Pequim, desafiando expectativas da guerra comercial, expande laços com UE, Sudeste Asiático e África, garantindo superávit global e provocando novas preocupações em mercados emergentes.
Em um movimento estratégico que desafia as expectativas iniciais da guerra comercial imposta pelos Estados Unidos, a China reorientou de forma notável suas exportações, expandindo sua presença para a União Europeia, o Sudeste Asiático (ASEAN), a África e a América Latina. Essa diversificação permitiu a Pequim não apenas manter seu robusto superávit comercial global, mas também fortalecer sua posição negociadora frente a Washington, embora essa nova dinâmica gere preocupações sobre uma possível “inundação” de produtos e concorrência desleal em outros mercados ao redor do mundo, conforme apurado pela CNN Brasil.
Contexto
A escalada das tensões comerciais entre os Estados Unidos e a China marcou os últimos anos, com a imposição de tarifas significativas por parte de Washington sobre produtos chineses. A estratégia americana visava reduzir o gigantesco déficit comercial com a China e pressionar Pequim a reavaliar suas práticas comerciais, que, segundo os EUA, incluíam subsídios estatais e roubo de propriedade intelectual. A expectativa comum era de que essas tarifas estrangulariam as exportações chinesas, forçando o país asiático a ceder ou, ao menos, a ver seu poder econômico diminuir.
No entanto, o que se observou foi uma surpreendente capacidade de adaptação. Em vez de recuar, a China iniciou uma reorientação massiva de suas cadeias de suprimentos e fluxos comerciais. Jacob Gunter, analista sênior do Mercator Institute for China Studies (MERICS), descreveu a estratégia chinesa como uma “adaptação brilhante”. Ele ressaltou que “o objetivo inicial das tarifas dos EUA era pressionar a China, mas o que aconteceu foi que a China se tornou mais integrada com o resto do mundo”, buscando novos compradores e fornecedores.
Essa reorientação não é um fenômeno recente, mas se intensificou nos últimos anos. A Organização Mundial do Comércio (OMC) e os próprios dados alfandegários chineses divulgados na semana passada corroboram essa tendência. As cifras mostram um crescimento contínuo das exportações chinesas para regiões que antes não eram o foco principal, demonstrando uma resiliência econômica notável e uma capacidade de manobra que desafiou as previsões pessimistas do Ocidente. A guerra comercial, longe de isolar a China, parece ter catalisado uma globalização ainda mais abrangente de seu comércio.
Origens da Disputa e o Papel das Tarifas
A “guerra comercial” teve seus primeiros grandes capítulos durante a administração Trump, que impôs tarifas sobre bilhões de dólares em produtos chineses. A justificativa era proteger a indústria americana e forçar uma renegociação de acordos comerciais considerados desfavoráveis. Para Gerard DiPippo, pesquisador da RAND China, a China não apenas absorveu os custos das tarifas, mas também desenvolveu novas formas de exportar seus produtos, mantendo a competitividade.
A imposição de tarifas não foi uma via de mão única, com a China respondendo com suas próprias tarifas sobre produtos americanos. Este ciclo de retaliação elevou os custos para empresas em ambos os lados do Pacífico e gerou incerteza nas cadeias de suprimentos globais. Contudo, a robustez da base industrial chinesa e sua capacidade de produção em massa permitiram ao país encontrar alternativas de mercado, minimizando o impacto negativo que muitos previam em seu superávit comercial.
Impactos da Decisão
A principal consequência da estratégia chinesa de diversificação foi a manutenção e, em muitos casos, o fortalecimento de seu superávit comercial global. Enquanto as exportações para os Estados Unidos diminuíram, a China compensou essa perda com ganhos significativos em outros mercados. A União Europeia emergiu como um parceiro comercial cada vez mais importante, ao lado das nações da ASEAN, do continente africano e da América Latina, regiões que se tornaram destinos cruciais para a vasta gama de produtos chineses.
Essa reorientação, no entanto, não veio sem seus próprios desafios e controvérsias. Muitos países nessas novas rotas comerciais começaram a expressar preocupação com a “inundação” de produtos chineses, que estariam criando concorrência desleal para as indústrias locais. Yao Yang, reitor da Escola Nacional de Desenvolvimento da Universidade de Pequim e da Universidade de Finanças e Economia de Xangai, afirmou que “não importa o que os EUA façam, a China pode se adaptar”. Esta adaptabilidade, porém, é vista com ressalvas por economias menos desenvolvidas.
Os relatos de quem está no campo de batalha do comércio internacional ilustram essa dinâmica. Derek Wang, um vendedor de utensílios de cozinha, viu suas vendas para os EUA diminuírem significativamente devido às tarifas. Em resposta, ele precisou diversificar: “Agora vendo para o México, Europa, Oriente Médio, África do Sul, América do Sul e Sudeste Asiático”. Da mesma forma, Zhang Peipei, uma costureira de Suzhou, adaptou-se, produzindo para mercados como a Alemanha, França, Itália, Brasil e México, após uma queda de 40% nos pedidos dos EUA em 2019. Essas histórias pessoais destacam a agilidade e a determinação dos exportadores chineses.
Reações Globais e Acusações de “Inundação”
A preocupação com a “inundação” de produtos chineses é crescente. Diego Rodriguez, sócio-gerente da Americas Market Intelligence, observou que “o medo é que a China use o que parece ser capacidade excedentária para inundar os mercados latino-americanos com os mesmos produtos baratos que usou para entrar nos EUA”. Essa situação levanta questões sobre a sustentabilidade das indústrias locais e a necessidade de políticas comerciais que protejam a competitividade interna.
Na Malásia, uma economia do Sudeste Asiático, a secretária-geral da APEC, Rebecca Sta Maria, do Instituto para a Democracia e Assuntos Econômicos, expressou um ponto de vista pragmático: “Se o comércio é livre e justo, por que você está reclamando? Cabe aos países fazerem uma melhor adaptação da sua indústria”. No entanto, o desafio reside em garantir que o comércio seja realmente justo e que as condições de concorrência sejam equitativas, especialmente quando se trata de um gigante produtivo como a China.
Economistas como David Omojomolo, da Capital Economics, ponderam que a estratégia chinesa é uma forma de garantir que a guerra comercial com os EUA não impacte severamente sua economia. “O superávit comercial da China com o mundo permanece robusto”, ele destaca, enfatizando que as tarifas americanas falharam em seu objetivo de isolar economicamente o país asiático. Pelo contrário, a China se tornou ainda mais central na economia global, consolidando sua posição como um fornecedor indispensável para muitos bens e serviços.
Próximos Passos
O cenário futuro das relações comerciais globais, especialmente entre China e EUA, permanece incerto e complexo. A resiliência demonstrada por Pequim sugere que uma resolução rápida da guerra comercial não é garantida, e a China continuará a buscar a diversificação como um pilar de sua estratégia econômica. A eleição presidencial nos Estados Unidos e as políticas da próxima administração terão um papel crucial em definir os rumos dessa disputa. Qualquer nova tentativa de isolar a China, seja através de tarifas adicionais ou restrições tecnológicas, provavelmente será recebida com mais manobras estratégicas de Pequim para expandir sua influência em outras geografias.
Para os mercados emergentes e a União Europeia, a questão central será como gerenciar o fluxo de produtos chineses. Será necessário um cuidadoso equilíbrio entre os benefícios do acesso a produtos mais baratos e a proteção das indústrias nacionais. Países como o Brasil e o México, que já absorvem uma parte considerável das exportações chinesas, poderão enfrentar pressões para implementar medidas antidumping ou outras barreiras comerciais caso a percepção de concorrência desleal se intensifique. A Organização Mundial do Comércio, embora citada nos dados, pode ser chamada a intervir em disputas comerciais mais acirradas, mas sua capacidade de impor soluções duradouras tem sido historicamente limitada.
Além disso, a China enfrenta seus próprios desafios internos. A dependência de mercados externos, mesmo que diversificados, pode torná-la vulnerável a futuras flutuações econômicas globais ou a novas ondas de protecionismo. A busca por um modelo de crescimento mais equilibrado, com maior ênfase no consumo doméstico, é um objetivo de longa data para Pequim, mas a força de suas exportações continua a ser um motor essencial. A capacidade de inovar e de subir na cadeia de valor, passando de produtos de baixo custo para bens de alta tecnologia, será fundamental para a sustentabilidade de sua estratégia a longo prazo.
A Geopolítica da Resiliência Comercial
A estratégia de diversificação chinesa tem implicações geopolíticas profundas. Ao fortalecer laços com nações da África, América Latina e Sudeste Asiático, a China não apenas garante mercados para seus produtos, mas também amplia sua influência política e econômica. Isso pode levar a um realinhamento das esferas de influência global, com menos dependência de Washington e mais autonomia para Pequim em suas relações internacionais. A iniciativa da Nova Rota da Seda, por exemplo, é um instrumento crucial para essa expansão de laços comerciais e infraestrutura.
O desafio para os Estados Unidos e seus aliados será encontrar uma resposta eficaz a essa resiliência chinesa. A simples imposição de tarifas provou ser insuficiente para frear a ascensão comercial de Pequim. É provável que se observe uma intensificação dos esforços diplomáticos para coordenar políticas comerciais entre as economias ocidentais, buscando criar um contrapeso à expansão chinesa. Contudo, a fragmentação das cadeias de suprimentos e a busca por resiliência por parte de empresas globais podem dificultar a formação de uma frente unificada contra a China.
Finalmente, o impacto dessa reconfiguração comercial na economia global como um todo é um ponto de atenção. A maior integração da China com múltiplos mercados pode trazer benefícios como a redução de custos para consumidores e a aceleração do desenvolvimento em algumas regiões. No entanto, também pode exacerbar desequilíbrios comerciais, aumentar a pressão competitiva sobre indústrias em países em desenvolvimento e gerar tensões adicionais em fóruns multilaterais de comércio. A capacidade das instituições globais de adaptar-se a essa nova paisagem comercial será fundamental para garantir a estabilidade econômica mundial nos próximos anos.
Fonte:
CNN Brasil – Países temem estratégia chinesa para tarifação com enxurrada de produtos. CNN Brasil
