A Floresta Amazônica é, há muito tempo, o epicentro de um paradoxo geopolítico: é o ativo ambiental mais importante do planeta, mas também o palco de uma sensível disputa sobre soberania, desenvolvimento e responsabilidade. Nos bastidores que antecedem a aguardada Cúpula da Amazônia, em Belém, o Brasil está executando uma manobra diplomática que busca resolver este paradoxo, não através de retórica, mas de uma arquitetura estratégica cuidadosamente planejada. A notícia que emana de fontes do Itamaraty é sutil, mas seu significado é imenso: na articulação para a criação de um novo e robusto fundo de preservação climática, o Brasil está priorizando as negociações com seus parceiros europeus históricos, Noruega e Alemanha, mantendo os Estados Unidos informados, mas, crucialmente, em um compasso de espera na fase inicial.
Este movimento não é um acaso, nem um esnobamento diplomático gratuito. É a expressão de uma estratégia calculada do Brasil para assumir o protagonismo e ditar os termos na arena da geopolítica ambiental. Ao ancorar a iniciativa em uma parceria de sucesso comprovado – o Fundo Amazônia original –, o Brasil sinaliza que a preservação da floresta não é um problema a ser resolvido pela generosidade americana, mas uma responsabilidade global a ser gerenciada sob a liderança brasileira, com base em um modelo de governança que respeita sua soberania. É uma passagem de uma postura historicamente reativa para uma de protagonismo propositivo.
Nesta análise, vamos desvendar a lógica por trás da priorização europeia, revisitar o legado que fundamenta essa confiança, examinar a complexa relação com Washington sobre o tema e entender como essa jogada se encaixa na ambição maior do Brasil de se tornar o líder incontestável do Sul Global na era da crise climática.
A Lógica da Prioridade Europeia: Confiança, História e Governança
A decisão de iniciar as negociações do novo fundo com Noruega e Alemanha não é arbitrária, mas baseada em três pilares sólidos.
1. A Força da Parceria Histórica: O Fundo Amazônia original, criado em 2008, é o grande trunfo dessa relação. Financiado com mais de 1 bilhão de dólares, quase que inteiramente por doações de Oslo e Berlim, o fundo se tornou o maior esforço de cooperação internacional para a redução de desmatamento do mundo. Sua estrutura, gerenciada pelo BNDES e com um comitê orientador que incluía governo e sociedade civil, provou ser eficaz, transparente e, o mais importante, respeitosa à soberania brasileira. Ao reativar e buscar expandir este modelo com os parceiros originais, o Brasil joga em terreno conhecido e capitaliza sobre uma relação de confiança mútua construída ao longo de mais de uma década.
2. Compromisso de Longo Prazo vs. Volatilidade Política: A diplomacia brasileira percebe o compromisso europeu com a agenda climática como mais estável e estrutural. Para países como Noruega e Alemanha, o financiamento da conservação é um pilar de sua política externa, muitas vezes impulsionado por uma forte convicção de sua “responsabilidade histórica” pela crise climática. Em contraste, a política climática dos Estados Unidos, embora robusta sob a atual administração, mostrou-se historicamente mais volátil e suscetível às mudanças de governo, como visto na saída do Acordo de Paris durante a administração Trump. Ancorar o fundo na Europa é visto como uma apólice de seguro contra a imprevisibilidade política de Washington.
3. O Modelo de Governança: Este é talvez o ponto mais crucial. O modelo do Fundo Amazônia original garante que o Brasil, através do BNDES, tenha o controle da execução dos recursos, dentro de diretrizes acordadas. Há um temor na diplomacia brasileira de que uma participação americana proeminente desde o início pudesse vir acompanhada de um desejo por maior supervisão direta ou por “amarrar” os fundos a condições e mecanismos (como a contratação de empresas americanas) que poderiam ferir a soberania nacional e a autonomia na gestão dos projetos.
A Relação Complexa com Washington: O Aliado Convidado
A estratégia brasileira não é de exclusão, mas de sequenciamento. Os Estados Unidos são um parceiro indispensável, mas o Brasil quer definir o momento e os termos de sua entrada.
Promessas vs. Realidade: A administração americana prometeu contribuições significativas para a proteção da Amazônia. No entanto, o Itamaraty sabe que transformar promessas da Casa Branca em dólares aprovados pelo Congresso dos EUA é um processo político longo e incerto. A estratégia brasileira parece ser: consolidar primeiro um núcleo duro de financiamento com os europeus, criando um fato consumado de um fundo robusto e operacional.
A Inversão de Papéis: Com essa base garantida, o Brasil pode então se voltar para Washington e dizer: “Criamos esta iniciativa de sucesso, que já está em andamento. Convidamos os Estados Unidos a se juntarem a nós como um parceiro valorizado”. Isso inverte a dinâmica. O Brasil deixa de ser um potencial recipiente de ajuda externa e se torna o gestor de uma grande iniciativa global, convidando outros a participar. É uma afirmação de liderança.
A Ambição Geopolítica: O Brasil como Porta-Voz do Sul Global
Este movimento na Cúpula da Amazônia está intrinsecamente ligado à ambição mais ampla do Brasil de se posicionar como o líder natural dos países em desenvolvimento nas negociações climáticas.
A Amazônia como Ativo de Poder: O Brasil está usando sua soberania sobre 60% da maior floresta tropical do mundo como um ativo único para projetar influência. A mensagem é clara: a solução para a crise climática global passa, necessariamente, pela Amazônia, e a chave para a Amazônia está em Brasília.
Unificando o Discurso Amazônico: Um objetivo central da Cúpula de Belém é revitalizar a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), para que os oito países amazônicos possam negociar com o mundo desenvolvido com uma voz unificada e coerente, sob a liderança natural do Brasil.
Responsabilidades Comuns, porém Diferenciadas: Ao liderar a captação de recursos, o Brasil reforça a narrativa central do Sul Global: os países desenvolvidos, que mais poluíram historicamente para se industrializar, têm a responsabilidade financeira (a “dívida climática”) de apoiar os países em desenvolvimento a protegerem seus biomas e a realizarem uma transição para uma economia verde.
Conclusão: Da Soberania Reativa ao Protagonismo Assertivo
A estratégia diplomática do Brasil para a Cúpula da Amazônia marca uma evolução significativa na política externa ambiental do país. É a transição de uma postura de “soberania reativa”, que historicamente se limitava a rechaçar a interferência estrangeira, para um modelo de “protagonismo assertivo”, que diz ao mundo: “A soberania é nossa, a responsabilidade é compartilhada, e a liderança na construção da solução também é nossa”.
Ao priorizar seus parceiros europeus de longa data, o Brasil não está fechando a porta para os Estados Unidos, mas sim construindo a casa antes de convidar o vizinho mais poderoso para entrar. É uma jogada que busca maximizar a autonomia, consolidar a liderança regional e garantir que o futuro da Amazônia seja decidido, em primeiro lugar, em Belém e em Brasília, e não em Washington ou em Bruxelas. O sucesso desta Cúpula será, portanto, um termômetro da capacidade do Brasil de transformar seu imenso capital ambiental em poder geopolítico real.
