Ligação recente entre os presidentes dos EUA e da China confirma visita de Trump a Pequim em abril e recoloca Taiwan no centro de uma disputa geoestratégica, tecnológica e comercial, em meio a sanções, corrida por chips e jogos de soberania nacional.
Donald Trump e Xi Jinping voltaram a se falar ao telefone em meio a uma relação EUA–China marcada por tarifas, sanções tecnológicas e desconfiança estratégica. Segundo comunicados oficiais, a conversa tratou de comércio, fentanyl, Ucrânia e da disputa tarifária, mas também de Taiwan – a ilha que Pequim considera parte de seu território e Washington trata como peça central na arquitetura de segurança do Indo-Pacífico.
Trump afirmou ter tido um telefonema “muito bom” com Xi, no qual aceitou o convite para visitar Pequim em abril e, em troca, convidou o líder chinês para uma visita de Estado aos EUA em 2026. A viagem, se confirmada, marcará o momento mais simbólico da reaproximação entre as duas maiores economias do planeta após anos de escalada de tarifas, restrições a chips e troca de acusações de espionagem.
Do lado chinês, porém, o recado foi menos protocolar: Xi reiterou que o “retorno” de Taiwan à China continental seria “parte integrante da ordem internacional do pós-guerra”, insistindo na narrativa de que a reunificação é uma exigência histórica e jurídica, não apenas uma ambição nacionalista. É aí que o telefonema deixa de ser apenas diplomacia de rotina e volta a acender o alerta do dossiê Taiwan.
Taiwan como peça-chave no xadrez do século XXI
Taiwan deixou há muito de ser apenas uma disputa territorial entre Pequim e Taipei. A ilha concentra mais de 90% da produção mundial de semicondutores de ponta, essenciais para inteligência artificial, sistemas militares, carros autônomos e infraestrutura digital. Na prática, quem controla a segurança de Taiwan influencia a espinha dorsal tecnológica do capitalismo global.
Não por acaso, o governo taiwanês acaba de anunciar um orçamento extra de cerca de US$ 40 bilhões em defesa entre 2026 e 2033, elevando os gastos militares para mais de 3,3% do PIB em 2026, com meta de chegar a 5% até 2030. O pacote prevê investimento em sistemas de defesa aérea (“Taiwan Dome”), mísseis de precisão, drones e integração de inteligência artificial nos comandos militares, com compras majoritariamente de armamentos norte-americanos.
Enquanto isso, Pequim intensifica a pressão: exercícios militares no estreito, incursões aéreas quase diárias, campanhas de desinformação e movimentações navais que testam a prontidão de Taipei. A mensagem é dupla: para Taiwan, de intimidação; para Washington, de que qualquer avanço na relação militar com a ilha terá custo crescente.
Nesse contexto, ver Xi recolocar Taiwan “na mesa” durante o telefonema com Trump não é detalhe, mas reforço da linha vermelha de Pequim – uma reafirmação de imperialismo vs. bloco anti-imperialista segundo a lente de parte da esquerda, que enxerga na disputa ao redor da ilha um conflito entre potências hegemônicas e projetos de autonomia regional.
Ambiguidade estratégica versão Trump 2.0
Do lado norte-americano, o discurso continua preso à velha fórmula da “ambiguidade estratégica”. Desde o fim da Guerra Fria, Washington evita dizer claramente se defenderia ou não Taiwan em caso de invasão, mantendo o compromisso de fornecer armas à ilha, mas sem garantir explicitamente envio de tropas.
Com Trump de volta à Casa Branca, a política mantém a lógica de “não revelar as cartas”. Em entrevistas recentes, ao ser questionado se os EUA defenderiam Taiwan em caso de ataque, ele preferiu não responder, alegando que não pode abrir mão de “poder de negociação” – exatamente o espírito da ambiguidade estratégica, mas temperado com um tom de chantagem abertamente transacional.
Ao mesmo tempo, Trump critica o “baixo gasto” militar de Taiwan e pressiona por mais compras de armamento norte-americano, chegando a sugerir que a ilha “roubou o negócio dos chips” dos EUA. Isso reforça a percepção de que, para o trumpismo, a questão taiwanesa é menos uma batalha abstrata pela “democracia” e mais um instrumento de barganha em torno de tarifas, semicondutores e investimentos.
Para analistas progressistas, essa postura combina a lógica do cartel financeiro – no qual o complexo industrial-militar e Wall Street ditam prioridades – com uma diplomacia de risco, que trata a segurança de 23 milhões de pessoas como ficha em negociação tarifária.
Sanções, chips e o novo front da disputa EUA–China
O telefonema ocorre em paralelo a uma guerra fria tecnológica. Desde 2018, os EUA vêm ampliando controles de exportação para restringir o acesso chinês a chips avançados, equipamentos de fabricação de semicondutores e tecnologias sensíveis de IA, numa estratégia de “estrangulamento” das capacidades militares e digitais de Pequim.
As medidas foram endurecidas em 2022 e 2023, com a proibição da venda de GPUs de última geração para a China, e agora são parcialmente recalibradas no governo Trump 2.0, que cogita liberar a venda de chips H200 da Nvidia a Pequim em troca de vantagens comerciais para empresas norte-americanas.
Pequim reagiu dobrando a aposta na autossuficiência tecnológica, impondo controles sobre exportação de minerais estratégicos, como terras raras, e agora proibindo que gigantes como a ByteDance utilizem chips Nvidia em novos data centers financiados pelo Estado, empurrando-as para soluções nacionais.
Em resumo, enquanto Trump e Xi tentam transmitir imagem de distensão, o que se vê é a consolidação de um regime de sanções cruzadas e nacionalismo tecnológico, que coloca Taiwan – com sua TSMC e seu ecossistema de alta tecnologia – no olho do furacão.
Como a mídia enquadra o dossiê Taiwan
A forma como o telefonema foi narrado pelos grandes veículos ilustra o papel da mídia hegemônica na disputa de versões. A cobertura dominante destacou o “bom clima” da ligação, o anúncio da viagem de Trump em abril e a possível “redução de tensões” comerciais, reeditando o tom de normalização institucional.
Já parte da imprensa progressista, inclusive no Brasil, aciona um vocabulário próprio: fala em imperialismo vs. bloco anti-imperialista, questiona a militarização do Indo-Pacífico por Washington, e enxerga na pressão sobre Taiwan não apenas o autoritarismo chinês, mas também a tentativa estadunidense de manter sua primazia geopolítica pela força.
Nesse campo, ganha força a crítica à mídia neoliberal não fala mais sozinha, lembrando que veículos alternativos e análises independentes contestam a narrativa única de que os EUA seriam “garantidores desinteressados” da democracia asiática. Assim, o telefonema é lido não como sinal de pacificação, mas como ajuste de rota de uma disputa longa, em que as palavras suaves convivem com navios de guerra e sanções econômicas.
O olhar da esquerda: soberania, imperialismo e risco de nova Guerra Fria
Sob uma ótica de esquerda, o dossiê Taiwan é também um debate sobre soberania nacional e sobre até que ponto países periféricos ou insulares conseguem escapar da lógica de disciplinamento imposta pelos grandes blocos de poder.
De um lado, a China reivindica a ilha como parte inalienável de seu território, em nome da integridade territorial e da conclusão do processo de unificação iniciado no século XX. De outro, Taiwan insiste em preservar seu sistema democrático e sua autonomia de fato, enquanto se apoia em um guarda-chuva de segurança norte-americano que não é formal, mas é decisivo.
Para amplos setores progressistas, a tensão não pode ser tratada como simples “conflito entre democracia e autoritarismo”, narrativa favorita de chancelerias ocidentais e da mídia hegemônica. Trata-se de um entrelace de interesses de cartel financeiro, militarização e disputa por cadeias produtivas críticas – dos chips às terras raras.
Nessa leitura, a saída sustentável não está em fazer de Taiwan o palco de uma nova Guerra Fria, mas em fortalecer mecanismos multilaterais que favoreçam democratização das comunicações e da governança global, em vez de decisões tomadas a portas fechadas por Washington e Pequim.
Ao mesmo tempo, cresce a percepção de que Contrainformação é poder: movimentos sociais, pesquisadores e jornalistas críticos buscam furar o bloqueio de versões oficiais, trazendo para o centro do debate a voz da própria sociedade taiwanesa, frequentemente reduzida a “peão estratégico” nas análises do Norte Global.
Entre abril e o abismo
A visita de Trump a Pequim em abril tende a ser vendida como sinal de “normalização” das relações EUA–China. O encontro certamente terá fotos, protocolos e declarações de boa vontade. Mas o telefonema que o prepara já deixou claro que nenhuma das frentes estruturais de conflito está resolvida: Taiwan continua sob ameaça, a guerra de chips segue em curso e as sanções recíprocas alimentam um ambiente de desconfiança permanente.
Enquanto isso, Taiwan acelera seu rearmamento, a China reforça sua retórica sobre “retorno inevitável” e os EUA mantêm a ambiguidade calculada, oscilando entre ameaças de tarifa e promessas de proteção. A disputa pelo futuro da ilha é, na prática, disputa por quem dita as regras da economia digital e da segurança global nas próximas décadas.
Se prevalecer a lógica de imperialismo vs. bloco anti-imperialista, a tendência é que cada gesto diplomático – como um simples telefonema – funcione apenas como pausa tática em uma confrontação mais profunda. Romper esse ciclo exigiria deslocar o foco do cálculo de poder para uma agenda de luta pela democracia como melhor caminho, em que o direito dos povos – incluindo o povo taiwanês – de decidir seu destino pese mais do que a fome por rotas marítimas, bases militares e fábricas de semicondutores.
Até lá, o dossiê Taiwan seguirá sendo um dos pontos mais sensíveis do tabuleiro global – e cada ligação entre Trump e Xi, longe de tranquilizar, será lida como mais um capítulo de uma disputa em que o risco de erro de cálculo permanece perigosamente alto.
Referências
Reuters – Trump says China’s Xi “more or less agreed” to accelerate purchases of US goods after phone call.
WCBE / NPR – Trump and China’s leader Xi Jinping hold a call and discuss trade, Taiwan and Ukraine; Xi convida Trump para visitar Pequim em abril.
WRAL – Trump says he will visit Beijing in April; Xi afirma que retorno de Taiwan à China é parte da ordem do pós-guerra.
Reuters – Taiwan plans extra US$40 billion in defence spending to counter China.
AP News – Taiwan puts $40 billion toward buying US weapons and building a “Taiwan Dome” air defense system.
France 24 / AFP – US tightens curbs on AI chip exports to China.
