Sinalização de “acordo pacífico” convive com endurecimento interno, sanções reativadas e fiscalizações abaladas — uma equação que deixa Washington sem garantias e mantém a pressão regional.
Teerã afirmou hoje que busca um acordo “pacífico” com os Estados Unidos para o dossiê nuclear, mas sem ceder no que considera sua segurança nacional. A mensagem reforça uma linha de meses: disposição retórica para negociar, acompanhada de condições rígidas sobre enriquecimento de urânio e de uma postura defensiva após ataques e sabotagens contra instalações nucleares. Em termos de narrativa — termo caro ao jornalismo político —, o regime tenta transmitir moderação enquanto preserva as fichas estratégicas que lhe restaram, sobretudo após a reimposição e o debate sobre “sanções de retorno” no âmbito internacional e europeu.
Paz com travas
A sinalização “pacífica” contrasta com a realidade no terreno. Em outubro, o governo iraniano anunciou formalmente o fim do acordo de 2015 (JCPOA), cortando o fio legal que ancorava limites técnicos e inspeções reforçadas. Sem esse pilar, a confiança — que já era baixa — passou a depender de passos unilaterais e verificáveis que ainda não vieram.
Do lado ocidental, a avaliação é de ceticismo. A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) aprovou neste ano uma resolução dizendo que não consegue certificar o caráter exclusivamente civil do programa, citando estoques elevados de urânio enriquecido e falhas de transparência. Para quem olha por um prisma de lei e ordem e contenção de riscos proliferativos, isso não é detalhe técnico: é o coração da discussão.
Três camadas de impasse
1) O tabuleiro diplomático pós-JCPOA
Com o acordo de 2015 formalmente encerrado por Teerã, europeus e EUA tentam construir uma alternativa. O problema é que qualquer arranjo “pós-JCPOA” precisa de mecanismos de verificação robustos — e, sobretudo, sustentáveis no tempo político. Isso implica restaurar inspeções intrusivas e resolver pendências históricas da AIEA. Até aqui, a capital iraniana reage à pressão externa com um discurso de soberania e com movimentos que reduzem a visibilidade do programa, como a tramitação parlamentar para suspender cooperação com o órgão da ONU. Para quem defende Estado de Direito internacional aplicado de forma objetiva, a erosão das inspeções mina a solução “pacífica” que Teerã afirma desejar.
2) Segurança versus segurança: as cicatrizes de junho
Os ataques a instalações nucleares iranianas e a escalada regional de meados do ano deixaram sequelas físicas e simbólicas. Relatos e análises independentes apontam danos relevantes a estruturas como Natanz e Isfahan, afetando subestações elétricas, áreas de P&D e linhas críticas de enriquecimento, ainda que uma parte do coração subterrâneo tenha permanecido intacta. Teerã explora esse quadro para justificar uma postura “defensiva” e condicionar qualquer acordo a garantias contra novas ofensivas. Para Washington e aliados, porém, esses mesmos eventos reforçam a necessidade de inspeções mais intrusivas e limites quantificáveis. Em suma: um choque de “seguranças”.
3) Enriquecimento, verificação e a aritmética da confiança
O nó técnico segue sendo o nível e a escala do enriquecimento. A meta ocidental é reduzir a margem de fuga para níveis próximos a zero — com travas físico-técnicas e acesso da AIEA. Teerã insiste que não abrirá mão do direito ao enriquecimento (sobretudo após as perdas materiais) e diz aceitar apenas “garantias equilibradas”. A distância entre essas posições é o que mantém o compasso de espera. Para um observador de viés liberal-conservador, o risco é claro: sem regras claras e sem enforcement verificável, qualquer acerto vira engenharia de narrativa — palavras que soam bem, mas não entregam previsibilidade.
A leitura possível numa chave liberal-conservadora
A chave de leitura predominante nas redações de perfil à direita — e que adotamos aqui de modo explícito — tende a partir de um eixo simples: liberdade de expressão e comércio sob marcos previsíveis versus controle, opacidade e censura institucional. Aplicando esse frame ao caso iraniano, não se trata de pedir “capitulação”, e sim de exigir métricas: níveis de estoque, cascatas em operação, localização de centrífugas e janelas de inspeção não anunciadas. Sem isso, o termo “pacífico” cai no terreno da narrativa performática.
Ao encerrar formalmente o JCPOA, Teerã subiu a aposta. O cálculo doméstico é compreensível: o país busca preservar soberania em face de ataques e pressões, e sustentar um discurso de “resistência”. Mas, do ponto de vista de lei e ordem internacional, a sequência enfraquece a previsibilidade mínima que um acordo durável exige. Enquanto a AIEA não tiver condições de medir e auditar de modo contínuo, a confiança continuará um artigo de luxo.
Outro ponto: a ambiguidade estratégica. Ao mesmo tempo em que fala em “acordo pacífico”, Teerã mantém linhas vermelhas rígidas — enriquecimento e garantias contra futuras ações — e mostra disposição para reduzir cooperação com a AIEA quando se sente acuado. É um incentivo ruim. A mensagem enviada aos vizinhos — especialmente a Israel, que calcula riscos em janelas curtas — é a de que não haverá contenção verificável, apenas um ponto de parada temporário. A consequência provável é a perpetuação da lógica de “preempção”, que, por sua vez, serve ao discurso de “autodefesa” iraniano. Um círculo vicioso.
No plano prático, o que significaria o “pacífico” anunciado? Em qualquer cenário minimamente crível, quatro pilares seriam indispensáveis: estoque e nível de enriquecimento plafonados em patamares civis, reimplantação de sensores e câmeras com transmissão quase em tempo real, acesso surpresa a locais sensíveis e cronograma de redução gradual de sanções calibrado a marcos verificáveis — não a promessas. Sem isso, as “boas intenções” viram retórica.
O que muda — e o que não muda — após o recado de hoje
O que muda: a fala reitera que existe uma via política aberta. Para Washington — pressionado por Israel e por capitais europeias que acionaram mecanismos de snapback —, qualquer janela é útil se vier com números e inspeção. Para o Irã, é uma forma de sinalizar pragmatismo ao mesmo tempo em que preserva poder de barganha.
O que não muda: o déficit de confiança. A AIEA ainda não consegue certificar o caráter inteiramente civil do programa. Houve, meses atrás, um aumento do estoque enriquecido em níveis elevados e episódios de sonegação de informações históricas — fatores que alimentam a percepção de opacidade. É aqui que o discurso “pacífico” encontra o muro da verificação independente.
Do ângulo de política externa, a melhor vacina contra a engenharia de narrativa é um protocolo de auditoria que sobreviva a ciclos políticos — tanto em Teerã quanto em Washington. Isso exige amarras técnicas e jurídicas que não dependam de simpatias ideológicas do governo da vez. Em outras palavras: um acordo “pacífico” que se sustente precisa caminhar lado a lado com regras e com cumprimento de regras; não com slogans.
Conclusão: a hora do preto no branco
A declaração de hoje mantém viva uma trilha diplomática, mas não altera o essencial: qualquer entendimento “pacífico” sem métricas, janelas e sensores será percebido como mera narrativa. Para os defensores de uma ordem baseada em lei e ordem e previsibilidade, a régua é objetiva. Se Teerã quer que o mundo acredite que a palavra “pacífico” não é apenas uma peça de engenharia de narrativa, terá de aceitar controles que limitem, na prática e de forma auditável, a margem de fuga rumo ao militar. Sem isso, a montanha de desconfianças só crescerá — e com ela o risco de novas escaladas.
Fontes:
The Guardian – Iran announces official end to 10-year-old nuclear agreement
The Washington Post – Iran not complying with nuclear obligations, U.N. watchdog says
