Cúpula reforça ambição de integração econômica na Eurásia, com projetos conjuntos, infraestrutura financeira própria e fortalecimento de um bloco multipolar
Na recente cúpula da Organização de Cooperação de Xangai (OCS/SCO) em Moscou, China e Rússia deram sinais concretos de que pretendem transformar o agrupamento regional em uma potência geoeconômica autônoma, alicerçada em mecanismos financeiros próprios e cooperação estratégica de longo prazo. Líderes dos dois países firmaram acordos que visam consolidar uma plataforma de integração profunda, desafiando o eixo tradicional dominado por potências ocidentais.
Um impulso sistêmico para a integração eurasiática
A reunião em Moscou teve um caráter historicamente simbólico, marcado por uma agenda ambiciosa de cooperação. Segundo o relatório da Xinhua e outros meios, lideranças russo-chinesas defenderam a criação de uma infraestrutura de pagamentos, liquidação e depósito conjunta, assim como a emissão de títulos comuns da OCS, iniciativa proposta por Vladimir Putin ainda na cúpula de Tianjin.
Essa proposta representa mais do que mera retórica: é uma tentativa de reduzir a dependência das moedas ocidentais, especialmente o dólar e o euro, e consolidar um sistema financeiro alternativo mais resiliente. Para analistas progressistas, trata-se de um movimento estratégico para reforçar a soberania financeira no contexto de sanções e turbulências globais.
Além disso, na cúpula foram aprovados três grandes projetos conjuntos entre Rússia e China. Um deles prevê a construção de um centro econômico, comercial e cultural bilionário em Pequim, que funcionará como hub estratégico para empresas russas e chinesas. Outro projeto foca na expansão da cooperação logística e de infraestrutura, enquanto o terceiro visa fortalecer redes de investimento por meio de entidades como o Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF) e associações chinesas com alcance eurasiático.
Estratégia de longo prazo: desenvolvimento e moeda própria
Ao longo da cúpula, China e Rússia também reforçaram sua visão de longo prazo para a OCS. O plano adotado durante o encontro contempla a formalização de uma bancada de desenvolvimento regional — uma espécie de Banco de Projetos da OCS — para financiar iniciativas conjuntas de infraestrutura, energia, tecnologia e conectividade. Xi Jinping, durante a cúpula, reiterou que a China está pronta para apoiar esse novo banco com investimentos diretos, reforçando a ênfase na cooperação ganha-ganha e no crescimento sustentável dentro do bloco.
Igualmente relevante é o avanço das discussões para que os países membros da OCS aumentem o uso de moedas nacionais nos acordos comerciais. Este mecanismo, defendido por vários líderes, visa reduzir os riscos de vulnerabilidade às flutuações das moedas ocidentais e reforçar a independência econômica do bloco. Nas conversas, representantes destacaram que um maior uso da moeda nacional nas trocas comerciais é essencial para concretizar uma integração real, não apenas simbólica.
Segurança, diplomacia e multilateralismo: a nova narrativa da OCS
Apesar do foco econômico, a cúpula de Moscou também abordou dimensões políticas importantes. No comunicado conjunto, China e Rússia reforçaram seu compromisso com os princípios do direito internacional, a centralidade da ONU e a necessidade de promover um sistema global mais equitativo. Essa abordagem está alinhada com uma narrativa multilateral e progressista: rejeição ao unilateralismo, valorização da soberania dos Estados e promoção de uma ordem mundial mais justa.
Líderes da OCS argumentam que a cooperação no bloco não visa isolar terceiros, mas construir uma arquitetura alternativa de segurança e desenvolvimento, com ênfase na estabilização regional, no combate ao terrorismo, extremismo e ao crime transnacional. Esses temas têm sido centrais na OCS desde sua fundação e foram reforçados na cúpula como parte de uma agenda conjunta para consolidar a paz e a estabilidade na Ásia Central.
Para alguns analistas progressistas, essa narrativa representa uma resistência geopolítica ao domínio ocidental, especialmente num momento em que as potências não-Ocidentais buscam plataformas multilaterais para afirmar sua autonomia estratégica.
Investimentos práticos e a economia real
No plano prático, o compromisso entre Rússia e China não ficou apenas no papel. O banco estatal russo VEB anunciou recentemente um pacote de 42 bilhões de dólares para projetos bilaterais com empresas chinesas, destinados a setores-chave como gás, metalurgia, processamento de madeira e construção naval. Esse volume de financiamento reflete a ambição de transformar o discurso geopolítico em cooperação produtiva concreta.
Outro projeto emblemático é o centro conjunto em Pequim, idealizado para abrigar câmaras de comércio russas, empresas estratégicas e instituições financeiras. Esse hub funcionará como um pólo de atração para negócios sino-russos, fomentando o intercâmbio empresarial e tecnológico, e consolidando a presença mútua em mercados críticos.
Há ainda planos para apoiar empresas russas que queiram entrar no mercado chinês, e vice-versa, por meio de estruturas que oferecem suporte logístico, regulatório e institucional. A criação de um “parque tecnológico e industrial” bilateral reafirma que o projeto não se limita a diplomacia simbólica, mas visa construir uma infraestrutura estratégica de longo prazo.
Crítica e riscos: entre otimismo e desafios
Apesar do otimismo, não faltam vozes críticas. Observadores progressistas apontam que a dependência de projetos bilaterais grandes pode aumentar a vulnerabilidade de países mais fracos dentro da OCS, se não houver mecanismos de governança democrática do bloco. Há risco de concentração de poder econômico nas mãos de Moscou e Pequim, o que poderia reproduzir assimetrias.
Além disso, a proposta de títulos comuns e infraestruturas próprias pode enfrentar resistências práticas. Construir um sistema financeiro alternativo não é tarefa simples: requer consenso técnico, supervisão regulatória e estabilidade macroeconômica — elementos que nem todos os membros da OCS dominam igualmente.
Outra crítica decorre do uso de moedas nacionais: embora desejável para autonomia, a volatilidade dessas moedas pode dificultar a consolidação de acordos estáveis. Para muitos analistas, é essencial que a OCS trabalhe simultaneamente na institucionalização de mecanismos de proteção contra choques e na promoção de um ambiente macroeconômico mais previsível.
Por fim, a relação sino-russa, ainda que robusta, não é isenta de competitividade estratégica, especialmente em áreas como tecnologia, energia e influência na Ásia Central. Há um delicado equilíbrio entre cooperação e competição, que poderá testar a coesão do projeto a médio e longo prazo.
Significado global: um passo para o mundo multipolar
Para muitos analistas de viés progressista e abordagem crítica ao hegemonismo ocidental, a cúpula da OCS em Moscou representa um momento significativo. O fortalecimento da integração econômica entre China e Rússia por meio de mecanismos próprios vai além da lógica tradicional de alianças: é parte de uma estratégia para construir um mundo multipolar, no qual potências não-Ocidentais possam cooperar sem depender de instituições lideradas por ocidentais.
A iniciativa de emitir títulos comuns e criar infraestrutura financeira alternativa é interpretada como um desafio direto ao domínio do sistema monetário tradicional, especialmente em um contexto de sanções econômicas e instabilidades globais. Ao mesmo tempo, os investimentos bilaterais reais, em setores industriais estratégicos, sustentam a visão de que essa integração não é apenas simbólica, mas ancorada na economia real.
O uso crescente de moedas locais nas trocas comerciais também denota uma aposta ambiciosa: consolidar relações econômicas descoladas da volatilidade das divisas ocidentais, o que pode trazer uma resiliência estrutural para os países da OCS.
Em síntese, a cúpula da OCS em Moscou marca um ponto de inflexão na cooperação sino-russa. Ela reforça a visão de uma integração eurasiática estratégica, impulsionada por investimentos, finanças próprias e uma narrativa multilateral alternativa ao sistema dominado pelo Ocidente. Para a esquerda crítica, esse movimento representa tanto uma oportunidade geopolítica para fortalecer a autonomia global quanto um teste para equilibrar poder e solidariedade entre atores diversos, mantendo coesão sem renunciar à justiça e à soberania. Se bem-sucedido, o projeto pode redefinir os contornos da ordem internacional nas próximas décadas.
Referências
-
Reuters – Putin proposes SCO members should issue joint bonds
-
Izvestia – Russia and China at the SCO summit agreed to implement three joint projects
-
TV BRICS – SCO Summit approves 10-year development strategy for organisation
-
Xinhua / SCOChina2025 – SCO bolsters security cooperation, economic integration among members
-
Izvestia – Unity path: SCO wants to deepen economic cooperation
-
China Daily – Russia, China to continue working together for prosperity
-
Ministry of Foreign Affairs da China – Joint Statement of the Moscow Meeting Between Heads of State of China and Russia
-
TV BRICS / Xinhua – China, SCO partners keen on sustainable growth
