Operação da Polícia Judiciária de Portugal prende dez brasileiros e apreende 7 toneladas de cocaína em dois barcos pesqueiros carregados “ao largo da costa do Brasil”. Caso expõe o papel da costa catarinense nas rotas do tráfico internacional e recoloca em debate a falência da guerra às drogas = genocídio da juventude negra e o silêncio da mídia hegemônica sobre as engrenagens financeiras do crime.
A Polícia Judiciária de Portugal (PJ) anunciou a apreensão de cerca de 7 toneladas de cocaína transportadas em dois barcos pesqueiros abordados no Atlântico, a cerca de 2.000 km de Lisboa, em operação batizada de Renascer. Dez brasileiros foram presos em flagrante e devem responder por tráfico internacional de drogas perante a Justiça portuguesa.
Segundo a PJ, a droga foi carregada “ao largo da costa do Brasil”, em águas internacionais, antes de seguir em direção à Europa, onde seria transbordada para lanchas rápidas e redistribuída para o mercado europeu. Embora as autoridades portuguesas não detalhem o porto de origem, o padrão de operações recentes — envolvendo barcos pesqueiros e veleiros que partem ou são abastecidos na costa de Santa Catarina e de outros estados do Sul — reforça a suspeita de que a região tenha se consolidado como corredor estratégico do tráfico marítimo de cocaína.
A megaapreensão se soma a uma série de operações bilaterais entre polícia brasileira e forças europeias, nas quais toneladas de cocaína são interceptadas em semissubmersíveis, veleiros, cargueiros e barcos pesqueiros – muitas vezes com tripulações formadas por brasileiros recrutados como “mulas do mar”.
Operação Renascer: dois barcos, dez brasileiros e o alerta de Portugal
De acordo com o comunicado oficial, a Operação Renascer mobilizou a Polícia Judiciária, a Marinha e a Força Aérea de Portugal, além do centro europeu de monitoramento marítimo MAOC-N. A partir de informações de inteligência, as forças portuguesas identificaram os dois barcos de pesca no Atlântico e realizaram a abordagem em alto-mar, evitando que os fardos de cocaína fossem transferidos para “narcolanchas” em direção ao continente.
Nos porões refrigerados das embarcações, os agentes encontraram toneladas de pacotes prensados, com alto grau de pureza, embalados em fardos plásticos — um modus operandi típico de carregamentos de longa distância, destinados a grandes redes de distribuição na Europa. As autoridades portuguesas falam em “maior apreensão da história recente” do país.
Os dez detidos — todos brasileiros, segundo a PJ — foram levados sob escolta para o arquipélago da Madeira, onde passaram por interrogatório judicial e tiveram a prisão preventiva decretada. Eles são apontados como parte do núcleo operacional do esquema, responsável pela travessia oceânica e pela entrega em ponto de transbordo em alto-mar.
A operação é mais um capítulo de um padrão que se repete: o uso de embarcações de pesca, registradas ou associadas a empresas brasileiras, para simular viagens de trabalho enquanto transportam carregamentos milionários de cocaína rumo à África e à Europa.
Santa Catarina e a “logística do mar”: um corredor em disputa
Embora o caso específico de Renascer não detalhe o porto de partida, operações recentes da Polícia Federal (PF) ajudam a compor o quadro. Nos últimos anos, Santa Catarina se consolidou como uma das principais plataformas da “logística do mar” para o tráfico internacional: barcos pesqueiros, veleiros e cargueiros partem de portos catarinenses com cocaína escondida em cascos, porões e contêineres, rumo a rotas que cruzam a costa africana antes de chegar à Europa.
Em 2025, por exemplo, a PF e órgãos estaduais deflagraram a Operação Narco Vela, bloqueando R$ 1,32 bilhão em bens e apreendendo barcos, carros de luxo e imóveis em Santa Catarina e outros três estados. A investigação apontou o uso sistemático de barcos e veleiros para levar cocaína da costa brasileira a pontos de transbordo na África e na Europa, com mandados cumpridos em cidades catarinenses.
Operações anteriores, como Mar Aberto e Narcopesca, também já haviam evidenciado a participação de barcos de Santa Catarina na exportação de toneladas de cocaína, por meio de “pescarias de fachada” que levavam a droga para alto-mar, de onde era recolhida por embarcações estrangeiras.
Esse conjunto de casos mostra que o episódio das 7 toneladas apreendidas por Portugal não é um “raio em céu azul”, mas parte de uma engrenagem transnacional que envolve:
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organizações criminosas brasileiras, incluindo facções com atuação nacional;
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rotas marítimas que passam por Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Bahia;
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portos europeus e africanos usados como porta de entrada da cocaína no mercado europeu;
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cooperação (ainda limitada) entre autoridades brasileiras e europeias.
Guerra às drogas, racismo estrutural e genocídio da juventude negra
Do ponto de vista de uma leitura crítica de esquerda, não basta narrar a apreensão como “grande golpe contra o crime organizado” e parar aí. Há um vocabulário consolidado — e um acúmulo de pesquisas — que enxerga a guerra às drogas = genocídio da juventude negra, denunciando como as políticas proibicionistas recaem sobre corpos específicos enquanto poupam as engrenagens de alto nível do tráfico e do sistema financeiro.
Na ponta frágil da cadeia, jovens negros e periféricos vêm sendo presos e mortos em operações cotidianas, tanto no Brasil quanto nas periferias europeias, sob a bandeira de combate ao tráfico. Já no topo, grandes operadores do mercado ilegal — que controlam rotas marítimas, lavanderias financeiras e conexões políticas — muitas vezes seguem intocados, ou recebem penas bem mais brandas.
A imagem dos dez brasileiros algemados em um porto europeu rende manchetes, mas pouco se fala sobre:
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os bancos e empresas usados para lavar os lucros dessas operações;
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o papel da demanda europeia por cocaína na sustentação do negócio;
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a conexão entre economias portuárias, precarização do trabalho marítimo e cooptação de pescadores, marinheiros e navegadores.
Enquanto isso, no Brasil, a mesma lógica que gere grandes cargas de cocaína também alimenta o encarceramento em massa: milhares de pessoas presas por porte ou pequenas quantidades, muitas sem sentença definitiva, enquanto toneladas atravessam oceanos em barcos registrados, com tecnologia de ponta e suporte de operadores logísticos.
Segurança é pública: muito além do sensacionalismo policialesco
Quando se trata de tráfico internacional, parte expressiva da mídia hegemônica recorre ao velho roteiro: helicópteros filmando fardos de droga, manchetes sobre “maior apreensão da história”, infográficos com o valor de mercado da cocaína. Mas raramente se discute o modelo de segurança que produz esses resultados — e seus limites.
No vocabulário crítico de jornalistas de esquerda, insiste-se na ideia de que segurança é pública: não é mercadoria nem espetáculo, exige controle social sobre polícia, Judiciário, sistema prisional e, também, sobre as prioridades do Estado em relação ao crime organizado.
Isso implica olhar para casos como o de Portugal e perguntar:
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que tipo de cooperação está sendo construída entre Brasil e Europa?
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há troca de inteligência para chegar aos financiadores e não apenas aos tripulantes?
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quais mudanças são necessárias nas prioridades de fiscalização dos portos brasileiros?
Sem esse debate, corre-se o risco de transformar apreensões recordes em troféus midiáticos, sem impacto estrutural sobre as redes que lucram com a cocaína — inclusive no sistema financeiro formal, tantas vezes blindado pelo cinismo ‘liberal’ da imprensa, que evita confrontar bancos, fundos e grandes empresas.
Mídia hegemônica, rotas globais e o papel da contrainformação
Outro ponto central do glossário progressista é a crítica à mídia hegemônica, acusada de priorizar narrativas que responsabilizam indivíduos e facções, mas silenciam sobre concentrações de poder econômicas e geopolíticas que tornam o tráfico lucrativo.
No caso das 7 toneladas interceptadas por Portugal, a maior parte da cobertura destaca o “golpe contra o narcotráfico”, mas pouco analisa:
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como a política de drogas europeia, centrada em proibição e repressão, convive com um consumo estável ou crescente de cocaína;
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de que maneira o Sul Global é tratado como “território de risco” e fornecedor descartável, enquanto o lucro maior fica na ponta europeia da cadeia;
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como portos, companhias de navegação e operadores logísticos internacionais se beneficiam, direta ou indiretamente, da fluidez dessas rotas.
Nesse contexto, ganha força a máxima de que Contrainformação é poder: redes de jornalismo independente, coletivos de segurança pública crítica e pesquisadores tentam disputar a narrativa, mostrando que não existe tráfico de 7 toneladas sem, no mínimo, tolerância de setores do Estado, omissões regulatórias e cumplicidade empresarial.
Para onde ir: da repressão pontual à mudança de paradigma
A prisão dos dez brasileiros e a apreensão das 7 toneladas de cocaína na Operação Renascer têm, sem dúvida, importância concreta: interrompem um carregamento bilionário, expõem rotas marítimas em uso e reforçam a necessidade de cooperação internacional. Mas, se tratadas apenas como triunfo da “guerra às drogas”, pouco mudarão na estrutura que faz a cocaína cruzar o Atlântico ano após ano.
Sob uma lente de esquerda, alguns caminhos aparecem com força:
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repensar o modelo proibicionista, reconhecendo seus limites e seus efeitos de genocídio da juventude negra;
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investir em inteligência financeira e controle de fluxos ilícitos, atingindo os andares de cima do negócio;
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reforçar mecanismos de democratização das comunicações, para que o debate sobre drogas, segurança e sistema financeiro não fique restrito à agenda da mídia neoliberal;
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construir políticas de desenvolvimento e proteção social nas regiões portuárias e costeiras — como Santa Catarina — que hoje funcionam como laboratórios do crime transnacional, mas também como territórios de exploração laboral e abandono estatal.
Enquanto isso não acontece, novas operações como Renascer seguirão gerando imagens espetaculares de fardos apreendidos e prisões em alto-mar. Mas, por trás do cenário, o sistema que transforma a cocaína em negócio bilionário continuará operando — alimentado por desigualdades globais, por uma política de drogas fracassada e por um silêncio persistente sobre quem, afinal, lucra com tudo isso.
Fontes
Poder360 – Portugal apreende 7 toneladas de cocaína em barcos com brasileiros
Notícias de Coimbra – Operação “Renascer”: Barcos de pesca transportam 7 toneladas de cocaína
CM Jornal (Correio da Manhã) – Apreensão recorde em alto mar: oito toneladas de cocaína vinham para Portugal
G24 – Portugal intercepta dous barcos con 7 toneladas de cocaína cargada na costa de Brasil
ND Mais – Tráfico em veleiros: PF apreende R$ 1,3 bi em 4 estados
PF (gov.br) – PF deflagra Operação Narco Vela para reprimir tráfico internacional de drogas com uso de veleiros e barcos
