De AfD na Alemanha a RN na França, passando por Meloni na Itália e o impacto de Trump 2.0, a “nova direita” já lidera pesquisas nas maiores economias do continente – e a mídia hegemônica trata como “novo normal” o que é, na verdade, é regressão autoritária
A Europa que se acreditava imune ao veneno do fascismo pós-guerra acordou, em 2025, com a extrema direita não apenas batendo à porta, mas já sentada à mesa do poder em vários países e liderando pesquisas nas maiores economias do continente. Pela primeira vez na história recente, partidos abertamente nacionalistas, xenófobos e anti-sistema ocupam o primeiro lugar nas intenções de voto na Alemanha (AfD), França (Reagrupamento Nacional de Marine Le Pen), Reino Unido (Reform UK de Nigel Farage) e Itália (Fratelli d’Italia de Giorgia Meloni já governa desde 2022). Na Áustria, o FPÖ venceu as legislativas de setembro. Na Holanda, mesmo com recuo de Wilders em outubro, a extrema direita segue forte. Em Portugal, na Dinamarca, os social-democratas de Mette Frederiksen perderam o controle de Copenhague pela primeira vez em mais de um século nesta semana.
A mídia neoliberal não fala mais sozinha, mas ainda tenta normalizar o fenômeno. The Guardian fala em “firewall em reparo”, o Financial Times publica análises sobre “o fim do centro político europeu”, o Politico europeu trata a vitória da extrema direita como “novo equilíbrio”. Mas quem acompanha a contrainformação sabe: isso não é equilíbrio. É o avanço sustentado de uma extrema direita que aprendeu a falar com terno e gravata, que trocou o braço esticado pela retórica da “defesa da identidade nacional”, que surfou na crise econômica pós-pandemia, na inflação energética provocada pela guerra na Ucrânia e no medo do migrante para se tornar força hegemônica em tempo recorde.
Porque o crescimento não é conjuntural. É estrutural. É o resultado direto de quarenta anos de neoliberalismo selvagem que destruiu o welfare state, precarizou o trabalho, concentrou renda como nunca e deixou milhões de europeus – especialmente a classe trabalhadora branca das regiões industriais desativadas – sem perspectiva. Quando o centro-direita tradicional (CDU na Alemanha, Republicanos na França, Tories no Reino Unido) adotou a agenda neoliberal até o osso, abriu espaço para que a extrema direita aparecesse como “alternativa anti-sistema”. O cinismo ‘liberal’ fez o resto: enquanto os grandes veículos repetiam que “não há alternativa” ao ajuste fiscal, ao corte de direitos trabalhistas, à desregulamentação, a raiva acumulada encontrou na extrema direita o canal perfeito.
Os números são assustadores. Na Alemanha, a AfD chega a 24% nas pesquisas nacionais de novembro de 2025 e lidera com folga nos estados do leste. Na França, Marine Le Pen mantém 33-35% de intenção de voto para 2027. No Reino Unido, Reform UK de Farage já ultrapassa os conservadores e flerta com os 25%. Na Itália, Giorgia Meloni governa com maioria absoluta e impõe agenda anti-migrante sem resistência significativa. Na Espanha, o Vox consolida 15%. Em Portugal, o Chega já é terceira força. Na Suécia, os Democratas Suecos sustentam o governo. Na Finlândia, na Hungria, na Eslováquia, a extrema direita já está no poder ou é indispensável para governar.
E o que une todos esses partidos? A mesma receita: xenofobia como política de Estado, ataque aos direitos das mulheres e LGBT+, negacionismo climático, alinhado ao grande capital fóssil, culto ao “homem forte” que “fala o que o povo pensa”. A mesma receita que vimos no Brasil com Bolsonaro: primeiro demonizam o migrante, o pobre, o sindicalista, o movimento social; depois criminalizam a esquerda; por fim, instalam o estado de exceção disfarçado de “ordem e progresso”.
A volta de Trump à Casa Branca em janeiro de 2025 funcionou como injeção de ânimo. Marine Le Pen declarou que “o vento da história soprou”. Alice Weidel, da AfD, comemorou que “agora é possível vencer”. Giorgia Meloni, já alinhada a Musk e a Orbán, tornou-se ponte entre Washington e Bruxelas. O efeito Trump 2.0 é claro: a extrema direita europeia sentiu-se legitimada. Deixou de ser “marginal” para se tornar mainstream. O Patriots for Europe, grupo no Parlamento Europeu que reúne RN, Liga de Salvini, Vox, Chega e outros, já é a terceira força em Strasbourg. E cresce.
A mídia hegemônica chama isso de “populismo”. Nós chamamos pelo nome: fascismo do século XXI. Porque não é só retórica anti-imigração. É projeto de poder. É ataque sistemático às instituições democráticas, à independência do Judiciário, à liberdade de imprensa (quando não controlam a imprensa), aos direitos humanos. É a mesma lógica que vimos no Brasil entre 2016 e 2022: primeiro o golpe midiático contra Dilma, depois a República Lava Jato, depois Bolsonaro e o 8 de janeiro. Na Europa, o roteiro se repete: crise econômica → culpa nos migrantes e na “esquerda caviar” → promessa de “lei e ordem” → erosão democrática.
E a esquerda? A esquerda europeia, com raras exceções, segue fragmentada, defensiva, refém do “mal menor”. Os social-democratas alemães do SPD aceitam coalizão com verdes e liberais que aplicam ajuste fiscal. Os trabalhistas britânicos de Starmer deportam migrantes para ganhar voto da direita. Os socialistas franceses de Mélenchon não conseguem unir a esquerda. Os Verdes viraram partido do centro cosmopolita. O resultado é conhecido: quem capitaliza a raiva popular é a extrema direita.
Mas há resistência. Nas ruas de Paris contra Le Pen, nas greves na Alemanha contra a AfD, nos movimentos antifascistas na Itália, na vitória (ainda que parcial) do centro-esquerda na Holanda em outubro de 2025. Há sinais de que o avanço da extrema direita não é inexorável. Mas para derrotá-la é preciso nomear o inimigo: não é o migrante. É o neoliberalismo que criou as condições para que o ódio se torne projeto político.
Porque enquanto a esquerda seguir aceitando o marco neoliberal – ajuste fiscal, teto de gastos europeu, desmonte do welfare – a extrema direita seguirá crescendo. A lição brasileira é clara: só se derrota o bolsonarismo com projeto popular, com distribuição de renda, com Estado forte que garanta direitos, com discurso que una classe trabalhadora em torno da dignidade e não da raiva.
A Europa de 2025 está no caminho que o Brasil trilhou em 2018. Resta saber se a esquerda continental vai acordar antes que seja tarde. Porque quando a extrema direita se consolida, não sai mais com voto. Sai com luta nas ruas, com organização popular, com coragem de romper com o neoliberalismo que a sério.
A hora de dar a cara à tapa é agora. Porque se a Europa cair, o mundo sente. E o monstro que o neoliberalismo criou não vai parar sozinho.
Fontes
The Guardian – The Guardian view on Europe’s firewall against the far right: in growing need of repair
Reuters – Far-right populists surge across Europe
Chatham House – The rise of Reform, the AfD and RN is more than a blip
Carnegie Endowment – The European Radical Right in the Age of Trump 2.0
World Politics Review – Europe’s Far Right Has the Wind in Its Sails Again
