Foragido e alvo de pedido de extradição, Eduardo Tagliaferro promete expor “podres” do gabinete de Alexandre de Moraes, alimenta a ofensiva da extrema direita contra o Supremo e põe em disputa a narrativa sobre a defesa da democracia.
A trajetória de Eduardo Tagliaferro, ex-assessor do ministro Alexandre de Moraes, saiu das notas de rodapé do Judiciário para o centro da arena política. Indiciado pela Polícia Federal por violação de sigilo funcional e acusado pela Procuradoria-Geral da República de atacar o Estado Democrático de Direito, o ex-servidor hoje vive na Itália, de onde promete “revelar os bastidores” do gabinete do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
Em entrevistas e postagens nas redes, Tagliaferro afirma ter se “refugiado” na Europa para escapar de uma suposta perseguição política e garantir condições de divulgar áudios, mensagens e documentos que, segundo ele, comprovariam abusos na condução de inquéritos sobre fake news, milícias digitais e golpismo bolsonarista.
Do outro lado, o STF e o próprio Moraes rejeitam qualquer irregularidade. Em nota, o ministro reafirma que todas as decisões tomadas nos inquéritos sobre desinformação e ataques ao processo eleitoral seguiram os trâmites legais, com ciência da PGR. A Corte, em pronunciamento oficial, expressou solidariedade ao magistrado justamente no momento em que ele passou a ser alvo de sanções do governo dos Estados Unidos, sob a acusação de “abusos de direitos humanos” relacionados a prisões e decisões contra extremistas de direita.
O caso Tagliaferro, portanto, não é apenas mais um episódio de bastidor. Ele se insere numa disputa maior em torno da soberania nacional, do papel do STF na contenção do golpismo e da tentativa de setores da extrema direita de pintar a Corte como protagonista de um Estado de exceção — narrativa que agora ganha um personagem “exilado”, prontamente abraçado pela máquina de desinformação.
De assessor da desinformação ao “delator” em solo italiano
Nomeado em 2022 para chefiar a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Tagliaferro atuou diretamente na estrutura montada por Moraes para monitorar redes sociais, plataformas e veículos acusados de espalhar mentiras contra o sistema eleitoral.
Foi nesse contexto que, segundo reportagens, ele teve acesso a conversas internas, pedidos de relatório e trocas de mensagens entre servidores de gabinetes do STF e do TSE. Parte desse material veio à tona quando a imprensa revelou que auxiliares de Moraes pressionavam por textos e relatórios mais duros contra veículos classificados como “revistas golpistas”.
A Polícia Federal apontou Tagliaferro como responsável pelo vazamento de diálogos que mostrariam essas ordens, imputando a ele o crime de violação de sigilo funcional com dano à administração pública. A defesa nega qualquer envolvimento e fala em tentativa de “calar” um servidor que conheceu de perto o funcionamento interno da chamada estratégia de Moraes contra as redes de ódio.
Após o indiciamento, o ex-assessor deixou o Brasil e se instalou na Itália, onde passou a se apresentar publicamente como “exilado político” e a conceder entrevistas a veículos alinhados ao campo bolsonarista, prometendo expor “podres” do gabinete de Moraes e do próprio STF.
Extradição, prisão preventiva e pressão diplomática
Do lado brasileiro, a reação veio em cadeia. A PGR denunciou Tagliaferro por repassar informações sigilosas e tentar prejudicar investigações sobre os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, dos quais Moraes é relator. Para o órgão, as condutas do ex-assessor contribuíram para enfraquecer a apuração sobre milícias digitais e ataques ao STF e ao TSE.
Com base nesses elementos, o governo formalizou pedido de extradição à Itália, argumentando que se trata de crime comum — vazamento e mau uso de dados sigilosos — e não de perseguição política. O Itamaraty encaminhou a solicitação às autoridades italianas em agosto, reforçando que o ex-servidor é considerado foragido desde 2023.
Em outubro, a polícia italiana deteve Tagliaferro na cidade de Catanzaro, onde ele vive, por ordem da Corte de Apelação local. A prisão foi apresentada como etapa do processo de extradição; sua defesa afirma que a medida é “desproporcional” e insiste na tese de que o ex-assessor é alvo de represália por ter questionado a conduta de Moraes.
O desfecho ainda depende da Justiça italiana, que terá de decidir se atende ao pedido brasileiro ou se acolhe o argumento de perseguição. No meio do caminho, a extrema direita tenta transformar o processo em vitrine internacional de denúncia contra o STF, numa espécie de “contra-ofensiva” à investigação sobre o 8 de janeiro.
STF sob ataque: sanções dos EUA e solidariedade interna
A polêmica envolvendo Tagliaferro surge num momento em que o próprio Moraes é alvo de uma campanha organizada de deslegitimação. Em julho, o governo dos Estados Unidos anunciou sanções contra o ministro com base na chamada Lei Magnitsky, sob acusação de “graves violações de direitos humanos”, incluindo detenções arbitrárias e supostas restrições à liberdade de expressão de aliados de Jair Bolsonaro.
As medidas — inéditas contra um magistrado da mais alta Corte brasileira — foram ampliadas em setembro para atingir familiares e uma empresa vinculada ao ministro, acirrando a crise diplomática entre Brasília e Washington.
Em resposta, o STF divulgou nota de solidariedade a Moraes, qualificando as sanções como “inaceitáveis” e reafirmando que a atuação do ministro tem sido decisiva para desarticular golpistas e garantir responsabilização pelos ataques de 8 de janeiro.
Nesse cenário, o discurso de Tagliaferro — de que existiria uma espécie de “estado de exceção” instalado a partir do gabinete de Moraes — dialoga diretamente com a campanha internacional da extrema direita para questionar a legitimidade das decisões do STF. A diferença é que, enquanto o campo progressista denuncia o golpismo bolsonarista, setores ligados ao ex-presidente tentam inverter a chave e pintar a Corte como protagonista de um “golpe togado”.
“Bastidores do STF” e a guerra de narrativas
As promessas de “revelação de bastidores” caíram como luva em veículos alinhados à extrema direita, que passaram a tratar o ex-assessor como uma espécie de “arrependido” disposto a desmascarar a “ditadura do STF”. Portais como Brasil Paralelo e sites de opinião conservadora repercutem amplamente seus relatos, muitas vezes sem checagem independente, reforçando o clima de caça às bruxas contra Moraes.
Parte da mídia hegemônica, por sua vez, tem preferido enquadrar o caso como disputa interna do Judiciário ou como episódio associado ao suposto “excesso de protagonismo” do STF na judicialização da política, sem necessariamente explicitar o contexto de avanço da extrema direita e de ameaça real à democracia que motivou a atuação mais dura de Moraes.
Para o campo progressista, há uma linha clara a ser traçada: é legítimo discutir transparência, critérios e limites da atuação do Supremo — inclusive da estratégia de Moraes nos inquéritos das milícias digitais —, mas é inaceitável que denúncias sem lastro robusto sejam usadas como pretexto para atacar o próprio núcleo do sistema de freios e contrapesos. Em outras palavras, é preciso evitar que críticas à Corte sejam instrumentalizadas por quem nunca aceitou o resultado das urnas e flertou abertamente com o golpismo.
Num ambiente de hiperpolarização, a noção de que “contrainformação é poder” ganha contornos ambíguos: de um lado, o fortalecimento de mídias independentes que questionam o cinismo ‘liberal’ da imprensa tradicional; de outro, a proliferação de plataformas de extrema direita que vendem desinformação como “verdade proibida”. A batalha pelo enquadramento do caso Tagliaferro passa justamente por aí.
O que está em jogo para o STF e para a democracia
Por trás do vaivém de entrevistas, notas oficiais e pedidos de extradição, o episódio lança luz sobre questões estruturais. A primeira é a necessidade de democratização da Justiça: o STF, há anos pressionado por decisões que extrapolam o contencioso estritamente jurídico, virou alvo fácil para qualquer narrativa que queira colar na Corte a pecha de “poder sem controle”.
A segunda é a disputa internacional. As sanções dos EUA contra Moraes escancaram o quanto o imperialismo contemporâneo se vale de instrumentos financeiros e diplomáticos para chancelar ou punir atores conforme a conveniência política — inclusive jogando contra um magistrado que teve papel central na contenção de uma tentativa de golpe de Estado no Brasil.
A terceira é interna: se confirmados os crimes imputados a Tagliaferro, o episódio revelaria não apenas a fragilidade de mecanismos de proteção de dados sigilosos, mas também a capacidade da extrema direita de cooptar ex-servidores para alimentar a narrativa de que existe uma “República Lava Jato 2.0” togada, agora no STF, perseguindo “inocentes” — quando, na verdade, o alvo central são redes organizadas de golpistas.
Do ponto de vista de uma esquerda comprometida com a democracia, o recado é duplo: é preciso defender o STF e a soberania nacional diante de ataques externos e de campanhas de deslegitimação orquestradas pela extrema direita; ao mesmo tempo, é legítimo exigir mais transparência, controle social e limites claros à judicialização da política, para que a Corte não seja convertida, ela mesma, em foco de desconfiança popular.
No meio desse tabuleiro, a figura de Eduardo Tagliaferro talvez seja menos a de um “herói arrependido” e mais a de um peão numa disputa maior: a batalha sobre quem vai contar — e com que palavras — a história recente da tentativa de golpe no Brasil e da reação institucional que a enfrentou.
Referências
CNN Brasil – Agora na Itália, ex-assessor ameaça fazer revelações contra Moraes
Pleno.News – Ex-assessor de Moraes se exila na Itália e promete expor o ministro
Agência Brasil – Ex-assessor de Moraes é detido na Itália e notificado sobre extradição
Terra – Polícia italiana prende ex-assessor de Moraes; defesa vê ligação com extradição
Rádio Itatiaia – Ex-assessor ameaça Moraes e diz que vai revelar bastidores de seu gabinete
Brasil 247 – Itamaraty formaliza à Itália pedido de extradição de ex-assessor de Alexandre de Moraes
U.S. Embassy in Brazil – Sanctioning Brazilian Supreme Court Justice Alexandre de Moraes for Serious Human Rights Abuse
Brasil de Fato – U.S. sanctions Brazilian Justice Alexandre de Moraes based on the Magnitsky Act
