Pequim protesta contra acordo de US$ 330 milhões em peças para aeronaves taiwanesas, primeiro pacote militar dos EUA à ilha desde o retorno de Trump à Casa Branca, elevando a temperatura política na relação entre as duas potências.
A China voltou a mirar Washington após a aprovação, pelo governo dos Estados Unidos, de uma venda estimada em US$ 330 milhões em peças e componentes para aeronaves militares de Taiwan. O Ministério da Defesa chinês anunciou nesta segunda-feira (17) que apresentou “representações” formais aos EUA, classificou o gesto como “atroz” e prometeu tomar “todas as medidas necessárias” para defender sua soberania e integridade territorial.
O negócio, aprovado na semana passada pela administração Donald Trump, é o primeiro anúncio de venda de armas à ilha desde o retorno do republicano à Casa Branca, em janeiro. O pacote contempla peças para frotas de caças F-16, cargueiros C-130 e outras aeronaves operadas por Taipei, com o objetivo declarado de manter a prontidão operacional da Força Aérea taiwanesa.
Em tom de reprimenda, o porta-voz de Defesa Zhang Xiaogang pediu que Washington interrompa “imediatamente” o fornecimento de armas a Taiwan, argumentando que a transação mina o relacionamento entre os dois países e entre seus militares. Para Pequim, a venda viola o princípio de “uma só China” e envia um sinal encorajador a forças pró-independência na ilha, vista pelo governo chinês como parte inalienável de seu território.
O que está em jogo: mais que US$ 330 milhões em peças
Do ponto de vista estritamente militar, a venda de peças não altera o equilíbrio estratégico de forma dramática. Trata-se de um pacote de suporte – “peças de reposição e reparo não padrão”, segundo a agência de cooperação em defesa do Pentágono –, desenhado para manter aeronaves já em operação, e não para introduzir novas capacidades ofensivas em Taiwan.
Ainda assim, para analistas em Washington, Pequim e Taipei, o que está em jogo vai além da lista de itens do contrato. Em meio a um histórico de exercícios militares chineses próximos à ilha, sobrevoos de caças e incursões de drones, qualquer gesto norte-americano na direção de reforçar a defesa taiwanesa é lido como sinalização ao mercado diplomático e estratégico de que a política de apoio à ilha continua ativa – embora, sob Trump, mais transacional e sujeita a revisões táticas.
Para Taiwan, que agradeceu publicamente a decisão, a operação reforça a capacidade de resposta a chamadas ações de “zona cinzenta” promovidas por Pequim – patrulhas aéreas e navais constantes, abaixo do limiar de conflito aberto, mas suficientes para pressionar a defesa da ilha e testar seus recursos.
Bastidores do poder e cálculo político em Washington e Pequim
Nos bastidores do poder em Washington, o pacote é visto como um gesto duplo. De um lado, responde à pressão do Congresso e de aliados asiáticos que cobram uma linha mais clara de dissuasão frente ao avanço militar chinês. De outro, tenta recompor a confiança de Taipei após episódios recentes em que Trump rejeitou ou adiou pacotes de ajuda militar direta, em nome de margem de negociação com o presidente Xi Jinping.
A operação também dialoga com a governabilidade doméstica da política externa norte-americana: ao optar por uma venda focada em manutenção de aeronaves, o governo reduz o risco de resistência interna maior e de questionamentos mais duros sobre custos, ao mesmo tempo em que sinaliza continuidade de compromissos previstos no Taiwan Relations Act, a lei que obriga os EUA a fornecerem meios para a autodefesa da ilha.
Em Pequim, a leitura é quase oposta. Autoridades chinesas apontam para um padrão de “interferência em assuntos internos” e acusam Washington de “jogar com fogo” ao usar Taiwan como peça de pressão na disputa mais ampla entre as duas maiores economias do mundo. A resposta segue um roteiro conhecido: anúncio de “representações solenes”, ameaça de contra-medidas não especificadas e, em alguns casos anteriores, sanções simbólicas a empresas de defesa envolvidas nos negócios.
A temperatura política nas duas capitais sobe, mas, por ora, dentro de um script previsível: o de uma rivalidade estratégica que tenta conviver com canais de diálogo econômico e climático ainda abertos.
Contexto e dados para além do fato: um histórico de vendas e protestos
Para compreender o que muda com o acordo atual, é preciso olhar o histórico recente. Desde 2021, tanto sob Biden quanto agora sob Trump, os EUA têm multiplicado vendas de armamentos e pacotes de apoio a Taiwan, variando de peças de F-16 a sistemas de radar e mísseis de defesa aérea. Em 2024, por exemplo, um conjunto de vendas de cerca de US$ 385 milhões em peças e suporte de radares para F-16 motivou uma reação dura de Pequim, que prometeu “contramedidas resolutas” e acusou Washington de enviar “sinais errados” às forças pró-independência.
O negócio de agora, embora menor que pacotes bilionários de anos anteriores, tem um peso simbólico reforçado por ser o primeiro da nova administração Trump. Para especialistas em mapa do poder no Indo-Pacífico, a mensagem é de continuidade: mesmo com oscilações táticas, o eixo de segurança Washington–Taipei permanece.
Do lado taiwanês, o Ministério das Relações Exteriores classificou a venda como mais um passo na estratégia de “normalizar” a cooperação em defesa com os EUA, reduzindo o caráter excepcional de cada anúncio. A avaliação dialoga com séries históricas que mostram aumento consistente no número de notificações de vendas à ilha na última década.
Por que importa: estabilidade do Estreito e ambiente de negócios
Na lógica centrista que orienta grande parte da cobertura de geopolítica, a pergunta chave é por que importa – não apenas para os atores diretamente envolvidos, mas para a economia global e o ambiente de negócios na Ásia.
O Estreito de Taiwan concentra rotas marítimas cruciais para o comércio internacional e é vizinho da principal região produtora de semicondutores de ponta do planeta. Cada escalada retórica ou militar entre China e EUA em torno da ilha é monitorada de perto por investidores, que buscam previsibilidade mínima para decisões de longo prazo. Não por acaso, relatórios de risco costumam ler vendas como a anunciada agora como parte de um esforço de “gestão da dissuasão”: fortalecer a defesa de Taiwan para reduzir a chance de um erro de cálculo que leve a conflito aberto.
Do lado chinês, o recado é que não há disposição para aceitar um “status novo” na relação com Taiwan. Ao prometer “todas as medidas necessárias” e vincular a venda a uma suposta tentativa de “conter a China”, Pequim busca preservar sua credibilidade interna e externa como potência que não cede em temas que considera centrais.
Para os EUA, a equação passa também pelo compromisso declarado com o Estado de Direito internacional e com a manutenção da “paz e estabilidade no Estreito de Taiwan”, expressão recorrente em comunicados oficiais. A narrativa é de que fornecer meios de autodefesa à ilha é compatível com a política de “uma só China”, desde que não haja apoio formal à independência.
Credibilidade, sinalização ao mercado e limites da escalada
No terreno da diplomacia, cada anúncio de venda de armas é lido como sinalização ao mercado geopolítico. Ao aprovar o pacote de peças, Washington tenta calibrar uma linha intermediária: mostrar que a parceria militar com Taipei continua firme, sem cruzar, ao menos por ora, limiares que Pequim possa considerar “casus belli”, como a oferta de sistemas ofensivos de longo alcance.
Essa calibragem tem relação direta com a credibilidade de defesa norte-americana na região. Depois de episódios em que Trump travou ou reconfigurou pacotes de ajuda militar – inclusive para Taiwan –, parceiros asiáticos passaram a acompanhar com atenção como o presidente concilia sua agenda de negociação com Pequim e os compromissos de segurança assumidos ao longo de décadas. Os US$ 330 milhões em peças não resolvem essa incerteza, mas funcionam como um indicador de que, ao menos por ora, o eixo de cooperação militar segue de pé.
Para Pequim, a resposta dura também obedece a uma lógica de dados e comportamento do eleitor – neste caso, do público doméstico. Em um contexto de desaceleração econômica e desafios internos, mostrar firmeza no tema Taiwan reforça a narrativa de que o Partido Comunista está no controle de variáveis externas e não permitirá humilhações no tabuleiro internacional.
O que muda a partir de agora
Na prática, o que muda no curto prazo é limitado. A tramitação do acordo ainda precisa cumprir etapas no Congresso dos EUA, embora seja improvável uma reversão, dado o amplo consenso bipartidário a favor do reforço da defesa de Taiwan. Em paralelo, a China deve manter o script de sanções pontuais e exercícios militares no entorno da ilha, sem necessariamente romper canais de diálogo econômico e climático com Washington.
A médio prazo, porém, o episódio se soma a outros na construção de uma trajetória de desconfiança gradual. Cada nova venda de armas, cada nova rodada de exercícios militares e cada novo protesto formal compõem, para diplomatas que acompanham os bastidores e redes de poder no Indo-Pacífico, uma tendência de normalização da tensão: ela deixa de ser exceção e passa a ser o pano de fundo permanente da relação.
Nesse ambiente, a busca por previsibilidade – valor caro ao centro político – depende menos de gestos isolados e mais da capacidade de Pequim e Washington de estabelecerem “regras do jogo” mínimas para incidentes militares e crises políticas.
Encerramento: entre o risco calculado e a necessidade de diálogo
A reação da China à venda de peças militares dos EUA para Taiwan repete um roteiro conhecido, mas num momento em que o acúmulo de episódios semelhantes aumenta o risco de erro de cálculo. De um lado, Washington insiste que, sem reforço da defesa de Taiwan, a chance de uma aventura militar chinesa cresce. De outro, Pequim afirma que cada operação desse tipo corrói a base de confiança mínima entre as duas potências.
Para quem observa o tema sob um olhar de centro, o ponto central é manter o foco em contexto e dados para além do fato: trata-se de um pacote de suporte de médio porte, dentro de uma política já consolidada de vendas de armas, mas inserido em um cenário de rivalidade estratégica que torna qualquer gesto mais sensível. A forma como ambos os lados manejarão esse episódio – com mais ou menos espaço para diálogo – será mais um teste da capacidade de administrar uma competição intensa sem ultrapassar a linha de conflito aberto.
Fontes:
Reuters – China lodges representations with US over Taiwan arms sale
Reuters – US approves potential $330 million arms sale to Taiwan, first under Trump
AFP / The Defense Post – US Approves First Military Sale to Taiwan Since Trump’s Return
Channel NewsAsia – US approves US$330 million military sale to Taiwan
Taiwan News – US approves first Taiwan arms sale under Trump worth NT$10 billion
DSCA (Departamento de Defesa dos EUA) – TECRO – Non-Standard Spare and Repair Parts, US$330 million
Reuters – China vows ‘resolute countermeasures’ after US arms sale to Taiwan (sobre venda de 2024)
