Em meio a talks emperradas, o Irã diz buscar uma saída negociada com Washington, mas reafirma soberania nacional e “não-concessões” em defesa; Europa reativa sanções e a agenda nuclear segue sob escrutínio do IAEA, num xadrez que mistura diplomacia multilateral, dissuasão e custos sociais.
Quando Teerã declara hoje (11/11) que almeja um acordo “pacífico” com os Estados Unidos para o dossiê nuclear, não se trata apenas de um gesto de relações públicas: é uma tentativa de reabrir uma janela diplomática num cenário em que a arquitetura de confiança está esgarçada. O recado veio junto a uma ressalva central — segurança nacional não está à venda — e com críticas a “mensagens contraditórias” vindas de Washington, um padrão que, segundo a chancelaria iraniana, teria bloqueado avanços concretos desde meados do ano. Ao mesmo tempo, a avaliação de bastidores é cristalina: as talks seguem travadas, embora Teerã repita que está “aberto” a propostas “justas e equilibradas”.
No pano de fundo, a pressão regulatória se intensificou — e não apenas por parte dos EUA. Em 29 de setembro, a União Europeia reimpôs sanções ao Irã após o acionamento do snapback pelos europeus (E3), citando não conformidade persistente em relação ao acordo de 2015. A medida atinge finanças, energia e mobilidade de autoridades, e veio acompanhada do discurso de “porta diplomática aberta”, desde que Teerã dê passos verificáveis para reduzir riscos de proliferação. Poucas semanas antes, no marco de 18 de outubro, o próprio Irã declarara oficialmente o “fim” do JCPOA, sinalizando o colapso formal de um pacto que vinha, na prática, se desfazendo desde a saída americana em 2018.
A fotografia técnico-política é ainda mais tensa à luz dos relatórios do IAEA: em maio, a agência reportou que o estoque iraniano de urânio a 60% — nível próximo ao grau bélico — alcançou 408,6 kg, salto de cerca de 50% em três meses. Nas últimas semanas, o diretor-geral Rafael Grossi voltou a pedir “melhorias sérias” na cooperação, alertando que a opacidade sobre locais e materiais sensíveis mina a supervisão internacional. Sob a lente de segurança coletiva, a equação é delicada: quanto mais avançam as capacidades técnicas, mais estreita fica a margem para medidas de construção de confiança; quanto mais se aciona o kit sancionatório, mais difícil se torna vender compromissos internos de moderação e transparência.
Dito isso, Teerã sustenta que o programa é civil e pacífico, coberto por garantias religiosas e por um racional de autonomia científica. A narrativa — insistente — é que a escalada de inspeções intrusivas e de punições econômicas alimenta o ciclo de desconfiança, penaliza a população e corrói a legitimidade de agentes multilaterais. Daí a ênfase iraniana em passos recíprocos: alívio graduado de sanções em troca de gestos verificáveis de limitação e rastreabilidade do ciclo nuclear, com salvaguardas da IAEA. Mesmo assim, dois nós seguem difíceis: a extensão do enriquecimento em território iraniano e as garantias de não reversão caso mude o governo em Washington.
Sob um olhar de esquerda, esse enredo convoca um vocabulário que o jornalismo crítico no Brasil consolidou ao longo de anos: soberania nacional, resistência a imperialismo, aposta em diplomacia multilateral, crítica à mídia hegemônica e defesa de sanções inteligentes (focadas em bens e atores com nexo direto à proliferação, não no tecido social). Esses termos funcionam como chaves de leitura para lembrar que regimes de punição abrangentes frequentemente operam como estado de exceção econômico, com cartel financeiro e cadeias de intermediação deslocando o custo para a ponta mais fraca — o povo iraniano. Não é relativizar demandas de transparência: é insistir que vias verificáveis e mecanismos de responsabilização só prosperam quando acompanhados de pistas de saída para além do cerco.
O que cada lado quer, agora?
Para Teerã, três elementos parecem inegociáveis: (1) reconhecimento do “direito” ao enriquecimento limitado em solo nacional; (2) cronograma confiável de alívio de sanções que permita oxigenação econômica; (3) blindagens contra reversão unilateral. Para Washington e europeus, a barra está em: (1) redução mensurável e verificável dos estoques de alto enriquecimento; (2) transparência ampliada (inclusive protocolos adicionais e acesso a sítios sensíveis); (3) contenção regional (mísseis e redes de aliados não estatais). Entre esses vetores há espaço, historicamente, para arranjos sequenciais — começando por passos de congelamento e retorno de inspeções reforçadas, seguidos por descongelamento de ativos e licenças limitadas de exportação de petróleo, com gatilhos de snapback calibrados.
A reativação de sanções europeias reconfigura a mesa de barganha. O recado político é que a “pacoteira” do JCPOA — prazos e sunsets — não sustém mais a percepção de risco. Para Teerã, isso acende a luz amarela: sem dividendos tangíveis por cooperar, a agência interna pró-acordo perde fôlego. Para o Ocidente, a mensagem interna é que a coerção econômica está à mão caso a diplomacia patine. O problema é o círculo vicioso: sanções mais duras elevam o prêmio político de resistir; resistência alimenta mais sanções. Quebrar esse ciclo exige um sequenciamento realista que troque maximalismo por gradualismo verificável.
Há ainda o componente regional, sem o qual a equação nuclear fica manca. Após picos de tensão e hostilidades no meio do ano, a percepção de risco de erro de cálculo aumentou. Para atores árabes e para Israel, um Irã “no limiar” amplia inseguranças existenciais; para Teerã, guerras por procuração e pressões extra-regionais atropelam a soberania e a autodeterminação. Em ambos os casos, a militarização do impasse aprofunda a dependência de complexos industrial-militares, enquanto as sociedades arcam com apagões, inflação e desemprego derivados do cerco econômico e dos choques de oferta. O resultado é uma espiral que interessa pouco à paz e muito à economia política da instabilidade.
Qual seria, então, um caminho de saída minimamente sustentável? Três eixos, retomando consensos possíveis e evitando falso equilíbrio:
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Verificação primeiro, política logo atrás — Retomar acessos ampliados da IAEA (inclusive em Fordow e Natanz), com linhas diretas para mitigar ruídos e relatórios públicos que reduzam a captura por narrativas. Isso implica aceitar inspeções intrusivas em troca de ganhos imediatos (por exemplo, autorizações comerciais limitadas com valvulagem de snapback).
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Sanções inteligentes, não punitivismo cego — Trocar pacotes abrangentes por miras específicas (tecnologias de duplo uso, fluxos financeiros com nexo direto), resguardando cadeias de insumos médicos, alimentos e infraestrutura civil. Isso reduz custo humanitário e melhora a vendabilidade doméstica de concessões técnicas — tanto em Teerã quanto em capitais ocidentais. (Aqui, a crítica à mídia hegemônica ajuda a expor como manchetes sobre “fraqueza” punem governantes que fazem compromissos verificáveis.)
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Roteiro em fases, com marcos e garantias cruzadas — Reconstituir um plano de etapas: (i) congelar o estoque a 60% e reduzir parte a 20% sob lacres; (ii) reinstalar protocolo adicional e sensores; (iii) liberar tranches de alívio; (iv) discutir, mais à frente, cap de centrífugas avançadas. Se os passos derem certo por 6–9 meses, ampliar as contrapartidas (petróleo e SWIFT sob licenças). Esse desenho não resolve a geopolítica, mas abre tempo político para a diplomacia.
Nada disso elimina a tensão central: Teerã quer reconhecimento de sua capacidade nuclear civil em condições de mundo multipolar, enquanto EUA e europeus temem o “limiar” e seus efeitos de demonstração. É precisamente por isso que a retórica de “acordo pacífico” só caminha se vier acompanhada de gestos on the ground: acesso, monitores, dados e reversibilidade. Do lado ocidental, a mensagem também precisa se alinhar — menos “mensagens contraditórias”, mais sequenciamento claro e previsível.
Ao final, o caso iraniano é termômetro de algo maior: que tipo de governança internacional queremos quando sanções viram atalhos permanentes e acordos não sobrevivem a ciclos eleitorais? Uma saída progressista exige recompor a autoridade de instituições multilaterais, blindar a técnica do IAEA das guerras de narrativa e evitar que a pauta nuclear seja engolida por agendas de mudança de regime ou por um estado de exceção econômico perpétuo. Entre dissuasão e diplomacia, entre pressão e pistas de saída, há um meio-termo difícil — mas necessário — para que a promessa de “acordo pacífico” não vire apenas manchete.
Referências
Reuters – Iran seeks “peaceful” nuclear deal with US but won’t compromise security, says Tehran.
Reuters – Iran says it is open to a “fair, balanced” US nuclear proposal.
Reuters – IAEA says Iran must “seriously improve” nuclear cooperation, FT reports.
AP News – UN watchdog says Iran’s 60% enriched uranium stockpile reached 408.6 kg.
Financial Times – Iran’s 60% stockpile up 50% since February, complicating talks.
Reuters – EU confirms it has reinstated sanctions against Iran.
The Guardian – Iran announces official end to 10-year-old nuclear agreement (JCPOA).
