Novo levantamento liga Forças israelenses e colonos a um padrão de ofensivas contra redes de água na Cisjordânia ocupada e em Gaza; especialistas falam em violação de normas internacionais e governos europeus sinalizam cobrança — debate que exige menos narrativa e mais auditoria técnica.
A água — insumo básico, silencioso, vital — virou alvo preferencial num conflito onde tudo tende a ser militarizado. Um levantamento compilado a partir do banco “Water Conflict Chronology”, do Pacific Institute, indica que, entre 2020 e meados de 2025, houve mais de 250 ataques contra infraestrutura hídrica usada por palestinos na Cisjordânia ocupada e em Gaza, com autoria atribuída a forças israelenses e a grupos de colonos. O número, revelado por reportagens internacionais e detalhado por documentos de ONU e Banco Mundial, traduz-se em bombardeios a estações de dessalinização, destruição de tubulações, sabotagem de bombas e, em episódios extremos, tiros contra civis no ato de coletar água. Em Gaza, onde a destruição é maciça desde 2023, estimativas recentes falam em colapso sistêmico: perdas superiores a 90% na capacidade de distribuição/ tratamento em determinados períodos, além de redes com vazamentos acima de 50% por danos repetidos e reparos dificultados.
Sob uma lente liberal-conservadora, que prioriza segurança, previsibilidade e Estado de Direito, dois eixos precisam andar juntos: responsabilização por ataques a bens civis — quando comprovados — e restauração rápida de serviços essenciais, com protocolos transparentes. Sem isso, abre-se espaço para engenharia de narrativa, tanto de quem minimiza destruição de ativos civis quanto de quem instrumentaliza tragédias para ganho político. A régua é simples: fatos auditáveis, dados abertos, lei e ordem na apuração e sanções proporcionais quando houver dolo ou negligência grave.
O que o novo levantamento traz
Segundo o The Guardian, a série de mais de 250 ocorrências desde 2020 inclui ataques diretos a poços, canos troncais, reservatórios, estações de bombeamento e projetos financiados por doadores, como unidades de dessalinização e painéis solares que alimentam saneamento básico. Há registros de tiroteios contra civis durante a coleta, e de sabotagem em redes agrícolas nos arredores de Nablus, Ramallah e Hebron — muitas vezes atribuídos a colonos. O Pacific Institute contextualiza que 2024 registrou recorde global de violência relacionada à água (420 eventos), com o conflito Israel–Palestina respondendo por parcela relevante desses incidentes.
Em paralelo, os relatórios humanitários da ONU vêm detalhando o recorte “fino” do West Bank: somente em 2025, 13% dos incidentes de violência de colonos que resultaram em dano à propriedade atingiram estruturas de água — bombas, adutoras, tanques comunitários e redes de irrigação —, cortando o acesso de vilas inteiras por dias. Em uma atualização de setembro, OCHA falou em 100 mil palestinos com fornecimento interrompido na área de Ramallah após sucessivos atos de vandalismo. Esses dados ajudam a explicar o “tiro de ricochete” das operações: além do choque imediato, há o efeito econômico (perda de safras, encarecimento de caminhões-pipa, colapso de pequenos comércios).
Gaza: danos estruturais, colapso de oferta e custo de reconstrução
Na Faixa de Gaza, o quadro é mais severo. Em 2024 e 2025, avaliações conjuntas de Banco Mundial e ONU estimaram danos bilionários às infraestruturas críticas, com necessidade de US$ 2,7 bilhões apenas para repor o setor WASH (água, saneamento e higiene). As interrupções na energia — combustível e linhas — travam bombas, dessalinização e estações elevatórias; a rede degrada-se e perde mais de 50% do volume por vazamentos; e, mesmo após cessar-fogos parciais, a produção diária total fica em torno de um terço do nível pré-outubro/2023. É a anatomia da escassez: longas filas, água salobra, surtos de doenças de veiculação hídrica, e cidades inteiras dependendo de caminhões-pipa e pontos emergenciais de distribuição.
Do ponto de vista do Estado de Direito, o parâmetro é o Direito Internacional Humanitário (DIH): serviços de água e esgoto são “infraestruturas de sobrevivência” e gozam de proteção reforçada. A dúvida operacional — e política — é se ataques específicos tinham alvo militar direto (como uso dual comprovado) e se os meios empregados atenderam aos princípios de distinção, proporcionalidade e precaução. A via tecnicamente sólida para arbitrar isso não é “lacração” em rede, mas auditoria independente: crateras, trajetórias, logs de comunicação, base probatória pública. Sem perícia, a discussão degringola em narrativa contra narrativa, com vítimas à margem. jargoes_jornalistas_direita (1)
A disputa semântica e o teste de credibilidade
Israel tende a sustentar que a degradação do sistema de água em Gaza decorre do combate a estruturas de grupos armados e da arquitetura subterrânea de túneis, que comprometeria a segurança civil e exigiria neutralização de alvos. Por sua vez, órgãos da ONU e pesquisadores independentes rebatem que a escala dos danos extrapola a lógica de “efeitos colaterais”, atingindo sistematicamente ativos civis essenciais. Nas áreas ocupadas da Cisjordânia, o governo israelense afirma coibir vandalismo e punir colonos; porém, o efeito-sistema tem sido interrupções recorrentes e baixa responsabilização pública documentada.
Para um observador de viés à direita, que preza lei e ordem e previsibilidade, o caminho do meio é exigir provas auditáveis e responsabilização objetiva: quem fez, onde, quando e com que meios. Sem isso, a conversa resvala para o campo da engenharia de narrativa — o que é ruim para a proteção de civis e também para a segurança de Israel, pois corrói legitimidade externa
Europa, ONU e a aritmética política
A perspectiva de “repercussão na ONU e em aliados europeus” não é fumaça. A sequência de relatórios técnicos (Banco Mundial/ONU) e de notas de OCHA dá munição para resoluções de cobrança, inclusive com foco setorial (WASH). Capitais europeias tendem a calibrar críticas por meio de condicionalidades de financiamento de reconstrução e de apoio a projetos de dessalinização e esgoto. Quanto mais robusto o lastro técnico — quantos quilômetros de rede, quantas estações e bombas destruídas, quais projetos de doadores foram atingidos —, mais difícil será reduzir o debate a troca de adjetivos.
No West Bank, a pressão incide sobretudo sobre a contenção imediata da violência de colonos e sobre autorizações para reparos. Em Gaza, a métrica é: quantas linhas Mekorot estão ativas, qual a disponibilidade de combustível, quantos metros cúbicos/dia são produzidos e distribuídos, quantas plantas de dessalinização operam, qual o cronograma de recomposição. Essa objetividade é o antídoto contra impunidade e também contra o atalho retórico.
Três trilhos para sair da espuma e voltar ao dado
1) Protocolo WASH sob DIH — Reconhecer, de parte a parte, que água não é “alvo conveniente”, mas infraestrutura de sobrevivência. O pacote mínimo inclui mapa público dos ativos (com proteção de dados sensíveis), regras de notificação e “janelas de quietude” para reparo. É lei e ordem operacional aplicada ao setor.
2) Verificação independente com transparência — Criar painel técnico com peritos (engenharia hidráulica, balística, imagens satelitais) para auditar eventos. Publicar relatórios periódicos com metodologia, amostras e limitações. Abre-se menos espaço para lacração e mais terreno para responsabilização.
3) Rota de reconstrução com metas mensuráveis — O cálculo de necessidades (US$ 53 bi totais; US$ 2,7 bi para água/saneamento) precisa virar cronograma e indicadores: perdas na rede, m³/dia por governadorado, número de escolas e hospitais reconectados, estoques de reagentes e peças. Sem métrica, tudo vira narrativa.
Por que isso importa também para Israel
Há uma questão de dissuasão e outra de legitimidade. Do ponto de vista estratégico, serviços essenciais resilientes reduzem a chance de colapso sanitário e de espirais de insurgência. Na chave diplomática, decisões respaldadas em Estado de Direito e em auditoria minimizam desgaste com parceiros decisivos no financiamento de reconstrução e na mediação política. Se a percepção internacional cristalizar a leitura de que a água foi usada como “arma” sem proporcionalidade, cresce a chance de sanções setoriais, restrições a cooperação tecnológica e contestações em foros multilaterais. Isso não é “moralismo europeu”: é cálculo de custo político.
A água, que deveria unir, virou mais um campo minado. O dado bruto — mais de 250 ataques desde 2020 — impõe um dever: substituir o barulho por processos. No curto prazo, cessar sabotagens e garantir janelas de reparo. No médio, restaurar sistemas e publicar telemetria de produção e distribuição. No longo, blindar ativos civis com protocolos sob escrutínio internacional. O resto é espuma de rede. Lei e ordem, com Estado de Direito, não são slogans: são a diferença entre o direito à vida cotidiana e a permanência da cultura do conflito.
Fontes:
he Guardian – Israel attacked Palestinian water sources over 250 times in five years, data reveals.
Pacific Institute – Analysis Finds Surge in Reported Water-Related Violence (announcement & data context).
UN OCHA – Humanitarian Situation Update #320 (West Bank): settler incidents targeting water infrastructure.
UN OCHA – Gaza Humanitarian Response Updates (março e fev. 2025): perdas na rede, produção diária, linhas Mekorot.
World Bank/United Nations – Interim Rapid Damage and Needs Assessment (Gaza & West Bank), 2025.
