Designação do Cartel de los Soles como organização terrorista pelos EUA aprofunda a guerra às drogas em chave de imperialismo, eleva o risco de conflito no Caribe e tensiona a soberania nacional venezuelana e latino-americana.
Quando o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos decidiu classificar o chamado Cartel de los Soles como “Organização Terrorista Global Especialmente Designada” e vincular diretamente o grupo ao presidente venezuelano Nicolás Maduro, não se tratou apenas de mais um capítulo da longa guerra às drogas. Foi um movimento político calculado, que combina pressão econômica, jurídica e militar, reposicionando a América Latina no mapa de ameaças de Washington.
Na narrativa oficial norte-americana, o “Cartel de Maduro” não é um esquema de corrupção isolado, mas uma “máquina de narcoterrorismo” que teria usado o Estado venezuelano para enviar toneladas de cocaína aos EUA ao longo de duas décadas, em parceria com grupos como as FARC, o Tren de Aragua e o cartel de Sinaloa. Ao rotular o grupo como terrorista, o governo norte-americano habilita todo um arsenal legal: congelamento de ativos, sanções secundárias a terceiros países, ameaça de uso da força sob o guarda-chuva da “segurança nacional” e da “luta contra o narcoterrorismo”.
Do outro lado, Caracas denuncia uma operação de imperialismo clássico, acusando Washington de fabricar um inimigo conveniente para justificar sanções devastadoras e o deslocamento de navios de guerra para o Caribe, num cenário que lembra as grandes crises da Guerra Fria. Entre esses dois polos, a região assiste à escalada com preocupação: o rótulo de “grupo terrorista” não fica circunscrito às elites bolivarianas — respinga sobre as populações empobrecidas que vivem nos corredores do narcotráfico e nas fronteiras militarizadas.
O que diz Washington: narcoestado, terrorismo e recompensa milionária
A virada recente tem marco claro: em 25 de julho de 2025, a área de controle de ativos estrangeiros (OFAC) do Tesouro norte-americano incluiu o Cartel de los Soles na lista de “Terroristas Globais Especialmente Designados”, argumentando que a rede, liderada por altos oficiais chavistas, apoia organizações já classificadas como terroristas, como o Tren de Aragua e o cartel de Sinaloa.
A medida se soma a um processo mais longo. Em 2020, o Departamento de Justiça já havia indiciado Maduro e outros 14 altos funcionários venezuelanos por narco-terrorismo e conspiração para traficar cocaína aos EUA, alegando que, desde o fim dos anos 1990, o grupo atuaria como uma espécie de “cúpula” do tráfico, usando estruturas do Exército, da inteligência e do Judiciário.
Em 2025, a escalada ficou ainda mais nítida: Washington aumentou a recompensa pela captura ou informações que levem à condenação de Maduro para US$ 50 milhões, um valor comparável ao oferecido por líderes de organizações como a Al-Qaeda em outros momentos da política externa norte-americana. Paralelamente, o governo Trump enviou destróieres e outros navios de guerra para perto das águas territoriais venezuelanas sob o pretexto de operações antidrogas, enquanto porta-vozes falavam abertamente em “narcoterroristas” e “ditador ilegítimo”.
É a consagração de um enquadramento: da “ditadura” que frauda eleições ao “narcoestado” que opera como cartel; do “narcoestado” ao “Estado terrorista” que justificaria uma resposta excepcional. Não é por acaso que esse vocabulário aparece num contexto em que a própria política interna norte-americana vive seu estado de exceção informal, com a mídia neoliberal e setores da extrema direita disputando quem é mais duro na retórica contra governos classificados como “antiamericanos”.
A versão de Caracas e a controvérsia sobre o “cartel”
Maduro e seus aliados negam frontalmente as acusações. O governo venezuelano fala em “montagem política” e “perseguição imperial”, insistindo que as denúncias de narco-terrorismo servem para desviar o foco da crise de drogas nos próprios EUA e para legitimar sanções que aprofundaram a crise econômica e humanitária na Venezuela.
Não são apenas os chavistas que colocam dúvidas sobre o rótulo. Investigações jornalísticas e análises independentes reconhecem a existência de redes de corrupção e tráfico envolvendo oficiais da Guarda Nacional e das Forças Armadas, mas questionam se há, de fato, um “cartel” centralizado, com hierarquia e comando unificado, como sugere a expressão “Cartel de los Soles”.
Para analistas críticos, a narrativa de um “cartel chefiado por Maduro” simplifica uma teia complexa, em que se misturam:
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Fragmentos de Estado capturados por redes criminosas;
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Rotas históricas de cocaína que atravessam Colômbia, Venezuela e Caribe;
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A presença de grupos armados colombianos (FARC dissidentes, ELN) em áreas de fronteira;
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E a própria militarização da política, que transforma territórios inteiros em zonas cinzentas entre guerra e crime.
Ao colocar todo esse mosaico sob o guarda-chuva de um “Cartel de Maduro”, Washington tende a apagar responsabilidades compartilhadas e a reduzir a crise a uma história linear de vilões e heróis. E é justamente aí que o vocabulário da esquerda latino-americana acende o alerta: o rótulo de terrorismo, na boca da maior potência militar do planeta, dificilmente é neutro.
Do combate ao narcotráfico ao laboratório de imperialismo
Já não é novidade que a guerra às drogas funciona, muitas vezes, como dispositivo de imperialismo. Em nome do combate ao tráfico, os EUA ampliaram bases militares, intervieram em governos eleitos e apoiaram ditaduras em várias partes do continente. O caso do “Cartel de Maduro” reatualiza esse roteiro com roupagem de século XXI: sanções financeiras, operações com drones, “golpes cirúrgicos” no mar e a construção midiática de um inimigo absoluto.
A designação do cartel como grupo terrorista vem acompanhada de:
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Pressão sobre bancos, empresas de transporte e parceiros comerciais que mantenham relações com Caracas;
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Ameaça de sanções secundárias contra países que não aderirem ao cerco;
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E um discurso que mira não apenas Maduro, mas o bloco anti-imperialista que inclui alianças com Rússia, China, Irã e outros atores fora da órbita de Washington.
Sob esse prisma, o “cartel terrorista” funciona também como chave de leitura geopolítica: um atalho narrativo que enquadra toda a política externa venezuelana como extensão de um empreendimento criminoso. Uma narrativa conveniente tanto para justificar a presença de navios de guerra no Caribe quanto para disciplinar outros governos da região que ousam contestar a hegemonia norte-americana.
Ecos na região: Colômbia, Caribe e risco de escalada
A fronteira colombo-venezuelana é hoje um dos espaços mais explosivos da região. Grupos armados, dissidências das FARC, ELN e quadrilhas ligadas ao Tren de Aragua disputam território, rotas de tráfico e controle social em zonas marcadas por deslocamentos forçados e ausência do Estado.
Quando Washington declara que o “Cartel de Maduro” apoia organizações como o Tren de Aragua, o efeito imediato é ampliar a margem para operações de segurança pública com lógica de guerra, tanto na Colômbia quanto em países andinos e caribenhos. Ao mesmo tempo, governos progressistas — como o de Gustavo Petro, na Colômbia — tentam costurar políticas de “paz total” que tratem o narcotráfico como fenômeno social e não apenas policial.
Há, portanto, uma disputa direta entre dois modelos:
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O modelo militarizado, que reforça a leitura de “narcoterrorismo” e aposta em bombardeios, frotas navais e cooperação com forças especiais;
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E o modelo que enxerga o proibicionismo como fracasso e fala em regulação de drogas, justiça restaurativa e políticas de desenvolvimento local.
A classificação do “Cartel de Maduro” como grupo terrorista, somada ao aumento da recompensa e à movimentação de tropas, inclina a balança para o primeiro modelo. E desloca o eixo do debate: em vez de discutir alternativas ao proibicionismo, o continente se vê novamente refém da agenda de segurança dos EUA.
Mídia, narrativa e a batalha pela opinião pública
No terreno da comunicação, o caso do “Cartel de Maduro” mostra, mais uma vez, o peso da mídia hegemônica na construção do consenso. Grandes veículos internacionais reproduzem sem maior contraste os termos “narcoestado”, “cartel de Maduro” e “narcoterrorismo”, enquanto vozes críticas à estratégia norte-americana aparecem como notas de rodapé ou como “opinião” — não como informação.
É o que muitos jornalistas identificados com a esquerda chamam de cinismo ‘liberal’ da imprensa: a aparência de neutralidade que, na prática, naturaliza sanções, bloqueios e ameaças militares, mas trata qualquer reação de Caracas como “propaganda” ou “paranoia antiamericana”. Nesse cenário, lembrar que Contrainformação é poder não é um slogan vazio, mas uma necessidade democrática: multiplicar fontes, ouvir pesquisadores independentes, trazer à tona as dúvidas sobre a própria existência de um cartel unificado e as consequências concretas do cerco econômico para o povo venezuelano.
Ao mesmo tempo, não se trata de romantizar o regime chavista ou ignorar denúncias graves de violações de direitos humanos, corrupção e violência estatal. A crítica de esquerda, quando consequente, recusa tanto o golpismo patrocinado por potências estrangeiras quanto a opacidade autoritária de governos que se reivindicam “revolucionários”, mas restringem liberdades básicas e reprimem dissidências internas.
No fim, o debate sobre o “Cartel de Maduro como grupo terrorista” é menos sobre um cartel — cuja forma exata segue em disputa — e mais sobre que tipo de ordem internacional se pretende construir. Uma ordem em que um único país se arroga o direito de definir, sozinho, quem é terrorista, quem é “narcotraficante” e quem merece bloqueios econômicos e frotas navais à porta; ou uma ordem em que soberania nacional, cooperação regional e políticas de drogas baseadas em direitos humanos tenham mais peso do que a lógica de guerra.
Enquanto Washington dobra a aposta na retórica do “narcoterrorismo” e mobiliza destróieres no Caribe, a América Latina é chamada, mais uma vez, a escolher de que lado quer estar: o da repetição de velhíssimos roteiros de imperialismo ou o da construção difícil, mas urgente, de outra gramática para segurança, democracia e integração regional.
Referências
Reuters – US increases reward for arrest of Venezuela’s Maduro to $50 million
France 24 – US increases reward for Venezuelan President Maduro’s arrest to $50 million
Le Monde – Venezuela: les Etats-Unis envoient des troupes près des eaux territoriales au nom de la lutte contre le « narcoterrorisme »
CNN Brasil – Entenda o que é o Cartel de los Soles, que Maduro é acusado de chefiar
El País (edição em inglês) – The Cartel of the Suns, the criminal network pitting the US against Venezuela
U.S. Department of the Treasury – Treasury Sanctions Venezuelan Cartel Headed by Maduro
U.S. Department of Justice – Nicolás Maduro Moros and 14 Current and Former Venezuelan Officials Charged with Narco-Terrorism, Corruption, Drug Trafficking and Other Criminal Charges
