Destróieres, marines e porta-aviões na porta da Venezuela consolidam a ofensiva de imperialismo sob o rótulo de “guerra às drogas”, tensionam a soberania nacional e acendem alerta em toda a região do Caribe.
Quando a Casa Branca manda uma flotilha de destróieres, um grupo anfíbio de marines e até um porta-aviões para o entorno da Venezuela, a mensagem não é apenas “combate ao narcotráfico”. É recado geopolítico em alto e bom som. Em poucos meses, os Estados Unidos concentraram no sul do Caribe pelo menos três destróieres Aegis, um cruzador, um esquadrão anfíbio com cerca de 4,5 mil fuzileiros navais, um submarino de ataque rápido e aeronaves de patrulha marítima, sob a justificativa de “operação contra cartéis”.
Em paralelo, o governo Trump anunciou a designação do chamado Cartel de los Soles – que Washington alega ser chefiado por Nicolás Maduro – como organização terrorista, dobrou para US$ 50 milhões a recompensa por informações que levem à prisão do presidente venezuelano e intensificou ataques letais contra barcos suspeitos de tráfico na costa do país.
É nesse contexto que a expressão “tropas na mesa” ganha corpo: oficialmente, a Casa Branca repete que “prefere uma transição pacífica”, mas mantém a fórmula de que “todas as opções estão sobre a mesa” – inclusive o uso direto da força, como já havia dito Trump em 2017, no auge da crise venezuelana.
Da “pressão máxima” ao cerco naval
A escalada militar não nasce do nada. Ela é a continuação, por outros meios, da política de pressão máxima adotada desde 2019 contra Caracas: sanções abrangentes sobre a PDVSA, o Banco Central da Venezuela, o setor de ouro, restrições financeiras e ameaças de sanções secundárias a empresas que comprem petróleo venezuelano.
Essa arquitetura de sanções – celebrada por think tanks de Washington como ferramenta “para promover a democracia” – vem sendo duramente criticada por pesquisadores independentes por atingir sobretudo a população civil, derrubar a renda real, colapsar sistemas de saúde e agravar a crise migratória, sem conseguir derrubar Maduro.
Agora, o cerco financeiro é reforçado por um cerco naval. Reportagens apontam que três destróieres Aegis – USS Gravely, USS Jason Dunham e USS Sampson – já operam na região, com apoio de um grupo anfíbio (Iwo Jima, San Antonio, Fort Lauderdale) e de um cruzador e um submarino enviados em seguida. É a maior concentração de meios militares dos EUA no Caribe em décadas, com navios capazes de lançar mísseis de cruzeiro contra alvos em terra.
Washington enquadra tudo como parte de uma campanha contra “cartéis narco-terroristas” que usariam as águas venezuelanas como rota de drogas. Trump já se gabou, em entrevistas, de que os ataques a pequenos barcos próximos à costa venezuelana foram tão intensos que “não sobraram barcos” na área, numa operação com mais de 20 ataques e ao menos 80 mortos em poucos meses.
Para uma leitura de esquerda, trata-se de um manual de imperialismo em pleno funcionamento: sanções econômicas, demonização de um governo hostil, militarização de rotas estratégicas e a construção de um “inimigo absoluto” – o “narco-terrorista” – que justifica tudo, da fome causada por bloqueios ao deslocamento de frotas inteiras.
“Tropas na mesa”: ameaça real ou blefe calculado?
A ideia de que tropas estão “na mesa” não é mero delírio conspiratório. Ela aparece de forma recorrente nas falas oficiais. Desde 2017, altos funcionários dos EUA repetem que, embora a “política seja uma transição pacífica”, “todas as opções estão sobre a mesa” quando o assunto é Venezuela – frase-código que inclui, explicitamente, ação militar.
Nos últimos meses, a movimentação militar veio acompanhada de:
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ordens de Trump ao Pentágono para “elaborar opções” de uso da força contra cartéis, inclusive na região do Caribe;
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uma sequência de ataques letais a embarcações acusadas de transportar drogas, em águas internacionais, amparados por parecer jurídico que promete imunidade a militares dos EUA;
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e o envio do porta-aviões USS Gerald R. Ford para a área, como parte da Operação Southern Spear, consolidando um patamar de intimidação que vai muito além de “patrulha de rotina”.
Analistas ouvidos por veículos como France 24 e AP News ressaltam que, apesar da escalada, a probabilidade de uma invasão imediata ainda é considerada baixa; a operação teria forte componente simbólico e de pressão psicológica sobre o governo Maduro e sobre aliados regionais. Mas o risco de acidente – um sobrevoo arriscado, um disparo mal calculado, um erro de leitura em radar – é real e pode desencadear uma escalada rápida.
Para governos progressistas da região, a mensagem é clara: a mesma lógica de “todas as opções na mesa” que foi usada contra o Iraque, a Líbia ou o Irã volta a rondar o Caribe.
A resposta de Caracas e o alerta do Caribe
Do lado venezuelano, a reação mistura denúncia política e mobilização militar. Maduro classificou o envio dos destróieres como tentativa “ilegal” de mudança de regime, denunciou o movimento como preparação para agressão e anunciou a mobilização de 4,5 milhões de milicianos e tropas regulares, além do envio de navios e drones para patrulhar a costa.
Venezuela também reforçou tropas na fronteira com a Colômbia, em meio a atritos com Bogotá e ao pano de fundo da disputa com a Guiana pelo Essequibo, aumentando ainda mais a temperatura geopolítica na região.
Não são apenas Caracas e seus aliados históricos que soaram o alarme. Lideranças do CARICOM – bloco de países caribenhos – divulgaram declarações contundentes contra a militarização do Caribe, lembrando que a região se declarou “zona de paz” e que a presença de uma flotilha norte-americana com destróieres e navios anfíbios é o maior teste a esse princípio desde a Guerra Fria.
Ainda mais revelador: críticas vieram de governos que não são próximos de Maduro. A própria presidente do México, Claudia Sheinbaum, afirmou não haver evidências sólidas ligando o presidente venezuelano ao cartel de Sinaloa, desmontando parte da narrativa norte-americana.
Cartel de los Soles, terrorismo e estado de exceção permanente
A designação do Cartel de los Soles como organização terrorista é o ponto mais recente de uma estratégia de estado de exceção na política externa: ao carimbar o suposto cartel – descrito por especialistas como mais metáfora política do que organização com hierarquia clara – como “terrorista”, Washington amplia enormemente o raio de ação de sanções, operações militares e perseguição financeira.
Sob esse rótulo, qualquer apoio ou transação com agentes ligados ao governo venezuelano pode ser enquadrado como apoio ao terrorismo. Empresas, bancos e países que insistirem em manter relações comerciais correm risco de sanções secundárias. Isso isola ainda mais Caracas, empurra o país para alianças com Rússia, China e Irã e reforça o discurso de que a Venezuela integra um bloco anti-imperialista que desafia a ordem hegemonizada pelos EUA.
Do ponto de vista crítico, não se trata de negar crimes ou redes de corrupção envolvendo militares e políticos venezuelanos – há evidências e investigações importantes nesse campo. A questão é outra: a forma como o rótulo de terrorismo é usado seletivamente para legitimar escaladas militares e empurrar uma política de golpismo externo, em que sanções, operações de “guerra às drogas” e frotas de guerra se combinam para forçar mudanças políticas à revelia de urnas e mediações multilaterais.
Mídia, narrativa e cinismo ‘liberal’ da imprensa
A cobertura da crise por boa parte da mídia hegemônica internacional segue um roteiro conhecido: manchetes dramáticas sobre “navios contra cartéis”, “porta-aviões contra narcoterrorismo”, longas análises sobre a “ameaça Maduro”, enquanto a discussão sobre o impacto das sanções na fome, na saúde pública e na migração venezuelana aparece em segundo plano.
É aí que entram expressões como mídia neoliberal e cinismo ‘liberal’ da imprensa: veículos que se dizem neutros, mas tratam como natural que um país imponha bloqueios econômicos e cerco naval a outro, ao mesmo tempo em que classificam como “radicalismo” qualquer proposta de revisar o papel das sanções ou de limitar o poder militar dos EUA na região.
Enquanto o noticiário mainstream martela a imagem do “narco-ditador”, vozes latino-americanas – acadêmicos, jornalistas independentes, movimentos sociais – apontam que esse enquadramento apaga o papel histórico do próprio sistema financeiro dos EUA na lavagem de dinheiro do narcotráfico e desresponsabiliza a demanda interna por drogas que alimenta o comércio ilegal.
Lembrar que Contrainformação é poder significa, nesse caso, buscar fontes alternativas, ouvir veículos caribenhos, venezuelanos, brasileiros e organizações multilaterais, em vez de aceitar sem crítica o frame de “operação cirúrgica contra cartéis” que acompanha cada novo deslocamento de destróier rumo ao Caribe.
O que está em jogo para a região
A tensão EUA x Venezuela, com tropas literalmente “na mesa”, projeta riscos que vão muito além de Caracas:
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ameaça a rotas marítimas cruciais para o comércio e o turismo caribenho;
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potencial de incidentes militares que envolvam terceiros países, como Colômbia, Guiana e ilhas do Caribe;
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reforço de um precedente perigoso: o de que basta rotular um governo como “narco-terrorista” para justificar bloqueios e deslocamentos de frotas.
Na perspectiva de uma esquerda latino-americana comprometida com paz e autodeterminação, a defesa da soberania nacional venezuelana não implica adesão acrítica ao chavismo, mas recusa da lógica de que mudanças de governo devam ser determinadas em Washington ou em gabinetes militares. O debate sobre democracia e direitos humanos na Venezuela precisa acontecer, mas sem o peso de mísseis Tomahawk ancorados a poucas milhas da costa.
Enquanto isso, a vida segue na Venezuela real: em bairros populares que sofrem tanto com a crise interna quanto com o estrangulamento externo; em filas de hospitais impactados por falta de insumos; em portos e fronteiras por onde milhões já deixaram o país. A “pressão máxima” que hoje se reforça com navios de guerra pode até não derrubar Maduro – como mostram anos de sanções – mas certamente aprofunda o sofrimento de quem menos tem poder de decisão sobre esse conflito.
O Caribe, declarado “zona de paz” há poucos anos, assiste a tudo isso cercado por cascos cinzentos. A escolha colocada à região, mais uma vez, é entre normalizar a presença permanente de frotas estrangeiras em nome da “segurança” ou fortalecer caminhos de integração, diálogo e desmilitarização. E, nesse tabuleiro, não há neutralidade inocente: calar diante da escalada é, na prática, aceitar que o imperialismo continue ditando quem pode – ou não – respirar em paz no hemisfério.
Referências
AP News – Trump says US may have discussions with Maduro as aircraft carrier arrives in Caribbean
Reuters – Pentagon says it struck another suspected drug boat in Pacific, killing three
France 24 – Trump boasts US strikes have wiped out drug boats off Venezuela
9News / Associated Press – US destroyers head toward Venezuela as Trump aims to pressure drug cartels
Task & Purpose – Navy warships amass near Venezuela
CBS/AFP – Venezuela deploys warships, drones after U.S. sends guided-missile destroyers to region
WiredJA – CARICOM | Caribbean Leaders Draw Red Line as US Warships Circle Venezuela
The Guardian – US will label supposed Venezuelan drug cartel ‘headed by Maduro’ as terrorist organization
Correio do Povo – Cartel de los Soles: uma organização real ou uma tática dos EUA contra a Venezuela?
Atlantic Council – US Sanctions on Venezuela: Maximum Pressure Sanctions on Venezuela (draft)
