Em dia de recados calibrados, Irã diz querer saída negociada para o impasse atômico sem abrir mão de “segurança nacional”; sanções foram reimpostas e as conversas seguem travadas, enquanto Europa pressiona por inspeções da AIEA e Washington envia sinais ambíguos.
Teerã procurou modular a temperatura política do dossiê nuclear ao afirmar, nesta terça-feira, que busca um acordo “pacífico” com os Estados Unidos para encerrar um contencioso de décadas. O recado, dado pelo vice-chanceler Saeed Khatibzadeh durante um fórum em Abu Dhabi, veio acompanhado de um aviso: não haverá concessões que afetem a segurança nacional do país. Ao mesmo tempo, o diplomata acusou Washington de enviar mensagens contraditórias por canais indiretos — um diagnóstico que, ao menos por ora, ajuda a explicar por que as talks permanecem emperradas.
O gesto iraniano ocorre sob o peso de sanções reimpostas: em fim de setembro, o Conselho de Segurança da ONU restabeleceu restrições que haviam sido suspensas pelo acordo de 2015 (JCPOA). A leitura dominante hoje entre diplomatas é que tanto Teerã quanto Washington dizem apoiar uma negociação, mas nenhum dos lados quer dar o primeiro passo. A avaliação é do Arms Control Today, publicação especializada que acompanha o regime internacional de não proliferação. Na véspera, a agência AP detalhou como os europeus ativaram o “snapback” e têm condicionado qualquer flexibilidade à retomada de inspeções pela AIEA e a um canal direto com os EUA — exigências que Teerã resiste em aceitar sem contrapartidas.
No curto prazo, o que está em jogo é a capacidade de ambos os lados de administrar pressões domésticas e externas sem destruir as pontes que ainda existem. Em outubro, o chanceler Abbas Araqchi disse que o Irã analisaria uma proposta americana que fosse “justa e equilibrada”, mas reafirmou a recusa em abrir mão do enriquecimento de urânio no próprio território — oferecendo, porém, sinalização ao mercado e à comunidade internacional por meio de medidas de “confiança” sobre a natureza pacífica do programa. A mensagem: sem algum alívio sancionatório, não há como avançar.
A moldura regional tampouco ajuda. Após uma guerra de 12 dias entre Irã e Israel, reportagens de Reuters e da AP afirmam que os EUA participaram de ataques a instalações nucleares iranianas — um novo patamar de confronto que, por óbvio, dificulta a retomada diplomática. Em paralelo, o líder supremo Ali Khamenei tem reiterado que não haverá conversas “sob ameaça”, o que limita a margem de manobra do presidente Masoud Pezeshkian e de seus interlocutores do governo. Esse mapa do poder interno — em que o Estado de Direito iraniano se estrutura sob primazia do guia — mantém travas conhecidas sobre qualquer compromisso que o Executivo deseje testar.
Contexto e dados para além do fato. O JCPOA, firmado em 2015 por Irã, EUA, E3 (França, Alemanha e Reino Unido), Rússia e China, impôs limites verificáveis ao programa nuclear em troca de alívio de sanções. A saída unilateral de Washington em 2018 corroeu a credibilidade do arranjo e inaugurou um ciclo de escaladas e recuos. Hoje, a Europa tenta liderar a articulação de um retorno gradativo às salvaguardas da AIEA — e chegou a concordar, em agosto, com uma nova rodada técnica, mesmo sob a sombra do snapback. Para Bruxelas, o que muda com a reimposição de sanções é simples: aumenta o custo de oportunidade de não negociar. Para Teerã, por que importa? Porque a pressão econômica sobre a base produtiva e a receita do petróleo tende a piorar, afetando atividade econômica e emprego, câmbio e fluxo internacional de capitais — ainda que, por ora, sem efeitos dramáticos na curva de juros global.
No campo técnico, a AIEA vem alertando para níveis de enriquecimento mais altos que os do JCPOA (até 60%), reduzindo o “breakout time” e elevando a urgência de um ajuste de expectativas. A narrativa oficial iraniana é de que o programa tem fins civis; a dos EUA, europeus e Israel é de que Teerã busca capacidade de dissuasão próxima ao limiar militar. Há uma zona de atrito aí que não se resolve por retórica: exige verificações intrusivas, cronograma crível e mecanismos de reversibilidade. O que a diplomacia precisa provar, neste momento, é que ainda existe “regra do jogo” negociável.
Nos bastidores do poder, fontes descrevem um tabuleiro em que ninguém quer parecer fraco. O governo americano, segundo a imprensa, acena com “mão estendida” — mas quer eliminar o enriquecimento em solo iraniano; Teerã, por sua vez, oferece inspeções reforçadas, mas não abre mão do know-how acumulado. Nesse xadrez, previsibilidade e credibilidade tendem a ser as moedas mais escassas, justamente porque qualquer compromisso firmado em 2025 precisará atravessar ciclos de desconfiança alimentados desde 2018. Interlocutores em Teerã e em capitais europeias reconhecem que a “solução ótima” já não está na mesa; resta a governabilidade de um “meio do caminho” pragmático.
Do lado europeu, há articulação política para manter vivo algum canal: Berlim, Paris e Londres pressionam por acesso da AIEA e, nos termos da AP, condicionam a prorrogação de prazos à retomada de um diálogo direto EUA-Irã. A reativação dessa linha, contudo, esbarra no veto de Khamenei e na cicatriz deixada pela guerra de junho. Sem essa ponte, a diplomacia segue terceirizada a mediadores — Omã, por exemplo — com pouco espaço para movimentos decisivos. A narrativa de “mensagens contraditórias” de Washington, ecoada por Khatibzadeh, cabe como uma luva nesse cenário.
O que está em jogo também passa por energia e rotas comerciais. A permanência de restrições à exportação de petróleo iraniano impacta receitas públicas e o ambiente de negócios, alargando os incentivos para que Teerã procure sinalização ao mercado: previsibilidade de regras, compromisso verificável e alguma folga cambial. Para os EUA e seus aliados, a aposta é inversa: manter pressão suficiente para trazer o Irã de volta a patamares seguros de enriquecimento, sem alimentar uma escalada militar na região. O equilíbrio é delicado — e qualquer passo em falso reanima riscos de fluxo internacional instável, pirataria e ataques a infraestrutura vital no Oriente Médio.
No plano jurídico, a reimposição das sanções via snapback reaviva discussões sobre devido processo e multilateralismo na ONU. Para o Irã, houve “politização” dos mecanismos; para os europeus, tratou-se de reativar cláusulas desenhadas justamente para cenários de descumprimento. Não é tema que se resolva em manchete — pede investigação e documentação e nova engenharia diplomática que garanta a “âncora fiscal” da política externa: regras, prazos e previsibilidade. O teste, daqui para frente, será produzir um “pacote” com incentivos e obrigações suficiente para reduzir incertezas, ao mesmo tempo em que se preserva a diferença entre fato e opinião na arena pública, onde maximalistas de ambos os lados costumam dominar o ruído.
No curto prazo, a trilha mais realista passa por “trancos e barrancos”: pequenos passos, salvaguardas emergenciais e sinalizações etéreas que mantêm a porta entreaberta. Em política externa, como lembram diplomatas veteranos, “um impasse que não piora já é um resultado”. A fala de Khatibzadeh — “acordo pacífico, sem abrir mão da segurança” — é, por ora, essa mensagem: Teerã quer preservar espaço para barganhar, mas não pagará para ver. Se haverá cliques suficientes nas engrenagens para tirar as conversas da inércia, isso dependerá de como cada capital vai ler os bastidores do poder nos próximos dias: se haverá movimentos para além da retórica, se a Europa conseguirá conter a escalada e se a Casa Branca transformará acenos em proposta concreta.
Enquanto isso, o dossiê nuclear volta a ocupar o centro da agenda global — e os observadores de dados para decidir seguem atentos ao calendário da ONU, às idas e vindas de emissários em Muscat e às notas de “contexto e dados para além do fato” que tentam manter o debate num trilho técnico, e não apenas ideológico. É um roteiro conhecido: há espaço para um acordo “menos-que-perfeito”, que reduza riscos e devolva credibilidade às inspeções. Mas ele exigirá autocontenção, passos sincronizados e, sobretudo, previsibilidade — exatamente o que tem faltado desde a ruptura de 2018.
Fontes:
Reuters – Iran seeks ‘peaceful nuclear deal’ with US, official says.
Reuters – Iran says it is open to ‘fair, balanced’ US nuclear proposal.
AP News – Iran’s supreme leader rejects direct talks with US over nuclear program.
Al Jazeera – Iran rejects sanctions threats before renewed nuclear talks with Europe.
Arms Control Association – Iran Nuclear Talks Stalled After Sanctions Reimposed.
