Quarto ano de guerra expõe limites da “economia de guerra” de Putin: juros recordes, inflação persistente e dependência do petróleo mostram que o preço das sanções está ficando mais salgado em Moscou do que o Kremlin admite publicamente.
No quarto ano da invasão em larga escala da Ucrânia, a narrativa de que a economia russa estaria “blindada” contra as sanções ocidentais começa a perder força. Se em 2022 e 2023 o Kremlin conseguiu vender ao público interno a imagem de resiliência, apoiado em preços altos de energia e numa explosão de gastos militares, os indicadores mais recentes apontam para um cenário de desaceleração, inflação elevada e pressão crescente sobre as contas públicas.
Nos bastidores do poder, economistas próximos ao governo admitem que a combinação de sanções financeiras, tecnológicas e energéticas — somadas a taxas de juros que chegaram a 21% ao ano em 2024 — está cobrando um preço cada vez mais alto do modelo de “economia de guerra” adotado por Vladimir Putin. Ao mesmo tempo, no Ocidente, a temperatura política em torno de novas rodadas de sanções voltou a subir, com União Europeia, Reino Unido e G7 apertando o cerco sobre as exportações de petróleo, gás e transporte marítimo russo.
Esses movimentos, embora graduais, começam a se refletir em uma combinação incômoda para Moscou: crescimento mais fraco, inflação ainda alta, necessidade de subir impostos e revisar regras fiscais — um quadro que lembra, cada vez mais, uma economia em stagflação.
O que mudou no campo das sanções
Desde 2022, Estados Unidos, União Europeia, Reino Unido, Japão, Canadá e outros aliados aprovaram milhares de medidas contra a Rússia, atingindo bancos, grandes empresas, reservas cambiais, exportações de tecnologia sensível e, sobretudo, o setor de energia — principal fonte de receita do orçamento federal russo.
As últimas ofensivas, porém, focam menos em anúncios simbólicos e mais em fechar brechas:
- Redução do teto de preço para o petróleo russo exportado por mar, numa tentativa de ampliar o desconto que Moscou precisa conceder a compradores como China e Índia;
- Reforço das restrições a serviços de transporte, seguro e financiamento para navios que operam acima do teto de preço ou ligados à chamada “shadow fleet”, a frota paralela usada para driblar sanções;
- Novas medidas europeias contra gás liquefeito (LNG) e futuros investimentos em projetos energéticos na Rússia, ampliando o custo de longo prazo para o setor.
Na prática, trata-se de uma tentativa de transformar o que, até aqui, foi visto como uma pressão difusa em um aperto mais concentrado sobre a principal veia de financiamento da guerra: as receitas de petróleo e gás.
Analistas descrevem a estratégia como uma sinalização ao mercado de que o Ocidente não pretende normalizar o comércio de energia com Moscou enquanto o conflito persistir. Ao modular o teto de preços e ampliar a vigilância sobre navios e intermediários, países do G7 buscam reduzir gradualmente a margem de lucro da Rússia sem provocar um choque global de oferta.
Uma economia “em pé”, mas mais cansada
Por mais de dois anos, a Rússia surpreendeu ao evitar a recessão profunda que muitos economistas previam em 2022. O país se beneficiou de preços elevados de energia, redirecionou exportações para “países amigos”, como China e Índia, e dobrou a aposta no gasto militar, gerando uma espécie de “boom de guerra” em setores ligados à defesa.
Mas esse modelo está chegando aos limites. De acordo com projeções oficiais, o governo russo revisou para baixo sua expectativa de crescimento para 2025, de 2,5% para 1,5%. O próprio ministro da Economia, Maxim Reshetnikov, reconheceu publicamente que o país está “na beira de uma recessão”, com desaceleração do PIB, queda na confiança empresarial e inflação persistente.
Ao mesmo tempo, a produção de petróleo recuou cerca de 2,8% em 2024, em parte por causa do acordo da Rússia com a Opep+ e em parte pelos efeitos das sanções e do teto de preços, que comprimem as margens de exportação. Ainda que as exportações para novos mercados tenham evitado um colapso, o país é obrigado a oferecer grandes descontos para manter clientes, o que diminui a receita por barril.
Para conter a inflação, que rodou perto de dois dígitos, o Banco Central russo elevou os juros para 21% ao ano em 2024 — o maior patamar em décadas. O aperto monetário freou o crédito e começou a atingir setores voltados ao consumo e ao investimento, desenhando um quadro de economia em desaceleração com preços ainda altos. Nos últimos meses, o BC iniciou cortes graduais, reduzindo a taxa para 18%, mas ainda em nível bastante restritivo.
Esse arranjo — crescimento fraco, inflação alta e juros pesados — é o coração da percepção de que as sanções, combinadas com o custo interno da guerra, começam de fato a “doer” mais na Rússia.
Ajustes fiscais e a busca por uma nova “âncora”
Ciente de que a dependência das receitas de petróleo e gás é um ponto sensível, o governo russo tem anunciado mudanças em sua política fiscal. Em setembro, o Ministério das Finanças revelou um plano para alterar a chamada “regra orçamentária”, reduzindo gradualmente o preço de referência do petróleo que define quanto da receita extra pode ser poupada em fundos soberanos.
Na prática, Moscou busca construir uma espécie de arcabouço fiscal próprio: uma âncora fiscal que permita reduzir a exposição à volatilidade das commodities e às sanções, preservando reservas e dando alguma previsibilidade às contas públicas. Para isso, discute aumento de impostos sobre empresas e pessoas físicas de alta renda e cortes graduais em gastos não militares.
Do ponto de vista da narrativa oficial, trata-se de preservar a governabilidade econômica e mostrar ao público que o Estado mantém o controle da situação, mesmo em cenário de cerco externo. Na prática, porém, o ajuste é um reconhecimento de que a “folga” proporcionada pelas receitas recordes de energia em 2022 e 2023 está se estreitando.
Pressão externa x fadiga das sanções
No front diplomático, o debate não é menos complexo. Em Washington, Bruxelas e nas capitais europeias, ganha corpo a discussão sobre como tornar as sanções mais eficazes sem gerar custos políticos e econômicos insustentáveis para as próprias sociedades ocidentais.
Nos EUA, o governo Donald Trump tem usado a ameaça de novas sanções secundárias e tarifas sobre países que seguem importando petróleo russo — como China, Índia e Brasil — como instrumento de barganha, mas ainda não deu o passo decisivo. Na União Europeia, sucessivos pacotes foram aprovados em meio a resistência de alguns membros, preocupados tanto com o impacto energético interno quanto com o efeito sobre empresas que ainda mantêm laços indiretos com a economia russa.
Especialistas falam em um ambiente de negócios global reconfigurado pela guerra: cadeias de suprimentos redesenhadas, mudanças estruturais no mercado de gás na Europa, maior protagonismo de produtores alternativos, como Estados Unidos e países do Oriente Médio, e um aumento da percepção de risco geopolítico permanente.
Nesse contexto, relatórios de institutos independentes descrevem uma Rússia “down but not out” — abatida, mas longe do colapso. A leitura é que as sanções tiveram forte impacto inicial, sobretudo ao derrubar o preço efetivo do petróleo russo em 2022 e 2023, mas perderam parte da eficácia à medida que Moscou criou uma economia paralela, com rotas via países terceiros e uma frota de petroleiros pouco transparentes.
O que está em jogo para a Rússia — e para a guerra
Ao traçar um mapa do poder econômico do Kremlin, analistas identificam alguns nós centrais:
- capacidade de manter gastos militares elevados sem romper a estabilidade social interna;
- acesso a tecnologia avançada para indústria de defesa e setores estratégicos;
- sustentabilidade da moeda e do sistema financeiro diante de juros altos e dívidas em crescimento;
- habilidade de seguir monetizando petróleo e gás sob descontos e restrições crescentes.
Esta reportagem busca oferecer contexto e dados para além do fato, destacando o que está em jogo, o que muda e por que importa para o desfecho da guerra e para a economia global. Não se trata de prever um colapso iminente — cenário que a própria experiência dos últimos anos recomenda tratar com cautela —, mas de registrar que a conta da guerra e das sanções está chegando com mais força ao centro do modelo econômico russo.
Na visão de economistas independentes, a combinação de sanções, juros altos, inflação e esgotamento de capacidade produtiva tende a empurrar a Rússia para um período prolongado de baixo crescimento. A “folga” criada pelo uso de capacidade ociosa e pela mobilização industrial voltada à defesa estaria se esgotando, enquanto o país enfrenta escassez de mão de obra, envelhecimento da população, fuga de cérebros e dificuldade para atrair investimentos externos de qualidade.
Em paralelo, a Ucrânia segue pressionando por medidas mais duras, afirmando que apenas um corte mais agressivo das receitas de energia poderia, de fato, reduzir a capacidade de Moscou de sustentar a ofensiva militar. Isso inclui propostas de reforçar sanções secundárias contra bancos e empresas de países terceiros que facilitem a evasão de sanções, bem como discussões sobre o uso de juros sobre os ativos russos congelados para financiar a reconstrução ucraniana.
Uma dor crescente, mas ainda controlada
Do ponto de vista de Moscou, a mensagem pública é de resistência: o Kremlin insiste que a economia “superou o pico das dificuldades” e que as sanções teriam prejudicado mais a Europa do que a Rússia. Mas os sinais vindos dos próprios formuladores de política contam uma história mais nuançada:
- o reconhecimento de que a inflação e o superaquecimento se tornaram problemas reais;
- a necessidade de juros muito altos para controlar os preços, com custo para o investimento;
- o recuo nas projeções oficiais de crescimento para 2025;
- a pressa em redesenhar regras fiscais para reduzir a dependência de receitas de petróleo.
Em resumo, as sanções não derrubaram a economia russa, mas deixaram de ser um incômodo periférico para se tornar uma dor crônica, que exige remédios cada vez mais amargos em forma de juros altos, ajuste fiscal e concessões comerciais.
Na diferença entre fato e opinião, os dados mostram uma Rússia que continua financiando a guerra, mas a um custo crescente; já a avaliação política — de Moscou, de Kiev e das capitais ocidentais — segue dividida sobre se esse custo será suficiente para alterar o cálculo estratégico do Kremlin. O que parece claro, neste momento, é que a guerra na Ucrânia deixou de ser apenas um conflito de trincheiras e se consolidou como um teste de resistência econômica de longo prazo — e, nesse terreno, as sanções começam, enfim, a doer mais na Rússia.
Fontes:
Reuters – Russia slashes 2025 economic growth forecast to 1.5% from 2.5%
Reuters – Russia announces budget changes aimed at reducing oil revenue dependency
The Guardian – Ukraine war briefing: Russia “on verge of recession”, Putin minister tells economic showcase
AP News – Shadow fleet of tankers keeps Russia’s oil money flowing despite Western sanctions
France 24 – EU agrees ‘unprecedented’ round of sanctions targeting Russia’s oil exports
CSIS – Down But Not Out: The Russian Economy Under Western Sanctions
