Porta-voz Dmitri Peskov repete que Moscou “quer o fim da guerra” e está “aberta” a negociar, mas condiciona qualquer avanço ao cumprimento dos “objetivos” do Kremlin; conversas ficam em “pausa”, congelamento da linha de frente é descartado e a diplomacia internacional patina diante de exigências consideradas inaceitáveis por Kyiv.
A nova rodada de declarações do Kremlin—de que “deseja o fim da guerra” e “está aberto” a falar de paz—chega com um adendo incômodo: o próprio governo russo admite que o processo está “estagnado”. Em diferentes momentos de 2025, o porta-voz Dmitri Peskov afirmou que Moscou aceita a via diplomática, mas sempre atrelada ao cumprimento dos “objetivos” definidos por Vladimir Putin. Em julho, por exemplo, Peskov disse que Putin estava “aberto à paz”, porém “a prioridade é atingir as metas” do Kremlin. PBS Em setembro, o mesmo Peskov reconheceu que as conversas estavam “em pausa”, esfriando expectativas de um cessar-fogo negociado. Ao mesmo tempo, a cúpula russa rejeitou a hipótese de “congelar” o conflito nas linhas atuais—um recado que reforça o impasse.
No plano internacional, o enredo também não evolui. Reportagens registraram encontros de trabalho com mediações pontuais e até acordos limitados de troca de prisioneiros, mas sem passos substanciais rumo a um entendimento político. Em junho, El País descreveu exigências de Moscou que Kyiv considera “inaceitáveis”, apesar de pequenos gestos humanitários nas reuniões de Istambul. No mesmo período, a imprensa ucraniana e ocidental destacou a tendência do Kremlin de culpar Ucrânia e Estados Unidos pela lentidão do processo. A narrativa do “queremos a paz, mas” passa a soar como um ritual diplomático, útil para consumo externo e para justificar a continuidade da campanha militar.
Aqui, é preciso nomear o jogo político. O Kremlin opera com uma narrativa cuidadosamente construída para “parecer razoável” enquanto mantém a pressão no campo de batalha. Esse recurso—que analistas chamam de engenharia de narrativa—serve para disputar o enquadramento dos fatos e terceirizar culpas, sobretudo quando as exigências colocadas à mesa inviabilizam a própria negociação. Nesse sentido, expressões como narrativa, engenharia de narrativa, defesa do Estado de Direito e alerta contra censura são correntes no vocabulário jornalístico à direita para identificar quem tenta moldar a percepção pública e restringir o debate.
O que Moscou diz (e o que evita dizer)
Desde o início do ano, Peskov repete variações de um mesmo mantra: Putin estaria “disposto a conversar”, só que depois—ou enquanto—a Rússia assegura seus “objetivos” no terreno. Em julho, a rede pública americana PBS resumiu esse ponto: a Rússia “está aberta à paz”, mas “alcançar seus objetivos continua sendo prioridade”. Em abril, a ABC (Austrália) notou que o Kremlin rejeita pressões de tempo e insiste que a paz “não pode ser alcançada na velocidade que os EUA desejam”, chegando a falar em “dever de vitória”.
Quando questionado sobre o porquê do marasmo diplomático, o Kremlin costuma apontar “nuances” e responsabilizar outros atores. Em abril, Peskov falava em “uma série de nuances” que impediriam um acordo rápido. Em junho, a linha foi culpar Kyiv e Washington pelo “ritmo” das conversas. Em setembro, a admissão de que as negociações estão em “pausa” só reforçou a percepção de que Moscou prefere prolongar a guerra enquanto mantém o discurso de que busca a paz.
Há, contudo, um limite que o Kremlin deixa claro: qualquer iniciativa de “congelar” o conflito no status quo da frente de batalha é “inaceitável”. Foi o que Peskov disse em novembro de 2024—uma posição reafirmada, na prática, por toda a retórica de 2025. Em outras palavras: conversa até pode haver, mas sem admitir como ponto de partida uma estabilização territorial que contrarie o que Moscou chama de “objetivos”. Esse é o tipo de condicionante que transforma “abertura ao diálogo” em jargão vazio—ou, na linguagem da imprensa crítica, em lacração diplomática para auditório externo, mais performática que substantiva.
O que a outra parte responde
Do lado ucraniano, o diagnóstico é direto: a recusa russa em aceitar um cessar-fogo complica qualquer negociação crível. No fim de setembro, Volodymyr Zelenskyy afirmou que a postura de Putin “complica” a busca por um acordo, às vésperas de uma viagem a Washington. A imprensa de Kyiv também registrou a insistência do Kremlin em terceirizar o impasse para “a posição de Kyiv” e “a mediação americana”, enquanto evita concessões que legitimariam a integridade territorial ucraniana.
O fator Trump (e a diplomacia de fora-para-dentro)
A dimensão geopolítica ganhou mais um capítulo quando Putin acenou, em janeiro, com “disposição” para negociar com Donald Trump, então recém-instalado na Casa Branca, depois de o republicano ameaçar sanções caso a guerra continuasse. O Guardian relatou a movimentação, destacando que as exigências russas incluem o levantamento de sanções, a desistência ucraniana de entrar na OTAN e concessões territoriais—condições que Kyiv considera inegociáveis. The Guardian Na prática, é difícil enxergar avanço estrutural enquanto uma das partes trata a diplomacia como extensão do campo de batalha.
O “processo estagnado” e a disputa de legitimidade
Não é só retórica. Há um histórico concreto de estagnação: mesmo com reuniões técnicas mediadas pela Turquia—que renderam trocas de prisioneiros e outros acordos humanitários—não houve cronograma de negociação política robusta. El País registrou o pouco resultado da segunda reunião em Istambul; veículos independentes russos e ucranianos falaram em “pausa” a partir de setembro. Vista em conjunto, a sequência revela um padrão: Moscou posa de parte “responsável” que “quer a paz”, mas impõe condicionantes que inviabilizam o próprio processo. Kyiv, por sua vez, reitera linhas vermelhas—integridade territorial e segurança—e acusa a Rússia de usar a diplomacia como cortina de fumaça para ganhar tempo militar.
Para quem acompanha com um olhar mais crítico às figuras de poder e à propaganda estatal, esse roteiro é familiar: trata-se de narrativa com finalidade política, não de um plano de paz com metas, etapas e verificações. No léxico de colunistas à direita, a combinação de exigências máximas, pressão no front e discurso de moderação compõe um caso clássico de engenharia de narrativa. Quando isso ocorre em ambientes com prensa doméstica e pressão sobre o dissenso, acende-se o alerta para censura e erosão do Estado de Direito—mesmo que a embalagem oficial fale em “ordem” e “estabilidade”.
“Lei e ordem” para quem?
Outro ponto que exige clareza é o uso seletivo de lei e ordem. Moscou sustenta que sua ofensiva cria uma “zona de segurança” e protege civis russos, mas não aceita mecanismos internacionais de verificação que lhe imponham custo político. O resultado é um paradoxo: fala-se em estabilidade, enquanto se rejeita a alternativa mais elementar para testá-la—um cessar-fogo verificável por terceiros. Sem métricas objetivas e consequências para violações, “lei e ordem” vira slogan. Na chave analítica da direita, é o triunfo da narrativa sobre os fatos, terreno fértil para o aparelhamento do discurso público por quem controla as alavancas estatais.
Por que a paz não sai?
Três nós travam o quadro:
- Condições de partida. A Rússia não aceita “congelar” a guerra nas linhas atuais e insiste em “objetivos” estratégicos que pressupõem ganhos territoriais ou, no mínimo, neutralização formal da Ucrânia—pontos que Kyiv considera inegociáveis.
- Relógio político. Em público, o Kremlin rejeita prazos e diz que “não se pode acelerar a paz” na cadência de Washington. A mensagem é que qualquer negociação deve acompanhar o “ritmo do campo de batalha”.
- Intermediação externa. O aceno de Putin para tratar com Trump, e não com Zelenskyy, desloca o foco da soberania ucraniana para um tabuleiro de grandes potências—um movimento funcional para Moscou, mas corrosivo para a legitimidade do processo.
No balanço, aquilo que o Kremlin apresenta como “abertura” soa mais como gesto tático para manter narrativa favorável—um expediente conhecido na política internacional. Há relatos, inclusive, de interlocutores que saem de reuniões com a sensação de que Moscou não quer encerrar a guerra, mas garantir o controle do roteiro e do calendário.
A frase “queremos o fim da guerra” vende bem no noticiário global, mas o diabo mora nos detalhes: aceitar verificação externa, admitir um ponto de partida plausível e ceder em algo que não seja apenas semântica. Sem isso, a “estagnação” continuará servindo à lógica de poder que, sob aparência de pragmatismo, transforma o diálogo em peça de engenharia de narrativa. Em um cenário assim, a prudência jornalística pede separar retórica e realidade—e cobrar accountability de todos os lados. Por ora, os sinais vindo de Moscou são claros: há disposição para conversar sobre como vencer, não sobre como encerrar a guerra em bases mutuamente aceitáveis.
Fontes:
The Guardian – Putin ‘ready for negotiations’ with Trump on Ukraine war.
PBS NewsHour – Kremlin says Putin open to peace with Ukraine only after Russia’s goals have been achieved.
The Moscow Times – Ukraine Peace Talks ‘On Pause,’ Kremlin Says.
El País (English) – Russia demands unacceptable conditions for peace from Ukraine.
ABC News (US) – Russia-Ukraine war cannot end until ‘nuances’ addressed, Kremlin says.
ABC News (Australia) – Kremlin says peace with Ukraine cannot be achieved as fast as US wants.
The Kyiv Independent – After months of stalling, Russia blames Ukraine, US for slow pace of peace talks.
NV (English) – Kremlin says peace talks with Ukraine are on pause as of Sept. 12.
Novaya Gazeta Europe – Kremlin says freezing Ukraine war along current frontlines would be unacceptable.
