Tribunal de Antioquia impõe 28 anos de prisão ao irmão do ex-presidente Álvaro Uribe por chefiar o grupo de extermínio Los 12 Apóstoles, recolocando em evidência o papel das elites e da violência paraestatal no conflito colombiano.
A condenação de Santiago Uribe Vélez a 28 anos e 4 meses de prisão pelo Tribunal Superior de Antioquia não é apenas o desfecho de um processo judicial demorado. É um abalo sísmico na disputa de memória e de poder em torno do conflito armado colombiano e do papel das elites políticas na arquitetura do paramilitarismo de extrema direita.
Na terça-feira, 25 de novembro de 2025, o tribunal declarou o ganadeiro e criador de cavalos culpado por conformar e liderar o grupo paramilitar Los 12 Apóstoles e pelo homicídio agravado do motorista Camilo Barrientos, assassinato considerado parte de um padrão de “limpeza social” em Antioquia nos anos 1990. A sentença vincula o grupo a centenas de assassinatos, desaparecimentos, torturas e deslocamentos, configurando crimes contra a humanidade.
A decisão revoga a absolvição de primeira instância de 2024, quando um juiz especializado havia inocentado Uribe por “dúvida razoável”. Agora, em segunda instância, o mesmo caso é requalificado: o tribunal considera comprovado que Santiago Uribe não foi um espectador distante, mas peça central da estrutura de comando dos Los 12 Apóstoles, que teria operado a partir da fazenda La Carolina, sua propriedade em Yarumal.
A defesa anunciou que recorrerá à Suprema Corte, insistindo no discurso de perseguição política. Mas, pela primeira vez, um tribunal colombiano estabelece de forma contundente responsabilidade penal de um membro do círculo íntimo de Álvaro Uribe em um caso emblemático de paramilitarismo.
Los 12 Apóstoles: a “limpeza social” como política não declarada
Los 12 Apóstoles foram um grupo paramilitar de extrema direita ativo no início dos anos 1990 em Antioquia, região estratégica no noroeste da Colômbia. Investigações jornalísticas, relatórios de direitos humanos e decisões judiciais atribuem ao grupo cerca de 300 assassinatos, além de desaparecimentos e outros crimes, tendo como alvos supostos “delinquentes”, moradores de rua, trabalhadores pobres e pessoas acusadas, sem devido processo, de vínculos com a guerrilha ou com o crime comum.
A lógica era a da “limpeza social”: matar para “sanear” o território, terceirizando a violência a estruturas paramilitares com respaldo, ou ao menos tolerância, de segmentos da força pública. O ex-comandante de polícia de Yarumal, Juan Carlos Meneses, testemunha chave no processo, relatou a convivência entre policiais, paramilitares e civis armados ligados à fazenda La Carolina, descrevendo reuniões, pagamentos e coordenação operacional.
É aí que a sentença contra Santiago Uribe ganha um significado que ultrapassa a biografia individual. O tribunal valida essa malha de testemunhos – antes descartados ou relativizados – e reafirma que o assassinato de Camilo Barrientos não foi um episódio isolado, mas parte de um padrão sistemático.
Na prática, o que a corte descreve é um estado de exceção não declarado, em que a fronteira entre Estado, elites locais e grupos armados se dissolve, e a decisão sobre quem vive e quem morre é deslocada para uma esfera clandestina. Essa gramática da violência ecoa aquilo que analistas latino-americanos denunciam há décadas como guerra às drogas = genocídio da juventude negra, aqui transposto à juventude pobre e camponesa de Antioquia, alvo de execuções sumárias apresentadas como “combate ao crime”.
A família Uribe no centro da disputa de memória
A condenação de Santiago ocorre poucas semanas depois de uma reviravolta no outro grande processo que ronda o sobrenome Uribe: a investigação por fraude processual e suborno de testemunhas contra o ex-presidente Álvaro Uribe. Em agosto, o ex-mandatário havia sido condenado a 12 anos de prisão domiciliar por tentar manipular depoimentos de ex-paramilitares que o vinculavam a milícias e massacres; o caso foi celebrado como um marco na responsabilização de ex-chefes de Estado na região.
No entanto, em outubro, uma corte de apelação anulou a condenação, alegando “deficiências estruturais” na sentença anterior e questionando a admissibilidade de parte das provas, inclusive escutas telefônicas. A decisão reacendeu acusações de seletividade e impunidade, com o presidente Gustavo Petro e setores progressistas denunciando que a Justiça volta a proteger uma figura-chave da direita colombiana.
É nesse tabuleiro que entra a nova sentença contra Santiago Uribe. Ao mesmo tempo em que a absolvição do ex-presidente é vista, por muitos, como vitória das elites conservadoras, a condenação do irmão funciona como contra ponto: sinal de que a pressão das vítimas, de organizações de direitos humanos e de instituições como a Jurisdicción Especial para la Paz (JEP) segue corroendo o muro de silêncio em torno do paramilitarismo.
Para a esquerda colombiana e latino-americana, não se trata de um caso isolado, mas de mais um capítulo da luta pela democracia em um país atravessado por décadas de guerra interna, despojo de terras e alianças espúrias entre elites políticas, empresariais e grupos armados.
Justiça tardia, disputa de narrativa imediata
Como era previsível, a decisão do Tribunal de Antioquia detonou uma batalha de narrativas. Setores ligados ao uribismo qualificam a sentença como “linchamento judicial”, ecoando um discurso que, na região, costuma acusar tribunais e cortes de cederem a conspirações “castrochavistas”. Já movimentos de vítimas, coletivos de direitos humanos e figuras da oposição celebram o veredito como uma vitória parcial contra a impunidade e um passo para reconstruir a confiança nas instituições.
Nesse contexto, o papel da mídia hegemônica ganha centralidade. Durante anos, boa parte da cobertura sobre Los 12 Apóstoles e sobre o próprio Álvaro Uribe oscilou entre a minimização e a reprodução acrítica da narrativa oficial de “linha dura” contra o terrorismo. Quando veículos internacionais e plataformas de investigação independentes passaram a expor as conexões entre elites políticas, fazendeiros e paramilitares, a mídia neoliberal local reagiu com cautela, frequentemente tratando as denúncias como “polêmicas” ou “versões em disputa”, e não como graves violações de direitos humanos.
É justamente contra essa assimetria de poder informativo que o campo progressista latino-americano insiste na democratização das comunicações e na crítica à mídia hegemônica enquanto ator político que, historicamente, blindou determinados grupos de interesse e criminalizou outros. Contrainformação é poder deixa de ser um slogan abstrato e se materializa na disputa por quem tem legitimidade para contar a história do conflito colombiano.
Elites, paramilitarismo e a agenda de direitos humanos
A sentença contra Santiago Uribe reforça algo que organizações de direitos humanos apontam há décadas: o paramilitarismo na Colômbia não é um “desvio” no combate à guerrilha, mas uma engrenagem estruturante de um modelo de poder. A partir de alianças entre empresários, políticos regionais, setores das Forças Armadas e grupos armados ilegais, consolidou-se uma arquitetura de controle territorial que combinou contrainsurgência, negócios ilegais e acumulação de terras.
Ao responsabilizar judicialmente um integrante da família Uribe, o tribunal envia uma mensagem de que essa engrenagem não se reduz a “maçãs podres” na base da hierarquia. Ela toca o topo da pirâmide social e política. Daí o peso simbólico da figura de Santiago: não é apenas um fazendeiro rico, mas o irmão do presidente que, por anos, foi apresentado como o grande arquiteto da segurança democrática e referência da direita regional.
Sob um prisma de esquerda, esse movimento judicial também ajuda a desmontar a narrativa de entreguismo seletivo que coloca a Colômbia como “aliado exemplar” de agendas de segurança patrocinadas pelos Estados Unidos, especialmente na guerra às drogas, ao custo de vidas camponesas, indígenas e urbanas marginalizadas. A crítica ao viralatismo latino-americano – isto é, à tendência de se subordinar à visão e aos interesses das potências – encontra eco na defesa de uma política de segurança que não naturalize a terceirização da violência a grupos de extermínio.
Nesse sentido, a decisão dialoga com a agenda do governo de Gustavo Petro, que busca articular paz total, reforma agrária e fortalecimento das instituições de justiça transicional. Mas também tensiona o próprio Estado colombiano, frequentemente acusado de ser, ao mesmo tempo, árbitro e parte interessada na manutenção de zonas cinzentas em que o paramilitarismo continua operando sob novas siglas.
O que está em jogo após a condenação
Do ponto de vista jurídico, ainda há caminho pela frente: a defesa de Santiago Uribe recorrerá à Corte Suprema, num processo que pode se arrastar por anos. No plano político e simbólico, porém, a sentença já produz efeitos imediatos.
Para as vítimas de Antioquia, é um reconhecimento tardio, mas fundamental, de que sua dor não foi “colateral” e de que a vida dos executados em operações de “limpeza social” vale tanto quanto a de qualquer cidadão das áreas nobres de Medellín ou Bogotá. Para a direita uribista, é mais um capítulo de um suposto cerco judicial que visaria deslegitimar o legado de “mão firme” no combate à guerrilha.
Para a esquerda e os movimentos de direitos humanos, o caso reforça uma convicção: sem enfrentar a fundo o paramilitarismo – sua base econômica, seus vínculos com o latifúndio e com o grande capital, sua simbiose com segmentos do Estado – não haverá democracia plena na Colômbia. Nessa perspectiva, segurança é pública – subordinada ao controle social, à transparência e ao respeito inegociável aos direitos humanos – e não um cheque em branco para alianças opacas entre elites e grupos de extermínio.
A condenação de Santiago Uribe não apaga décadas de silêncio e cumplicidade, mas abre uma fresta num pacto de impunidade que parecia inabalável. O que vier a seguir – seja a confirmação da sentença, seja uma eventual reversão – dirá muito sobre até onde a sociedade colombiana está disposta a levar sua própria luta pela democracia num país ainda marcado por cicatrizes de guerra, desigualdade e violência política.
Fontes:
AP News – Brother of former Colombian President Álvaro Uribe is sentenced for backing paramilitaries
El País – La justicia condena a 28 años de cárcel a Santiago Uribe, hermano del expresidente Álvaro Uribe, por paramilitarismo
El País – “Dirigió un grupo criminal que hacía limpieza social”: los argumentos de la condena a Santiago Uribe Vélez por nexos con el paramilitarismo
Reuters – Colombia ex-president Uribe sentenced to 12 years house arrest for witness tampering
France 24 / AFP – Colombia’s ex-president Uribe sentenced to 12 years house arrest for witness tampering
