Vitória da direita em Lisboa, presidência ultraconservadora em Varsóvia e um mesmo roteiro: usar o fantasma do “woke” para atacar direitos, reconfigurar a relação com Bruxelas e alimentar uma nova onda nacionalista no continente.
Quando a coligação de centro-direita Aliança Democrática (AD) venceu por margem mínima as legislativas de março de 2024 em Portugal, muitos analistas falaram em “correção de rota” após anos de governos socialistas.Menos de um ano depois, o quadro ficou bem mais nítido: nas eleições antecipadas de maio de 2025, a AD voltou a liderar, mas quem roubou a cena foi o partido de extrema-direita Chega, que se consolidou como principal força de oposição e rompeu o velho equilíbrio entre socialistas e sociais-democratas.
No outro extremo do continente, a Polónia viu, em 2025, a eleição do historiador nacionalista Karol Nawrocki à presidência, com pouco mais de 50% dos votos, apoiado pelo partido ultraconservador Lei e Justiça (PiS) e celebrado por Donald Trump como “aliado” na guerra cultural contra Bruxelas. O resultado foi um duro revés para o governo pró-UE de Donald Tusk e um sinal de que a maré conservadora, longe de ter recuado, encontrou nova plataforma institucional.
De Lisboa a Varsóvia, o discurso se repete com sotaques diferentes: denúncia de uma suposta “agenda woke de Bruxelas”, ataques à “ideologia de género” e a políticas de igualdade, demonização de pessoas LGBTI+ e migrantes, defesa de uma Europa de “nações soberanas” contra o que é pintado como engenharia social da União Europeia.
Para a esquerda europeia, trata-se de mais um capítulo da ofensiva da extrema-direita e de setores conservadores que, sob o pretexto de combater o “excesso de progressismo”, colocam em xeque direitos fundamentais e tentam reescrever o sentido de soberania nacional.
Portugal: do “país moderado” à extrema-direita como oposição oficial
Portugal era frequentemente descrito como “exceção” no mapa da extrema-direita europeia. Em 2019, quando o Chega elegeu seu primeiro deputado, a narrativa dominante era a de um país “imune” ao populismo radical.Seis anos depois, o partido de André Ventura multiplicou sua bancada e, nas eleições de maio de 2025, tornou-se a segunda maior força no Parlamento, com 60 assentos, assumindo o papel de oposição principal ao governo de Luís Montenegro.
A AD – uma coligação entre PSD e CDS – governa em minoria e tenta equilibrar um programa liberal-conservador com a pressão de um Chega que vocaliza pautas abertamente xenófobas, anti-imigração e hostis a políticas de igualdade de género e diversidade. Nos últimos anos, Ventura e seus aliados incorporaram de forma cada vez mais explícita o vocabulário importado da direita norte-americana: denunciam “ditadura do politicamente correto”, “lobby LGBT” e “ideologia de género”, acusando o governo e a UE de promover um suposto “wokismo” que destruiria a identidade nacional.
Na prática, esse discurso se traduz em:
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propostas de endurecimento das políticas migratórias e de expulsão em massa de imigrantes em situação irregular;
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ataques a programas de educação sexual e de direitos LGBTI+ em escolas;
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resistência a políticas europeias de combate à discriminação e promoção da igualdade de género.
Do ponto de vista da esquerda, esse avanço não é apenas eleitoral. É cultural. A extrema-direita portuguesa conseguiu deslocar o centro do debate público para a agenda dos costumes, obrigando mesmo setores moderados a reagir no terreno simbólico do “anti-woke”, enquanto temas estruturais – precariedade, habitação, desigualdade – ficam em segundo plano. Autores portugueses já apontam que o termo “woke” virou espantalho conveniente: tudo o que incomoda os conservadores – de direitos das mulheres a proteção de imigrantes – é colado nesse rótulo para ser deslegitimado.
Polónia: fim das zonas “LGBT-free”, começo de uma nova coabitação conservadora
Na Polónia, o quadro é mais ambíguo e, justamente por isso, revelador. Em 2023, o partido ultraconservador Lei e Justiça (PiS) perdeu a maioria parlamentar, abrindo espaço para uma coligação pró-europeia liderada por Donald Tusk. A UE celebrou a derrota de um governo que, durante oito anos, havia se confrontado com Bruxelas em temas como independência judicial, liberdade de imprensa e direitos LGBTI+.
Sob pressão direta da Comissão Europeia e sob ameaça de corte de fundos estruturais, as autoridades polacas foram recuando nas infames “zonas livres de ideologia LGBT”, resoluções discriminatórias aprovadas por cerca de um terço do território entre 2019 e 2020. Hoje, todos esses atos locais foram oficialmente revogados.
Mas seria um erro concluir que a guerra cultural acabou. Em 2025, o país elegeu para a presidência Karol Nawrocki, um historiador conservador, nacionalista, apoiado pelo PiS e abertamente apoiado por Donald Trump. Nawrocki venceu por margem estreita – cerca de 50,9% dos votos – num pleito altamente polarizado.
Com poder de veto sobre leis aprovadas pelo Parlamento, o novo presidente já prometeu bloquear reformas progressistas em áreas como direitos LGBTI+, aborto e reversão de algumas mudanças judiciais feitas na era PiS. Sua campanha foi construída em torno de slogans como “Polónia primeiro, polacos primeiro”, com forte retórica contra refugiados ucranianos, migrantes em geral e o que descreve como “doutrinação woke de Bruxelas”.
Ao mesmo tempo, o partido de extrema-direita Konfederacja – abertamente anti-UE, anti-feminista e hostil a direitos LGBTI+ – mantém presença estável no Parlamento e cresce especialmente entre jovens homens desencantados.
Ou seja: a Polónia saiu de um ciclo de governo ultraconservador, mas entrou numa coabitação tensa, em que um executivo mais liberal precisa negociar cada passo com um presidente alinhado à velha direita nacionalista e a um campo conservador que não aceita a derrota. O risco – apontam analistas – é que se consolide um estado de exceção informal, em que reformas progressistas são constantemente vetadas, enquanto estruturas herdadas do PiS seguem funcionando como travões institucionais.
O “wokismo da UE” como espantalho: de Bruxelas a Lisboa e Varsóvia
Na narrativa desses atores, a União Europeia deixou de ser apenas um projeto de integração económica e se tornou uma máquina de impor “wokismo”: políticas de igualdade de género, cotas, direitos LGBTI+, educação antirracista, transição ecológica. Estudos recentes mostram como a retórica “anti-woke” – nascida na extrema-direita dos EUA – foi importada por partidos europeus para atacar o que chamam de “ideologia de género” e “ditadura do politicamente correto”, de Portugal à Polónia.
Na prática, essa cruzada mira:
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programas de diversidade e inclusão em universidades e empresas;
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legislação anti-discriminação e reconhecimento de famílias LGBTI+;
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políticas ambientais e climáticas que mexem com interesses de grandes grupos económicos.
Para a esquerda, trata-se de uma ofensiva coordenada contra décadas de luta por direitos, disfarçada em linguagem de “liberdade de expressão” e “defesa da família”. O termo “woke” – originalmente associado a estar atento a injustiças raciais – virou, nas palavras de pesquisadores europeus, um “conceito elástico” usado para atacar qualquer agenda de igualdade.
Guerra cultural, mídia hegemônica e o papel da informação
O avanço dessa agenda conservadora não se explica apenas por eleições. Ele é alimentado por uma poderosa máquina de comunicação. Em Portugal, Chega e aliados exploram redes sociais e programas sensacionalistas, enquadrando políticas de direitos humanos como parte de um complô “globalista” dirigido por Bruxelas. Na Polónia, anos de governo PiS deixaram um ecossistema midiático público alinhado ao discurso “anti-ideologia LGBT” e desconfiado de instituições europeias.
É nesse terreno que a crítica à mídia hegemônica ganha força no campo progressista: grandes conglomerados, muitas vezes ligados a interesses económicos conservadores, dão palco a uma cruzada anti-woke que raramente explica o que, de fato, está em jogo – direitos civis básicos, compromissos ambientais, combate a desigualdades históricas. O resultado é um clima de pânico moral permanente, em que qualquer política de igualdade pode ser tachada de “doutrinação”.
Ao mesmo tempo, cresce a denúncia do cinismo ‘liberal’ da imprensa: veículos que defendem a UE como espaço de mercado e disciplina fiscal, mas são tímidos na defesa dos pilares sociais do projeto europeu – direitos humanos, antidiscriminação, proteção de minorias. Quando esses direitos são atacados por governos ou presidentes conservadores, o tom muitas vezes se limita a registrar “tensões” e “polarização”, neutralizando o caráter regressivo das medidas.
Diante disso, movimentos sociais, coletivos LGBTI+, sindicatos e meios alternativos insistem num velho lema da esquerda: Contrainformação é poder. Em outras palavras, disputar o sentido de “wokismo” – recolocando-o no terreno da luta por igualdade – é tão importante quanto vencer eleições.
Soberania para quê e para quem?
Curiosamente, tanto em Portugal quanto na Polónia, o vocabulário da soberania nacional aparece com força nos discursos conservadores: fala-se em “recuperar controle” de Bruxelas, em defender a “identidade nacional” contra tratados europeus e em frear “imposições culturais” vindas da UE.
Do ponto de vista de uma esquerda internacionalista, há aí uma contradição central. A defesa da soberania pode ser bandeira progressista quando se opõe ao imperialismo económico e militar de grandes potências ou ao cartel financeiro que dita políticas de austeridade. Mas, no caso em pauta, o que se vê é o uso seletivo da soberania para atacar justamente os mecanismos europeus que tentam proteger direitos de minorias, o Estado de direito e a independência judicial – como ficou claro no embate entre UE e governos polacos anteriores sobre reformas do Judiciário e as zonas “LGBT-free”.
Ao transformar a “agenda woke da UE” em vilã, esses projetos deslocam a raiva social – alimentada por desigualdade, estagnação salarial, crise da habitação e insegurança – para bodes expiatórios: migrantes, pessoas LGBTI+, feministas, ambientalistas. É uma forma de golpismo cultural: não necessariamente derrubar governos pela força, mas corroer silenciosamente os pilares de uma democracia pluralista, legitimando a exclusão e o retrocesso em nome de uma moralidade “tradicional”.
Entre Bruxelas e as ruas: o desafio para o campo progressista
A ascensão de conservadores em Portugal e a nova presidência nacionalista na Polónia não significam, por si só, uma derrota definitiva da agenda de direitos na Europa. Em ambos os países, resistências organizadas permanecem fortes: partidos de esquerda, movimentos sociais, sindicatos, coletivos feministas e LGBTI+ seguem presentes nas ruas e nas instituições.
Mas o cenário é de alerta. A combinação de governos ou lideranças conservadoras com um discurso agressivo contra o “wokismo da UE” pode:
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travar avanços em direitos LGBTI+ e igualdade de género;
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dificultar políticas comuns de acolhimento de migrantes e refugiados;
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alimentar alianças transnacionais entre forças de extrema-direita, do Chega a figuras como Karol Nawrocki e outros líderes nacionalistas europeus.
Para o campo progressista, o desafio é duplo: defender a UE como espaço de direitos – e não apenas de mercado – sem ignorar suas contradições; e disputar o significado de “woke”, recolocando a discussão no terreno original de onde saiu: o combate a injustiças sistémicas e a defesa de uma democracia que não seja apenas formal, mas materialmente inclusiva.
No fim, a pergunta que ecoa de Lisboa a Varsóvia não é se a Europa vai ser “woke” ou “anti-woke”, mas se o projeto europeu será capaz de se reinventar como espaço de democratização das comunicações, de direitos sociais e de proteção de minorias – ou se cederá ao pânico moral fabricado por uma nova geração de conservadores que, em nome de “defender o povo”, se especializou em escolher qual parte desse povo merece direitos.
Referências
Reuters – Portugal’s far-right Chega becomes main opposition party
AP News – Portugal’s Chega party becomes the main opposition and joins Europe’s far-right surge
France 24 – Ruling party tops Portugal polls marked by far-right surge
Atlantic Council – Portugal’s shift to the right is accelerating. What does that mean for its future?
Jacobin – The Portuguese Election Marks a Shift to the Right
Reuters – Polish nationalist Nawrocki wins presidency in setback for pro-EU government
The Guardian – Right-wing candidate Karol Nawrocki narrowly wins Poland’s presidential runoff
AP News – Nawrocki’s win turns Poland toward nationalism and casts doubt on Tusk’s centrist government
Human Rights Watch – Poland Ends ‘LGBT Free’ Zones
EUI Ideas – Anti-wokeism is infiltrating the progressives’ agenda: Why is this dangerous?
