Bombardeios sucessivos contra a segunda maior cidade da Ucrânia matam ao menos quatro pessoas e ferem dezenas, enquanto Moscou e potências ocidentais aprofundam uma guerra de imperialismo e desgaste sem horizonte de paz.
As primeiras horas da manhã em Kharkiv, segunda maior cidade da Ucrânia, voltaram a ser marcadas por sirenes, explosões e fumaça densa no horizonte. Um novo ataque de drones e mísseis russos atingiu áreas residenciais e estruturas civis, deixando ao menos quatro mortos e dezenas de feridos, entre eles crianças, segundo autoridades locais.
De acordo com relatos da administração regional, a ofensiva começou durante a madrugada, quando uma onda de drones – em grande parte modelos Shahed, de fabricação iraniana – acompanhada de mísseis atingiu bairros densamente povoados. No total, 18 prédios residenciais e 13 casas particulares foram danificados ou destruídos, além de comércios de bairro e veículos.
A dimensão da destruição levou o prefeito de Kharkiv, Ihor Terekhov, a classificar o episódio como um dos ataques mais poderosos sofridos pela cidade desde o início da invasão russa em 2022. Em meio aos escombros, equipes de resgate ainda trabalhavam com a hipótese de haver pessoas soterradas, enquanto hospitais locais corriam para atender um fluxo contínuo de feridos, muitos deles em estado grave.
Kharkiv sob fogo: rotina de medo e resistência
Kharkiv, localizada a cerca de 30 quilômetros da fronteira com a Rússia, tornou-se alvo recorrente de ataques de artilharia, drones e mísseis desde os primeiros meses da guerra. A proximidade geográfica transforma a cidade em linha de frente permanente, onde a população civil paga o preço da disputa entre exércitos e agendas geopolíticas que extrapolam o território ucraniano.
Nos ataques mais recentes descritos por autoridades ucranianas, as explosões provocaram incêndios em blocos de apartamentos, escolas e pequenos comércios. Vários moradores relataram que foram surpreendidos enquanto dormiam, sem tempo para chegar a abrigos antiaéreos. Entre os feridos, há crianças pequenas e adolescentes, evidenciando o caráter indiscriminado dos alvos atingidos.
Ao mesmo tempo em que a cidade contabiliza mortos e feridos, o comando militar ucraniano destaca que suas defesas antiaéreas conseguiram interceptar a maior parte dos projéteis lançados pela Rússia – 94 de 215 drones e mísseis, segundo balanço recente. A disparidade entre o número total de vetores de ataque e aqueles que conseguem furar o escudo de defesa indica tanto a intensidade da ofensiva russa quanto o esforço de Kiev e de seus aliados para evitar um cenário ainda mais devastador.
Guerra de desgaste e disputa entre potências
Embora o ataque a Kharkiv seja oficialmente justificado por Moscou como ofensiva contra “infraestrutura militar e logística” ucraniana, a realidade em solo revela um padrão de destruição que atinge principalmente moradias, hospitais e serviços básicos. Em termos de leitura crítica da guerra, trata-se de uma ofensiva que combina lógica de concentrações de poder militares com uma mensagem política: manter a Ucrânia sob permanente vulnerabilidade.
Do outro lado, as potências ocidentais lideradas pelos Estados Unidos seguem enviando armamentos, sistemas de defesa e apoio financeiro a Kiev, numa engrenagem que desloca o conflito do campo estritamente nacional para o tabuleiro da disputa entre blocos. É nesse cenário que analistas de esquerda têm descrito a guerra como um confronto assimétrico, em que a agressão russa viola abertamente a soberania nacional ucraniana, ao mesmo tempo em que se insere numa arquitetura global de imperialismo, na qual também pesa o histórico de expansão da OTAN para o leste europeu.
Para setores do chamado bloco anti-imperialista, sobretudo no Sul Global, a guerra na Ucrânia revela a seletividade da comoção internacional: sanções, cobertura intensa e condenações unânimes quando a vítima é um país europeu, silêncio ou relativização quando o alvo são populações do Oriente Médio, da África ou da América Latina. Essa visão não significa relativizar o sofrimento de Kharkiv, mas conectá-lo a outros conflitos em que civis também são reduzidos a “dano colateral” em nome de interesses estratégicos.
A disputa pela narrativa e o papel da mídia
Na batalha paralela pelo sentido da guerra, a comunicação virou campo de disputa central. Veículos internacionais de referência relatam os ataques de Kharkiv como mais um capítulo na escalada russa e registram os apelos de Zelensky por mais sistemas de defesa aérea e sanções mais duras contra Moscou.
Ao mesmo tempo, a mídia hegemônica ocidental tende a enquadrar o conflito quase exclusivamente a partir da perspectiva da OTAN, com menos espaço para vozes que questionam a militarização contínua e defendem negociações de paz imediatas. Essa assimetria alimenta críticas de que o noticiário reproduz, muitas vezes, o ponto de vista das chancelarias ocidentais, reforçando o olhar da mídia neoliberal que naturaliza gastos militares bilionários enquanto relativiza agendas sociais.
Por outro lado, veículos independentes ucranianos e internacionais tentam exercer papel de contrainformação, documentando em detalhes o impacto dos bombardeios sobre civis, denunciando possíveis crimes de guerra e cobrando responsabilização em tribunais internacionais. É esse esforço que permite, por exemplo, registrar o nome de vítimas, revelar a destruição de escolas, hospitais e prédios residenciais, e coletar evidências que poderão fundamentar processos futuros.
A circulação de imagens de Kharkiv em ruínas, com prédios carbonizados e famílias inteiras desalojadas, também cumpre o papel de romper o filtro da distante “geopolítica de gabinete” e trazer à tona a dimensão humana da guerra – algo que o jargão militar tende a esconder sob siglas e mapas.
Civis no alvo: direito internacional e impunidade
Independentemente da leitura geopolítica, o ataque de drones contra Kharkiv atinge em cheio princípios básicos do direito internacional humanitário, que proíbe ataques deliberados a civis e exige a distinção clara entre alvos militares e não-militares. As autoridades ucranianas falam abertamente em crimes de guerra, e organizações de direitos humanos registram um padrão de bombardeios que atingem habitações, centros de saúde e infraestrutura essencial, com número crescente de crianças feridas ou mortas.
Essa normalização da violência cotidiana aprofunda um clima de estado de exceção prolongado, em que regras mínimas de proteção à vida são relativizadas pela lógica da “necessidade militar”. Na prática, populações inteiras se veem empurradas para abrigos, fronteiras e rotas de fuga, enquanto decisões tomadas por líderes distantes definem se haverá eletricidade, água ou aquecimento no dia seguinte.
Kharkiv simboliza essa realidade: alvo recorrente, cidade industrial e acadêmica, polo de inovação que, em vez de laboratórios e escolas funcionando a pleno, convive com sirenes, janelas estilhaçadas e uma geração de crianças crescendo em meio a ruínas.
Pressão por negociações e o lugar do Sul Global
Enquanto os mísseis continuam caindo, diplomatas tentam, em mesas de negociação na Europa e em outras regiões, costurar fórmulas de cessar-fogo e acordos de segurança – quase sempre travados por desconfianças mútuas e exigências maximalistas.
Países do Sul Global, incluindo o Brasil, têm insistido na necessidade de uma saída diplomática que respeite a soberania nacional ucraniana e, ao mesmo tempo, questione os mecanismos que sustentam a atual ordem de concentrações de poder militares e econômicas – da OTAN ao complexo industrial bélico, passando pelo uso seletivo de sanções e embargos energéticos.
Essa posição defende que não cabe simplesmente “escolher um lado” na lógica binária da guerra, mas denunciar qualquer forma de agressão imperial e qualquer tentativa de prolongar o conflito em nome de vantagens geopolíticas. O que está em jogo, lembram analistas, não é apenas o destino de Kharkiv ou da Ucrânia, mas o precedente que se cria: até onde um país pode ir na violação de fronteiras, direitos e vidas sem enfrentar responsabilização efetiva?
Entre ruínas e resistência
Do ponto de vista da população de Kharkiv, debates estratégicos e mapas de influência se traduzem em questões muito concretas: onde dormir sem medo de um drone explodir sobre o teto? Como manter hospitais funcionando sob risco permanente de apagões e bombardeios? Como reconstruir uma cidade enquanto o som das sirenes continua fazendo parte da rotina?
Ainda assim, relatos que chegam da região mostram uma sociedade que insiste em manter alguma normalidade: escolas improvisadas em abrigos, cozinhas comunitárias para alimentar deslocados internos, redes de solidariedade garantindo roupas e medicamentos a quem perdeu tudo. Essa dimensão de resistência cotidiana, muitas vezes ignorada pela mídia hegemônica, revela que, mesmo sob fogo constante, comunidades encontram formas de defender a vida e preservar laços sociais.
Enquanto a guerra se arrasta e potências discutem “custos aceitáveis” em reuniões fechadas, os ataques de drones contra Kharkiv lembram diariamente que não há cálculo geopolítico neutro quando o resultado são corpos sob escombros e famílias dilaceradas. Entre a retórica de “vitórias táticas” e “janelas de oportunidade diplomática”, a cidade segue contando seus mortos – e exigindo que a comunidade internacional vá além de declarações protocolares, pressionando por um cessar-fogo, responsabilização de agressores e um processo de paz que coloque a dignidade humana no centro, e não na margem, das negociações.
Fontes consultadas
Reuters / The Straits Times – Russian attacks on Ukraine’s Kharkiv kill four, wound at least 60, officials say
AP News – Russian attacks on eastern Ukrainian city of Kharkiv kill 4, wound more than two dozen
ABC News (Austrália) – Russian drone and missile strike hits major Ukraine city, dimming peace hopes
Al Jazeera – Russia attacks Ukraine’s Kharkiv as prisoner swap hangs in balance
Reuters – Four killed in massive Russian drone attack on Kharkiv, officials say
