Após fechamentos temporários em Bruxelas e Liège e relatos de sobrevoos perto de base sensível e usina nuclear, governo acelera um plano anti-drone, recebe equipes britânicas, alemãs e francesas e tenta evitar que a resposta vire estado de exceção — enquanto paira a suspeita, ainda não provada, de ação russa.
Bruxelas viveu, nos últimos dias, um teste de estresse de segurança em plena rota comercial e institucional da Europa. Depois de incursões de drones que provocaram interrupções no Aeroporto de Bruxelas e em Liège, e relatos de sobrevoos próximos a instalações críticas — incluindo a base aérea de Kleine-Brogel e a usina nuclear de Doel —, o governo da Bélgica confirmou que recrutou forças estrangeiras para reforçar a defesa anti-drone. Segundo a Reuters, equipes especializadas do Reino Unido, da Alemanha e da França passaram a operar no país com sistemas de detecção e jamming eletrônico, enquanto o gabinete belga liberou, em caráter inicial, € 50 milhões para aquisição de novos sensores e meios de neutralização. As autoridades admitem que não há atribuição conclusiva até aqui, embora o padrão de incursões “lembre” operações de origem russa; Moscou nega.
A entrada da Royal Air Force — com especialistas e equipamentos — foi confirmada por Londres no domingo, em resposta a pedidos de assistência de Bruxelas. O objetivo imediato é identificar e neutralizar artefatos que têm voado em formação e, em alguns casos, a altitudes e com técnicas que sugerem operação por pessoal treinado. O chefe das Forças Armadas do Reino Unido, Richard Knighton, declarou que a origem dos voos ainda é desconhecida, mas enfatizou o papel de alianças para lidar com ameaças “híbridas” que combinam tecnologia de baixo custo e alto impacto com exploração de zonas de silêncio regulatórias e operacionais.
Os episódios mais recentes compõem um mosaico preocupante. Somente na semana passada, Bruxelas cancelou dezenas de voos e precisou pernoitar centenas de passageiros após uma suspensão noturna de operações por conta de drones; Liège, importante hub de carga, também foi afetado. Dias antes, relatos de sobrevoo no entorno de Kleine-Brogel — base frequentemente associada, por analistas estrangeiros, ao armazenamento de armamento nuclear sob custódia dos EUA — e de Doel elevaram o alerta. Em cobertura ao vivo, o The Guardian registrou que Berlim relacionou o assédio aéreo ao debate europeu sobre o uso de ativos russos congelados (estimados em mais de € 180 bilhões, a maior parte depositada na câmara de compensação Euroclear, em Bruxelas) para financiar a Ucrânia, tese rebatida por Moscou.
Em meio à pressão, o Conselho de Segurança Nacional da Bélgica se reuniu de emergência, e o Ministério da Defesa confirmou que o país está trabalhando com parceiros para apreender ao menos um dos drones e rastrear origem e destino dos lançamentos. A fala pública é milimetrada: “não estamos dizendo que é a Rússia; parece com a Rússia; não temos provas”, disse uma fonte à Reuters, sob anonimato. A prudência busca evitar erro de cálculo diplomático numa capital que abriga OTAN e União Europeia, além da Euroclear — o que torna a disputa de narrativas especialmente sensível.
Sob um olhar de esquerda, o caso belga aciona chaves de leitura conhecidas: soberania nacional e segurança pública são valores inegociáveis, mas a resposta a ameaças de guerra híbrida não pode descarrilar para estado de exceção nem ser capturada pelo complexo industrial-militar. É crucial sublinhar que segurança é pública, deve ser transparente e submetida a controle democrático, com prestação de contas sobre tecnologias de vigilância, custeio e impactos sociais. Também cabe resistir a atalhos de mídia hegemônica que, na ânsia por um “culpado”, simplificam uma investigação técnica ainda em curso.
A presença de equipes estrangeiras, por sua vez, não é uma ruptura, mas um sintoma de um ecossistema europeu que já vinha integrando defesas desde 2022, inclusive contra drones e mísseis de cruzeiro. O que muda, agora, é o foco: não se trata apenas do flanco leste ou do Mar Vermelho; é o coração logístico da UE, com aeroportos de passageiros e cargas e um nó financeiro (Euroclear) no centro do radar. A leitura política em capitais europeias é direta: se a ameaça busca constranger a decisão de usar lucros extraordinários de ativos russos congelados para apoiar Kiev, a resposta deve reforçar dissuasão e resiliência sem resvalar para xenofobia, vigilância indiscriminada ou compressão de liberdades.
No plano operacional, o governo belga avalia um cardápio de medidas: (1) ampliar a cobertura de radares de baixa altitude e sensores passivos; (2) empregar RF-jamming e técnicas de spoofing em áreas críticas; (3) instalar “zonas de exclusão dinâmica” com protocolos para suspender de forma proporcional operações aeroportuárias e reabri-las rapidamente; (4) padronizar, com aliados, regras de interceptação e apreensão que minimizem risco colateral. A ideia é sair do apaga-incêndio e construir um circuito de resposta que una polícia, defesa, reguladores de aviação e operadores privados — com auditoria e transparência.
Esse debate já encontra precedentes no país. A Operação Vigilant Guardian, acionada após os atentados de 2015, mostrou que a Bélgica tem histórico recente de empregar militares em funções de proteção de infraestrutura sensível. A experiência deixou lições sobre custo-benefício, coordenação com polícias e limites do emprego de tropas em ambiente civil. O desafio anti-drone é mais técnico que ostensivo: exige menos “soldado na rua” e mais engenharia de sensores, inteligência de sinais e cooperação transnacional.
Se a hipótese de interferência russa paira — dado o contexto dos ativos congelados e o padrão de operações cinzentas no continente —, a regra de ouro segue valendo: atribuição é ciência, não palpite. A Reuters relata que o governo belga, embora suspeite, não vincula oficialmente os episódios a nenhum ator. A AP também ressalta que as autoridades ainda não sabem a origem dos aparelhos, mesmo com surtos sincronizados de avistamentos e “testes” que parecem medir o alcance de jammeadores. Até que se apreenda um sistema ou se identifique com precisão um vetor de lançamento (terrestre, marítimo ou transfronteiriço), o risco é a política se adiantar aos fatos.
A crítica progressista não é contra defesa — é contra militarização automática do cotidiano. Três salvaguardas se impõem:
1) Proporcionalidade e transparência. Medidas de contrainformação e bloqueio eletromagnético devem ser auditáveis e avaliadas por impacto em direitos (por exemplo, interferências em comunicações civis). Democratização das comunicações não é slogan; é antídoto para que emergências não virem política permanente.
2) Coordenação multilateral. Chamar aliados é acertado — o passo seguinte é consolidar padrões comuns de detecção, regras de engajamento e cadeias de custódia para provas, com troca de dados em tempo real sob guarda jurídica. Isso fortalece diplomacia multilateral e reduz espaço para golpismos retóricos e medidas ad hoc.
3) Sanções inteligentes, não coletivas. Caso se identifique autoria estatal ou paraestatal, a resposta econômica deve mirar cadeias e pessoas com nexo direto, evitando punir trabalhadores e serviços essenciais — a lógica das sanções inteligentes em vez de cerco social indiscriminado.
Há, por fim, uma dimensão europeia incontornável. O The Guardian relatou que Berlim vê elo entre drones na Bélgica e a discussão sobre usar receitas dos ativos russos para a Ucrânia. É a cara da disputa de poder num continente que tenta reafirmar autonomia estratégica sem abandonar a arquitetura atlântica. Se confirmada a pressão externa, a resposta belga — técnica, proporcional e com lastro legal — servirá de termômetro para outras capitais, do Báltico ao Mediterrâneo.
Os próximos dias devem calibrar a nova rotina: ampliar a malha tecnológica, treinar operadores, padronizar protocolos de fechamento e reabertura de pistas e, sobretudo, comunicar melhor o risco — sem alarmismo e sem cinismo ‘liberal’ que terceiriza a culpa para passageiros ou trabalhadores da aviação. A Bélgica não escolheu ser o tabuleiro desse jogo; sua geografia política — OTAN, UE e Euroclear — a colocou na linha de frente. Responder de maneira firme, tecnicamente qualificada e socialmente responsável é o que separa uma democracia nervosa de uma democracia resiliente.
Se soberania nacional e segurança pública são o norte, o caminho passa por evidência, cooperação e pactos que blindem a política de segurança contra a tentação do estado de exceção e da mídia hegemônica que o naturaliza. O resto é ruído — e, como nos drones, ruído também derruba.
Referências
Reuters – Belgium enlists foreign forces to combat drone incursions.
AP News – UK sends military experts and equipment to Belgium after drone sightings near airports.
The Guardian – Belgian drone sightings could be linked to talks on using frozen Russian assets, says German minister (live).
AP News – Drone sightings force fresh flight cancellations at Belgium’s main airport.
The Times – RAF to protect Belgium from ‘rogue drones’ at military bases and airports.
