Em meio à pressão por inflação em casa e desgaste internacional, governo Trump retira sobretaxa de 40% sobre uma parte relevante das exportações agrícolas do Brasil, abrindo espaço para alívio econômico — mas mantendo viva a disputa por soberania nacional e regras mais justas no comércio global.
A decisão de Washington de remover a sobretaxa de 40% sobre uma lista expressiva de produtos agrícolas brasileiros — como carne bovina, café, cacau e frutas tropicais — marca uma inflexão importante num contencioso que vinha elevando a temperatura nas relações entre Brasil e Estados Unidos desde meados de 2025. Em um cenário de alta de preços de alimentos e queda de popularidade, o governo Donald Trump optou por aliviar tarifas criadas meses antes sob o argumento de “ameaça extraordinária” representada pelo Brasil, em meio ao julgamento e à condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado.
A nova ordem executiva assinada em 20 de novembro remove a sobretaxa extra de 40% sobre uma gama de produtos agrícolas, reduzindo a carga total que em muitos casos chegava a 50% quando somada a tarifas já existentes. A medida tem efeito retroativo a 13 de novembro e prevê inclusive a possibilidade de reembolso dos valores pagos em operações recentes, o que tende a destravar estoques de café, carne e outros itens brasileiros retidos em armazéns alfandegados nos EUA à espera de um cenário mais favorável.
A reversão é apresentada pela Casa Branca como resposta à escalada do custo de vida para a população norte-americana, especialmente na cesta de alimentos, e como parte de um pacote mais amplo de corte de tarifas sobre insumos e alimentos importados para conter a inflação. Mas, do ponto de vista brasileiro — e em especial sob o prisma da esquerda —, o gesto é também um reconhecimento tácito de que o uso político de tarifas como instrumento de pressão contra um país do Sul global tem limites, sobretudo quando esbarra na própria sociedade e na economia dos Estados Unidos.
De “ameaça à segurança nacional” a recuo calculado
O conflito tarifário começou quando Trump assinou, em julho, uma ordem executiva impondo um adicional de 40% sobre a maior parte das importações de origem brasileira, elevando a taxa total para cerca de 50% em muitos casos. O texto citava políticas e decisões do governo brasileiro que supostamente ameaçariam a segurança nacional, a economia e a política externa dos EUA.
Entre os alvos, estavam justamente produtos emblemáticos do agro brasileiro, como café, carne bovina, açúcar, sucos de frutas e diversas mercadorias de alto valor agregado na pauta de exportação do país. O resultado imediato foi um esfriamento nas relações comerciais, incerteza para exportadores e ameaça de perda de mercado em plena safra, atingindo sobretudo cadeias produtivas que empregam milhares de trabalhadores no campo.
Para o governo Lula, a resposta foi calibrada: em vez de partir para uma escalada de retaliações, apostou numa estratégia diplomática de pressão e negociação, articulando-se com outros atores e explorando as fissuras internas no próprio establishment político e empresarial norte-americano — setores da indústria de alimentos, do varejo e até do agronegócio dos EUA passaram a questionar o custo de manter a guerra tarifária.
Nesse contexto, a decisão de remover a sobretaxa de 40% sobre parte importante das exportações brasileiras é lida em Brasília como uma vitória diplomática e um recuo de Washington diante dos efeitos colaterais de sua própria política.
Alívio para o agro — mas não para todos
A retirada da sobretaxa atinge diretamente produtos como café, carne bovina, cacau, frutas e sucos tropicais, entre outros itens listados em anexos técnicos da ordem executiva. Na prática, isso significa:
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maior competitividade dos produtos brasileiros no mercado norte-americano;
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possibilidade de destravar contratos suspensos por inviabilidade de preço;
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recuperação gradual da participação do Brasil em nichos estratégicos, como café gourmet e cortes especiais de carne;
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pressão descendente sobre preços de alimentos nos EUA, especialmente na reta final de ano, quando o consumo aumenta.
Associações de produtores brasileiros comemoraram a decisão, destacando que o impacto das tarifas havia sido devastador para alguns segmentos, com cancelamento de embarques, renegociação forçada de contratos e riscos de demissão em massa em frigoríficos e cooperativas exportadoras.
Ao mesmo tempo, organizações de trabalhadores e movimentos do campo alertam que o alívio não chega automaticamente aos pequenos produtores, que seguem mais vulneráveis à oscilação cambial, à concentração do mercado e ao poder de negociação de grandes tradings. Em outras palavras, a suspensão da sobretaxa corrige uma distorção importante, mas mantém intacta a estrutura desigual da cadeia global de alimentos, na qual poucos grupos controlam logística, financiamento e acesso efetivo ao mercado externo — uma espécie de cartel financeiro transnacional que dita preços, prazos e margens de lucro.
Imperialismo, soberania e a disputa por narrativas
A leitura de setores progressistas no Brasil é que o episódio expõe, mais uma vez, o recurso às tarifas como instrumento clássico do imperialismo: um país central impõe custos adicionais, ameaça empregos e receitas de um parceiro do Sul global para pressionar decisões políticas internas — neste caso, relacionadas ao julgamento de um ex-presidente condenado por tentativa de golpe.
Ao associar o pacote de tarifas a uma “emergência nacional” e a um suposto risco representado pelo governo Lula, a Casa Branca enviou um recado que transcende o comércio: o de que a punição econômica pode ser acionada sempre que um governo periférico não se alinhar a determinadas expectativas de Washington. Para a esquerda, esse movimento fere a soberania nacional brasileira e tensiona a própria ideia de uma ordem internacional baseada em regras e respeito mútuo.
Ao recuar diante da pressão interna por alimentos mais baratos, o governo Trump não abandona essa lógica, apenas a recalibra. A mensagem é que sanções econômicas e tarifas punitivas permanecem disponíveis, podendo ser ligadas ou desligadas conforme a conveniência de um governo que atua como guardião de interesses de sua base política e de segmentos do capital norte-americano.
Nesse tabuleiro, ganha relevância o debate sobre o papel do Brasil em um possível bloco anti-imperialista, que articule países da América Latina, África e Ásia em defesa de regras mais equitativas no comércio internacional, com maior poder de barganha frente a medidas unilaterais impostas por potências. A reaproximação com EUA não precisa — e não deve, na visão progressista — significar viralatismo, ou seja, a aceitação acrítica de decisões externas que impactam diretamente a economia e o emprego no país.
Entre entreguismo e defesa da soberania
Se por um lado a diplomacia brasileira celebra a retirada da sobretaxa como sinal de “respeito” e “amadurecimento” da relação bilateral, por outro há quem cobre do governo Lula vigilância para evitar qualquer traço de entreguismo. A crítica aponta o risco de transformar uma conquista pontual — o fim de uma tarifa claramente abusiva — em narrativa de alinhamento automático ao projeto econômico e geopolítico de Washington.
A esquerda defende que a resposta estratégica do Brasil deve combinar:
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defesa firme da soberania nacional em fóruns multilaterais, como OMC e G20;
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construção de alternativas regionais de comércio e financiamento, reduzindo a vulnerabilidade a sanções unilaterais;
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políticas internas de agregação de valor à produção agrícola, diminuindo a dependência de commodities;
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transparência nas negociações, com participação do Congresso e da sociedade civil, para evitar que acordos comerciais sejam decididos apenas em mesas fechadas com grandes grupos econômicos.
Ao mesmo tempo, permanece a lembrança recente do golpismo bolsonarista e de tentativas de usar o Brasil como plataforma de uma extrema direita global. Nesse contexto, setores da esquerda enxergam com desconfiança qualquer gesto de aproximação de Trump com elites locais dispostas a retomar um projeto neoliberal de choque — algo que, em 2016, contou com apoio significativo da mídia hegemônica brasileira e de segmentos do Judiciário, em um ambiente que muitos descrevem como de Estado de exceção.
O papel da mídia e a disputa de sentidos
A cobertura internacional da decisão vem sendo marcada por um tom predominantemente econômico: foco na queda de preços, na “vitória” de consumidores americanos e na “diplomacia pragmática” entre Lula e Trump.
Setores progressistas brasileiros, porém, chamam atenção para o enquadramento da grande imprensa, que tende a minimizar o caráter punitivo inicial das tarifas e a dimensão política envolvida — o fato de que a sobretaxa foi criada como resposta direta ao processo e à condenação de Bolsonaro por tentativa de golpe, numa espécie de recado a um Judiciário que ousou responsabilizar um aliado ideológico de Trump.
Nesse sentido, o episódio reabre o debate sobre a necessidade de democratização das comunicações e sobre como a mídia hegemônica constrói consensos em torno de uma agenda comercial que nem sempre corresponde aos interesses de trabalhadores rurais, pequenos produtores e consumidores brasileiros. Ao destacar apenas o impacto positivo sobre exportações e balança comercial, parte da cobertura invisibiliza a discussão mais ampla sobre justiça tributária, soberania alimentar e transição para modelos de produção menos dependentes de grandes conglomerados e da lógica da guerra contra a natureza.
No curto prazo, a decisão de Washington tende a aliviar pressões sobre o agro exportador brasileiro e a contribuir para a redução de preços de alimentos nos EUA. Mas, num horizonte mais longo, o episódio deixa lições importantes: a centralidade da soberania nacional diante do uso político de tarifas por potências centrais; a urgência de reequilibrar o regime de comércio internacional em favor de países do Sul global; e a necessidade de fortalecer uma pauta de desenvolvimento que não se resuma à disputa por mercados externos, mas coloque no centro a vida digna no campo, a proteção ambiental e a construção de um sistema alimentar justo.
Para a esquerda brasileira, o recuo de Trump é bem-vindo, mas não encerra a história. Ele lembra que, no atual cenário global, nenhuma conquista é definitiva quando se trata de enfrentar o imperialismo econômico — e que a luta por uma inserção internacional soberana e solidária segue sendo tarefa de longo prazo.
Referências
Reuters – Trump signs order to remove tariffs from some Brazilian agricultural imports
Financial Times – Donald Trump removes 40% tariff from some Brazilian food products
Politico – Trump strikes tariffs on Brazilian coffee, beef and other foods
UPI – U.S. drops 40% tariff on Brazilian products including coffee and more
Agencia EFE – Trump withdraws 40% tariff on certain Brazilian products after negotiating with Lula
