chavismo — como organização terrorista estrangeira marca um novo patamar na disputa geopolítica em torno da Venezuela. Segundo o Departamento de Estado, o grupo, baseado no país caribenho, teria capturado partes das Forças Armadas, da inteligência, do Legislativo e do Judiciário venezuelanos para impulsionar o tráfico de drogas e apoiar outras organizações consideradas terroristas, como o Tren de Aragua e o cartel de Sinaloa.
Na prática, a medida consolida uma leitura de “narcoterrorismo de Estado” em Caracas e insere Maduro no mesmo enquadramento de chefes de cartéis mexicanos e redes transnacionais de crime organizado. Ao mesmo tempo, acende alertas entre especialistas sobre o risco de ampliar o conceito de terrorismo a ponto de confundi-lo com guerra híbrida, disputa por influência regional e interesses econômicos.
A linguagem usada por Washington não está isolada. Em paralelo à ofensiva norte-americana, ao menos quatro governos latino-americanos com viés conservador — como Equador, Paraguai, República Dominicana e a Argentina de Javier Milei — passaram a tratar o Cartel de los Soles como grupo terrorista, ecoando o discurso da Casa Branca.
Neste cenário, a temperatura política em torno da Venezuela volta a subir, enquanto países vizinhos, como o Brasil, observam com cautela o fortalecimento de uma doutrina que aproxima crime organizado, terrorismo e mudança de regime. A presente análise adota o vocabulário típico da cobertura de centro no Brasil, com foco em contexto e dados para além do fato, buscando separar o que está em jogo do embate retórico imediato.
O que é o Cartel de los Soles segundo os EUA
De acordo com o Tesouro e o Departamento de Estado norte-americanos, o Cartel de los Soles (Cartel of the Suns) é uma organização criminosa sediada na Venezuela, comandada por Maduro e por altos integrantes de seu círculo de poder. O nome remete às insígnias de “sóis” utilizadas nos uniformes de oficiais venezuelanos, sinalizando a suposta participação direta de setores das Forças Armadas no esquema de tráfico de drogas.
Na narrativa oficial de Washington, o grupo:
- Usa estruturas do Estado venezuelano para escoar cocaína e outras drogas rumo aos EUA e à Europa;
- Fornece apoio logístico e financeiro a organizações já enquadradas como terroristas, como o Tren de Aragua e o cartel de Sinaloa;
- Converte o território venezuelano em plataforma de “narcoterrorismo”, com impacto direto na segurança hemisférica.
A designação como “organização terrorista estrangeira” (FTO, na sigla em inglês) vem na esteira de sanções econômicas já aplicadas, que incluíram o bloqueio de bens e restrições a transações com indivíduos e entidades ligados ao regime.
No jargão da política externa, trata-se de um endurecimento da regra do jogo: a partir do rótulo de terrorismo, qualquer apoio material ao cartel — inclusive por bancos e empresas estrangeiras — pode ser enquadrado em leis antiterrorismo, ampliando o alcance das chamadas sanções secundárias. É uma sinalização ao mercado e ao sistema financeiro global de que o custo de se relacionar com o entorno de Maduro sobe alguns degraus.
Disputa de narrativas: crime organizado, terrorismo ou ferramenta política?
A construção do Cartel de los Soles como entidade coesa, comandada do topo por Maduro, não é consenso fora do eixo Washington–aliados. Reportagens e análises de veículos europeus e latino-americanos chamam atenção para a dificuldade de comprovar a existência de um cartel estruturado nos moldes clássicos, sugerindo que o termo funciona, em parte, como guarda-chuva para redes de corrupção e contrabando envolvendo militares e autoridades dispersas.
Especialistas em bastidores e redes de poder apontam três elementos centrais nessa disputa de enquadramento:
- A fronteira entre crime organizado e terrorismo
A designação de grupos criminais como terroristas tem se tornado mais frequente na estratégia norte-americana, tanto no combate a gangues transnacionais quanto a cartéis mexicanos. Isso amplia instrumentos de pressão, mas também dilui o conceito de terrorismo, que tradicionalmente envolve motivação política explícita e ataques deliberados a civis. - A acusação de “narcoestado”
Ao falar em Cartel de los Soles “chefiado por Maduro”, Washington sugere que o próprio Estado venezuelano teria se fundido com o crime organizado. A narrativa é contestada pelo governo de Caracas, que denuncia tentativa de mudança de regime e questiona a consistência das provas. Ao mesmo tempo, há um corpo relevante de investigações internacionais apontando envolvimento de militares e funcionários em esquemas de tráfico. - Instrumentalização geopolítica
A designação terrorista ocorre em paralelo ao envio de navios de guerra, aumento de recompensas pela captura de Maduro e operações letais contra embarcações de supostos traficantes no Pacífico e no Caribe, o que reforça a leitura de que o rótulo também serve de base jurídica para ações militares mais agressivas.
Para uma leitura de centro, o desafio é fugir de dois extremos: nem tomar acriticamente o discurso de “narcoestado terrorista”, nem minimizar a gravidade da captura de instituições por redes criminosas. A pergunta-chave passa a ser “o que os números mostram (sem achismo)”: quais provas são apresentadas, quais instâncias independentes as validam e como elas se comparam com padrões internacionais de combate ao crime e ao terrorismo.
Impactos práticos: sanções, diplomacia e risco de escalada militar
Do ponto de vista concreto, a inclusão do Cartel de los Soles em listas de terrorismo tem pelo menos quatro consequências principais:
- Endurecimento de sanções financeiras
A designação amplia o bloqueio de bens e restringe qualquer transação envolvendo pessoas ou entidades associadas ao cartel. Instituições financeiras estrangeiras que “fecharem os olhos” podem ser alvo de sanções secundárias, aumentando o custo de operar com vetores do regime venezuelano. - Isolamento diplomático seletivo
Países alinhados à estratégia norte-americana tendem a ecoar o discurso e a adotar medidas similares, como já se viu em alguns governos da região. Outros, como o Brasil, preferem preservar governabilidade regional e margem de manobra diplomática, evitando vínculos automáticos entre política externa e ações militares dos EUA. - Base jurídica para operações extraterritoriais
Ao caracterizar o cartel como terrorista, Washington reforça a tese de que estaria agindo em legítima defesa ampliada, o que abre espaço para operações militares além das fronteiras, sob o guarda-chuva da “guerra ao narcoterrorismo”. A presença de navios, submarinos e milhares de fuzileiros navais próximos à costa venezuelana evidencia que a temperatura política não é apenas retórica. - Efeito colateral humanitário e econômico
Sanções amplas podem agravar a crise social na Venezuela, afetando sobretudo a população, ao mesmo tempo em que nem sempre desmontam as redes criminosas, que costumam se adaptar e deslocar rotas. Aqui, o que muda precisa ser medido não só pela pressão sobre o regime, mas pelos impactos em migração, segurança fronteiriça e estabilidade regional.
O espelho brasileiro: facções, terrorismo e o risco de “inflacionar” o conceito
A decisão de tratar o Cartel de los Soles como grupo terrorista ecoa debates que também avançam no Brasil. Propostas para enquadrar facções como PCC e Comando Vermelho na legislação antiterrorismo ganharam fôlego após operações letais em grandes centros urbanos, reacendendo questões sobre proporcionalidade, seletividade e eficácia de respostas penais mais duras.
Do ponto de vista da articulação política no Congresso, o enquadramento de organizações criminosas como terroristas costuma unir bancadas de segurança pública e parte do centrão, enquanto enfrenta resistências de setores preocupados com o Estado de Direito, com o risco de ampliar poderes de investigação e repressão sem o devido devido processo.
No caso venezuelano, a analogia ajuda a iluminar a discussão:
- Se tudo passa a ser terrorismo, o conceito perde capacidade de distinguir situações extremas, como atentados indiscriminados ou grupos armados com agenda político-ideológica explícita;
- Ao mesmo tempo, ignorar a dimensão política de redes criminosas que capturam o Estado — como acusam os EUA em relação a Maduro — também empobrece o debate.
Para o Brasil, que busca manter canais com Caracas e com Washington, a correlação de forças sugere cautela. Uma adesão automática ao rótulo de terrorismo pode aproximar o país da estratégia de máxima pressão dos EUA, com potencial impacto em agendas comerciais, energéticas e migratórias. Uma recusa frontal, por outro lado, pode ser lida como tolerância com o chamado “narcoterrorismo de Estado”.
Nessa encruzilhada, o caminho de centro tende a privilegiar três eixos:
- Defesa do Estado de Direito e da presunção de inocência, inclusive em foros internacionais, insistindo em investigações independentes e mecanismos de responsabilização baseados em evidências, não em alinhamentos automáticos;
- Proteção do ambiente de negócios e confiança na região, evitando que sanções extraterritoriais comprometam cadeias produtivas e investimentos estratégicos;
- Busca de contexto e dados para além do fato, separando a necessária cooperação no combate ao tráfico de drogas das disputas eleitorais e ideológicas em Washington e em Caracas.
Entre a pressão máxima e a diplomacia possível
Ao transformar o Cartel de los Soles em grupo terrorista, os Estados Unidos dobram a aposta numa estratégia que combina sanções, pressão militar e narrativa de narcoterrorismo para enfraquecer Maduro. Do outro lado, o governo venezuelano explora o discurso anti-imperialista, apresenta a mobilização norte-americana como tentativa de golpe e tenta reforçar a coesão interna sob a lógica de “praça sitiada”.
No meio desse cabo de guerra, países da região — Brasil incluído — precisam ler com frieza o que está em jogo:
- a segurança regional diante de redes de crime organizado que atravessam fronteiras;
- a integridade de normas internacionais que limitam o uso da força e disciplinam sanções;
- e a proteção de populações já vulneráveis, vítimas tanto de regimes autoritários quanto de coalizões criminais que lucram com a precariedade.
Tratar o “cartel de Maduro” como grupo terrorista pode soar como resposta contundente e de fácil comunicação política. Mas, sem transparência sobre provas, mecanismos de supervisão e salvaguardas humanitárias, o risco é transformar uma categoria jurídica extrema em mais uma arma retórica de bastidores do poder, deixando cidadãos — venezuelanos e latino-americanos — presos entre o fogo cruzado do crime, da geopolítica e da economia.
Referências
Reuters / DefesaNet – Terrorist Designations of Cartel de los Soles (Departamento de Estado dos EUA, 16 nov. 2025)
U.S. Department of the Treasury – Treasury Sanctions Venezuelan Cartel Headed by Maduro
Voice of America – US Sanctions Cartel Headed by Maduro
El País – The Cartel of the Suns, the criminal network pitting the US against Venezuela
Le Monde – Venezuela: les États-Unis envoient des troupes près des eaux territoriales au nom de la lutte contre le « narcoterrorisme »
CNN Brasil – Entenda o que é o Cartel de los Soles, que Maduro é acusado de chefiar
Gazeta do Povo – O que é o Cartel de Los Soles, que os EUA acusam Maduro de chefiar
Veja – O que muda se PCC e CV forem enquadrados como grupos terroristas?
UNB / Petrel – Crime or Terrorism? Reclassifying policies targeting CV and PCC
