Queda nas receitas de petróleo e gás, freio no crescimento e novas ofensivas contra a “shadow fleet” indicam que a guerra econômica entrou em nova fase — ainda longe de derrubar o Kremlin, mas cada vez mais pesada para a população.
No terceiro ano de guerra na Ucrânia, a narrativa de que “as sanções não funcionam” contra Moscou já não se sustenta da mesma forma. Depois de um período de aparente resiliência, impulsionado por preços altos de energia, redirecionamento de exportações e uma economia de guerra turbinada pelo gasto militar, os efeitos estruturais do cerco ocidental começam a aparecer com mais nitidez nos indicadores.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) revisou para baixo, em outubro, a previsão de crescimento da Rússia para 2025: de 0,9% para apenas 0,6% — um tombo expressivo depois de um avanço de 4,3% em 2024. O país deve andar de lado enquanto a economia global cresce cerca de 3%, e economias em desenvolvimento, em média, 4%.
Em paralelo, as receitas de petróleo e gás — a espinha dorsal do Estado russo — começaram a encolher de forma mais consistente. Análises recentes apontam queda de 26% a 27% nas receitas de combustíveis fósseis em 2025 em comparação com o ano anterior, sob impacto combinado de sanções, preços internacionais mais baixos e de um rublo artificialmente forte.
Para uma leitura de esquerda, trata-se de uma guerra econômica travada pelos centros do imperialismo contra um Estado que, apesar de autoritário e oligárquico, disputa espaço no tabuleiro geopolítico em choque com a OTAN. Mas o fato concreto é que a conta começa a chegar: a máquina de guerra russa mantém o fôlego, porém à custa de juros altos, orçamento pressionado e sacrifício da população trabalhadora.
Petróleo, gás e o limite da “resiliência”
Desde 2022, a estratégia central das sanções tem sido atingir o ponto mais sensível da economia russa: o petróleo. Estudos recentes lembram que o setor responde por 15% a 20% do PIB e por 40% a 50% das receitas de exportação do país.
Em 2025, esse modelo começou a ranger. Comentário do think tank OSW mostra que, desde o início do ano, exportadores russos enfrentam dificuldade crescente para manter volumes e margens, em meio a um coquetel de teto de preços, restrições logísticas e necessidade de conceder descontos cada vez maiores para driblar o boicote de países ocidentais.
Relatório do Centro de Pesquisa em Energia e Ar Limpo (CREA) aponta redução de 26% nas receitas de petróleo e gás em setembro, em relação a 2024, apesar de um ligeiro repique mensal causado por manobras fiscais pontuais.
Mais recentemente, dados citados pela imprensa econômica indicam que a queda chegou a 27% em outubro, com um buraco acumulado de mais de 2 trilhões de rublos nas receitas de hidrocarbonetos nos dez primeiros meses do ano.
Em paralelo, o Kremlin insiste em uma política de gasto público expansionista para sustentar salários no complexo militar, benefícios sociais seletivos e investimentos em indústria bélica, ampliando o descompasso entre arrecadação e despesas.
A “shadow fleet” sob fogo cruzado
Durante boa parte da guerra, Moscou conseguiu amortecer os efeitos do embargo ocidental com ajuda de uma frota paralela de petroleiros velhos, operando com bandeiras de conveniência e seguros de origem opaca — a chamada “shadow fleet”. Essa rede permitiu à Rússia exportar petróleo para mercados como China, Índia e outros países do Sul Global, muitas vezes com apoio indireto de armadores europeus e norte-americanos, que lucraram com a venda de navios antigos para intermediários.
Mas essa válvula de escape começou a ser atacada mais diretamente. Em maio, a União Europeia e o Reino Unido ampliaram sanções contra a frota sombra, colocando quase 350 navios na lista negra, congelando ativos e impondo restrições a empresas em Emirados Árabes, Turquia e Hong Kong envolvidas no esquema.
Em seguida, a Alemanha passou a exigir comprovação rigorosa de seguro de navios que cruzam o Báltico rumo ao mar do Norte, ameaçando barrar embarcações que não atendam às normas da UE — medida que atinge em cheio petroleiros ligados à Rússia que operam sem cobertura de seguradoras tradicionais.
Reportagem do The Guardian revelou ainda que armadores ocidentais ganharam pelo menos US$ 6 bilhões vendendo cerca de 230 navios para a frota sombra, expondo o papel de empresas europeias no prolongamento da guerra, mesmo enquanto seus governos defendem sanções mais duras.
A pressão recente — novos pacotes de sanções europeias, iniciativas nacionais e restrições a seguros — sinaliza uma tentativa tardia de fechar brechas. Na prática, isso força Moscou a oferecer descontos maiores, encarece custos logísticos e coloca em xeque a sustentabilidade de um arranjo que vinha garantindo caixa para o esforço militar.
Pacotes 18 e 19: energia, bancos e complexo militar na mira
No plano regulatório, a UE chegou ao 19º pacote de sanções, ampliando a lista de pessoas e entidades bloqueadas, apertando o cerco a bancos de países terceiros que ajudam Moscou a contornar restrições e mirando de forma mais direta o setor de energia e o complexo militar-industrial russo.
Os pacotes 18 e 19 introduziram:
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novas restrições a exportações de tecnologia sensível, bens de uso duplo e maquinário industrial;
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medidas para reduzir ainda mais o teto de preços do petróleo russo e reforçar a fiscalização;
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sanções a empresas de logística, seguradoras e bancos que operam na borda da legalidade para viabilizar exportações de energia e importações de componentes militares.
Já os EUA seguem atualizando listas que atingem empresas e indivíduos ligados ao cartel financeiro que sustenta o esforço de guerra, com sanções voltadas a bancos, empresas de defesa e redes de evasão em países intermediários.
Estudos de centros como o CSIS e o Chatham House apontam que, apesar de níveis recordes de gasto militar, a indústria bélica russa mostra sinais de regressão estrutural, dependente de importações clandestinas de componentes ocidentais e incapaz de repor, na mesma velocidade, equipamentos perdidos no front.
A leitura crítica de esquerda enxerga aí um risco duplo: o desgaste da máquina militar é real, mas a resposta do Kremlin tende a ser mais economia de guerra, mais cortes sociais e mais repressão interna, em vez de recuo político.
Crescimento fraco, juros altos e custo social
Embora o governo russo insista em projetar normalidade, os números contam outra história. O FMI prevê que o crescimento do país ficará muito abaixo da média global e de outros emergentes em 2025 e 2026, com a economia retornando a um padrão de estagnação depois de dois anos inflados por demanda militar e estímulos fiscais.
O próprio Fundo atribui o freio a três fatores principais:
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impacto cumulativo das sanções sobre comércio, investimento e tecnologia;
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juros altos — a taxa básica está na casa de 17% — para conter inflação;
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queda nas receitas de petróleo e gás, em um contexto de preços mais baixos e descontos forçados.
Na prática, isso significa crédito caro, dificuldade de investimento produtivo e compressão de salários reais. Enquanto setores ligados ao complexo militar e a grandes conglomerados exportadores seguem blindados, a população comum sente o peso da inflação em alimentos, tarifas e serviços básicos — ou seja, a guerra econômica não acerta apenas o Kremlin, mas sobretudo a classe trabalhadora russa.
É aqui que uma análise de esquerda precisa ir além da leitura celebratória das sanções: elas enfraquecem a capacidade de projeção militar de Moscou, mas também alimentam uma espiral de empobrecimento, precarização e migração, que tende a ser instrumentalizada por um Estado autoritário para justificar mais controle e menos direitos.
Imperialismo, bloco anti-imperialista e a disputa de narrativa
No tabuleiro geopolítico, as sanções são apresentadas pelas potências ocidentais como defesa da “ordem internacional baseada em regras”. Mas, na prática, funcionam como instrumento central do imperialismo, que seleciona alvos conforme sua própria hierarquia de interesses — tolerando violações de direitos em aliados estratégicos e punindo de forma maximalista governos que desafiam sua esfera de influência.
Moscou tenta responder apostando num bloco anti-imperialista com China, Irã e outros países do Sul Global, por meio de acordos energéticos, aproximação nos BRICS e substituição paulatina do dólar em contratos bilaterais. Essa articulação, porém, é marcada por assimetrias profundas: a Rússia se desloca da órbita europeia para se tornar, cada vez mais, fornecedora dependente de grandes compradores asiáticos, vendendo petróleo com desconto e aceitando condições impostas pelos novos parceiros.
Do ponto de vista da mídia hegemônica ocidental, o foco recai quase sempre sobre a “astúcia” de Moscou para driblar sanções ou sobre o suposto fracasso da estratégia de cerco. Já veículos críticos lembram que contrainformação é poder e que é preciso mostrar quem lucra com a guerra — de armadores europeus que abasteceram a shadow fleet a grandes bancos que seguem operando em brechas regulatórias.
O que está em jogo para além do Kremlin
Do ponto de vista de uma esquerda anti-guerra, o debate não pode se limitar a saber se “as sanções funcionam” em termos de PIB. A pergunta central é: o que está em jogo para os povos da Rússia, da Ucrânia e do entorno?
Alguns pontos se impõem:
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As sanções começam, de fato, a doer mais na Rússia, comprimindo receitas de energia, freando crescimento e tensionando o orçamento — o que limita, no médio prazo, a capacidade de Moscou de sustentar uma guerra de desgaste.
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Ao mesmo tempo, o peso recai desproporcionalmente sobre trabalhadores e trabalhadoras, enquanto oligarcas e grandes conglomerados se reposicionam em novos mercados.
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A estratégia de sanções unilaterais reforça a centralidade do cartel financeiro norte-atlântico na definição do que é “ordem internacional”, em detrimento de mecanismos multilaterais genuínos.
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A ausência de uma agenda consistente de reconstrução e justiça social para a Ucrânia — dependente de pacotes emergenciais, dívidas e condicionalidades — mostra que o coração do debate ainda é menos soberania nacional e mais disputa de zonas de influência.
Nesse cenário, a esquerda internacional é desafiada a manter duas recusas simultâneas: recusar a invasão russa e o projeto autoritário de Putin, e recusar a ilusão de que o imperialismo financeiro e militar do bloco EUA–OTAN será o instrumento que trará paz, democracia e desenvolvimento para a região.
Referências
Reuters – IMF downgrades Russia’s 2025 GDP growth forecast to 0.6%
OSW – Russia’s budget under pressure from low oil prices
Centre for Research on Energy and Clean Air – Monthly analysis of Russian fossil fuel exports and sanctions (September 2025)
AP News – EU and UK impose new sanctions on Russia’s ‘shadow fleet’ of oil tankers
Financial Times – Germany launches insurance crackdown on Russian ‘shadow fleet’
The Guardian – Shipowners have made £4.8bn selling tankers to Russian ‘shadow fleet’
Chatham House – Russia’s struggle to modernize its military industry
CSIS – Down But Not Out: The Russian Economy Under Western Sanctions
Council of the EU – 19th package of sanctions against Russia: EU targets Russian energy, third-country banks and crypto providers
