Em declaração feita hoje (11/11), chanceler russo afirma que a Rússia só fará testes se outra potência nuclear o fizer antes. O recado, dado à Reuters, ecoa a postura de “paridade estratégica” após a revogação russa da ratificação do CTBT em 2023 e reacende o debate sobre diplomacia multilateral, verificação e riscos de uma nova corrida nuclear.
A frase é simples, o impacto não. O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, declarou que Moscou realizaria testes nucleares caso “qualquer outra potência nuclear” os retomasse, reposicionando o tema no topo das preocupações de segurança internacional. A sinalização, colhida pela Reuters, vem embalada por dois elementos centrais: primeiro, o compromisso — reiterado — de que a Rússia espelhará o comportamento dos demais detentores de arsenal atômico; segundo, a disposição em discutir com Washington as suspeitas sobre “atividades subterrâneas” — um eufemismo para exercícios e obras em sítios históricos de teste que alimentam especulações. Na prática, o Kremlin está dizendo ao mundo que não busca romper sozinho a moratória global de fato, mas que não ficará para trás se outro ator rasgar o acordo tácito.
Para entender o alcance dessa mensagem, é preciso voltar a 2023. Em novembro daquele ano, o presidente Vladimir Putin revogou a ratificação russa do Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares (CTBT). O movimento foi apresentado como busca de “paridade jurídica” com os EUA — que assinaram o tratado em 1996, mas nunca o ratificaram. À época, diplomatas como Serguei Riabkov sublinharam que Moscou respeitaria a moratória, mas espelharia qualquer passo americano rumo a um teste. A lei foi sancionada e a ambiguidade se consolidou: não testar, a menos que outro teste ocorra primeiro.
Esse pano de fundo se soma a uma conjuntura tecnológica e geopolítica mais tensa. O arco de controle de armas vem encolhendo há anos: o INF morreu, o Open Skies é passado, e a própria arquitetura do CTBT permanece sem entrada em vigor por falta de ratificação de países-chave — entre eles Estados Unidos e China. A Comissão Preparatória da CTBTO mantém, ainda assim, uma robusta rede de verificação global (sismologia, radionuclídeos, infrasom, hidroacústica) que detecta explosões atômicas em qualquer ambiente, confiando em um pacto político que não virou tratado plenamente vigente. É essa rede — técnica e diplomática — que uma volta aos testes colocaria à prova, com efeitos de arrasto sobre alianças, sanções e o próprio ecossistema científico vinculado ao estoque nuclear de cada país.
Do ponto de vista da realpolitik, a fala de Lavrov cumpre duas funções. Primeiro, sinaliza dissuasão: a Rússia quer deixar claro que não absorverá sozinha o custo reputacional de dar o primeiro tiro (ou, melhor, a primeira detonação) desta fase. Segundo, pressiona Washington e demais capitais a amarrar politicamente a moratória — com linguagem que aponte para verificação e previsibilidade. Não por acaso, a declaração vem acompanhada de uma oferta condicionada de diálogo sobre “atividades subterrâneas” que inquietam os EUA, uma forma de marcar terreno ao mesmo tempo em que se preserva margem de manobra.
A leitura de esquerda — informada por um léxico consolidado no debate público — aponta que o retorno a ensaios nucleares arrastaria o planeta para um retrocesso estrutural. Em vez de investir em medidas de construção de confiança, transparência e desescalada, o sistema internacional veria fortalecer-se o complexo industrial-militar, com mais contratos opacos, mais zonas de silêncio e menos controle social sobre decisões de alto impacto civilizatório. Reativar testes significaria legitimar um estado de exceção permanente na política de segurança, com custos difusos (ambientais, sanitários, orçamentários) socializados sobre majorias que nada decidem. É aqui que noções como soberania nacional, diplomacia multilateral e democratização das comunicações deixam de ser slogans e viram ferramentas para disputar a narrativa contra a naturalização da guerra por procuração e de suas tecnologias.
Nada disso elimina o óbvio: potências nucleares perseguem paridade e credibilidade. Desde 1992 (no caso dos EUA) e 1990 (no caso da URSS/Rússia), a moratória de fato substituiu testes atmosféricos e subterrâneos por modelos computacionais e ensaios subcríticos. O problema é que a erosão de tratados, a “geopolítica do drone” e a multiplicação de teatros de conflito criaram incentivos perversos para sinalizações de força — e é nesse terreno que pronunciamentos como o de Lavrov ganham tração. Ao mesmo tempo, a CTBTO lembra que seu regime de verificação é capaz de identificar eventos com precisão, o que eleva o custo diplomático de qualquer rompimento.
No curto prazo, três aspectos merecem atenção:
1) A ambiguidade estratégica. Ao dizer “testaremos se alguém testar”, a Rússia terceiriza o gatilho político do colapso — e transfere a outros a responsabilidade de cruzar a linha. Chama-se isso, no jargão, de sinalização condicional: mantém mobilizada a própria base doméstica e reforça a narrativa de paridade estratégica, sem que se assuma o ônus do primeiro passo. É uma fórmula que também pressiona o debate em Washington, onde persiste a resistência à ratificação do CTBT.
2) O efeito dominó. Um único teste teria potencial de quebrar tabus e disparar efeitos de demonstração: outros países “no limiar” poderiam explorar a janela para legitimar avanços próprios; alianças regionais reagiriam; parlamentos cobrariam linhas vermelhas mais duras. Uma corrida de testes reabriria perguntas sobre resíduos radioativos, impactos em comunidades vizinhas a sítios de detonação e custos de mitigação que, historicamente, recaem sobre populações marginalizadas.
3) O custo de oportunidade. Cada dólar, euro ou rublo injetado em preparativos de teste deixa de ir para reconstrução, transição energética e resiliência climática — agendas que, insistem setores progressistas, são segurança no século XXI. A insistência em demonstrar paridade pela via do retrovisor nuclear contamina orçamentos e empobrece a política.
Há quem argumente, em Moscou e em outros lugares, que sem testes a confiabilidade do arsenal cai e a dissuasão perde lastro. Mas esse é justamente o dilema que a moratória e o ecossistema de laboratórios de stockpile stewardship tentaram resolver: manter segurança e confiabilidade sem a externalidade massiva de explodir cargas. Voltar a testar, ainda que “apenas em resposta”, equivaleria a destravar um jogo no qual ninguém tem garantias sobre o ponto de parada — e em que a mídia hegemônica tende a recompensar o gesto “duro” e punir o compromisso verificável como “fraqueza”.
Do ponto de vista da governança global, existem caminhos para sair da armadilha:
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Reafirmar a moratória com linguagem operacional. Um comunicado conjunto entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (P5) reconhecendo o regime de verificação da CTBTO e se comprometendo a não testar sob qualquer hipótese reduziria a margem para mal-entendidos — e recolocaria o peso da prova em desvios específicos, facilmente detectáveis pela rede internacional.
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Pacote de confiança recíproca. Visitas técnicas a sítios sensíveis (em moldes tratados no passado), participação de especialistas estrangeiros em exercícios subcríticos e publicação de mais telemetria científica poderiam baixar a temperatura sem violar segredos militares críticos.
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Arquitetura de responsabilização. Em caso de rompimento, ativar sanções inteligentes — calibradas para atores e cadeias diretamente ligados a decisões de teste, e não para punir a sociedade —, combinadas a contrapartidas de saída se o infrator retornar à moratória.
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Agenda positiva. Vincular a manutenção da moratória a dividendos concretos (cooperação em detecção de radionuclídeos, financiamento cruzado de monitoramento ambiental, bolsas de pesquisa) cria constituências internas que defendem o status quo.
A fala de Lavrov, por sua vez, precisa ser lida também na chave da comunicação estratégica: ao oferecer diálogo técnico com os EUA sobre “atividades subterrâneas”, Moscou tenta moldar a narrativa de que, se vier a testar, terá sido forçada por terceiros. É a tradução, em 2025, de uma disputa que vem desde 1996: quem paga o preço político de manter uma moratória que ainda não virou tratado? Para um campo progressista, a resposta passa por reforçar as instituições (CTBTO) e blindar a técnica da política, sem cair no cinismo liberal que trata consensos como ingênuos.
O risco de erro de cálculo é real. Em um ecossistema saturado de crises — Ucrânia, Cáucaso, Oriente Médio —, a tentação de sinalizar com testes pode parecer atalho para prestígio doméstico. Mas seria um atalho caro, perigoso e regressivo. A melhor tradução do recado de hoje, portanto, é também um alerta: segurança coletiva não floresce sob chantagem nuclear. Se a Rússia quer manter a paridade sem abrir a caixa de Pandora, e se os EUA e outras potências querem evitar que a “condicional” vire corrida, a hora é de diplomacia multilateral, de verificação robusta e de pactos verificáveis — não de manchetes que nos empurrem mais uma vez para o abismo.
Referências
Reuters – Russia will conduct nuclear tests if other nuclear powers resume them, Lavrov says.
AP News – Putin signs a bill revoking Russia’s ratification of a global nuclear test ban treaty.
AP News – Russia will only resume nuclear tests if the US does it first, a top Russian diplomat says.
CTBTO Preparatory Commission – Status of Signature and Ratification / CTBT verification regime.
