Em meio à retórica de “saída negociada”, Moscou culpa Kiev pelo impasse diplomático; no terreno, seguem os ataques de drones — inclusive contra refinarias em território russo — e análises independentes mapeiam pressão militar russa em vários eixos, de Pokrovsk a Kupiansk.
A frase é boa, o contexto é implacável. Ao afirmar ontem (10/11) que “quer o fim da guerra”, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, também cravou que o processo de paz está “travado” e responsabilizou a Ucrânia — e seus aliados — pela ausência de avanço. Na narrativa russa, seus “objetivos” poderiam ser alcançados “por meios político-diplomáticos”; na prática, o front não para, os foguetes tampouco. A mensagem encaixa-se num padrão conhecido: abrir uma janela retórica para a “paz” enquanto se tenta consolidar ganhos militares em campo.
No tabuleiro bélico, a semana foi um compêndio dessa contradição. A Ucrânia manteve sua campanha de ataques de longo alcance contra infraestrutura energética russa — uma tática assimétrica que mira a logística de combustível, o caixa do Kremlin e o moral da retaguarda. Na quinta (06/11), um ataque de drones forçou a paralisação da refinaria de Volgogrado (Lukoil), uma das maiores do país, após danos a unidades críticas de processamento, segundo fontes da indústria ouvidas pela Reuters. Dias antes, AP e outros veículos já registravam múltiplos golpes contra instalações de petróleo em regiões como Volgogrado e Saratov. É a continuidade de uma estratégia ucraniana que, em 2025, levou a interrupções, incêndios e suspensões de voos em áreas profundas do território russo.
Relatos mais recentes mencionam novas explosões na refinaria de Saratov nesta terça (11/11), com vídeos de chamas circulando em canais locais; autoridades regionais reconheceram danos a “infraestrutura civil”, sem especificar. Embora parte dessas informações circule primeiro em canais de Telegram e seja consolidada por repositórios de cronologia, a tendência é clara: Kiev intensificou a pressão contra refinarias e depósitos, ampliando o raio dos drones e forçando Moscou a redistribuir defesa aérea e ativos logísticos.
O efeito é bidirecional. Enquanto Kiev martela ativos energéticos, Moscou revida com ondas de mísseis e Shaheds sobre redes elétricas e alvos urbanos ucranianos. No fim de semana, a Rússia lançou mais uma rodada de ataques, deixando mortos e danificando infraestrutura energética em diversas regiões, segundo balanços compilados pela imprensa britânica com base em comunicados oficiais e testemunhos locais. O conflito permanece uma guerra de atrição — guerra de desgaste — na qual cadeias de suprimento, capacidade industrial e sistemas de defesa aérea contam tanto quanto brigadas na linha de frente.
No eixo leste, a pressão russa é tangível. Pokrovsk virou vitrine de batalhas casa a casa, com relatórios — não isentos de propaganda de ambos os lados — descrevendo tentativas de pinça russa para cercar a cidade e empurrar a linha em direção a Kramatorsk e Sloviansk. Reportagens de campo e análises militares apontam para ganhos incrementais da Rússia e uma defesa ucraniana sob estresse de pessoal e munições, ao mesmo tempo em que Kiev nega a narrativa de cerco completo. O quadro, segundo analistas, é de pressão multifocal: Pokrovsk concentra as atenções, mas Kupiansk e trechos do eixo norte-leste continuam sob avanços táticos de Moscou.
Esse paradoxo estratégico — discurso de “querer paz” combinado com avanço no terreno — alimenta a leitura de que o Kremlin busca um cessar-fogo nos seus termos, cristalizando “fatos consumados” sob a rubrica de um acordo político. Em termos de realpolitik, isso significaria levar para a mesa uma linha de contato mais favorável a Moscou. A Ucrânia, por seu turno, confia em que ataques profundos corroam a economia de guerra russa e em que apoio internacional (armas, sanções, reparação energética) reequilibre um campo hoje desfavorável. Aqui, a disputa transborda o front e entra na arena da diplomacia multilateral e das sanções inteligentes — termos caros a uma análise de esquerda que privilegia respostas coletivas a aventuras militaristas.
No plano humanitário, a contabilidade invisível do conflito escala. Cortes de energia, interrupção de serviços essenciais e deslocamentos populacionais são efeitos previsíveis quando infraestruturas críticas viram alvo. Não é difícil ver, nessa estratégia, a marca do complexo industrial-militar e da competição por resiliência social: quem aguenta mais, quem reconstrói mais rápido, quem mantém escolas e hospitais funcionando sob sirenes. O repertório é conhecido e chama por corredores humanitários, proteção de civis e monitoramento independente — pilares que deveriam ser incontornáveis em qualquer cessar-fogo verificável.
Do ponto de vista político-comunicacional, vigora a batalha de narrativas. Moscou insiste que “quer o fim da guerra”, mas que Kiev seria o obstáculo; Kiev devolve a acusação falando em “agressão e ocupação”. Enquanto isso, a mídia hegemônica internacional filtra, edita e reordena o conflito para plateias distintas, com inevitáveis zonas de silêncio. Cabe à cobertura responsável fugir da armadilha do falso equilíbrio: direito internacional não é opinião. A invasão de 2022 foi um ato inicial que molda a estrutura do debate; qualquer solução que normalize anexações perpetradas pela força institucionaliza um precedente perigoso para a segurança europeia e global.
Há, sim, diferenças sensíveis entre um acordo-tampão que congela linhas e uma paz justa que garante soberania e reparação. Sob um prisma progressista, a saída sólida passa por mediação multilateral (ONU, OSCE, União Europeia em coordenação com países do Sul Global), garantias de segurança que não reforcem escaladas armamentistas, calendário de reconstrução e mecanismos de responsabilização por crimes de guerra. Isso não elimina a necessidade de dissuasão — uma Ucrânia segura é condição para que a paz seja sustentável —, mas reafirma que poder militar sem arquitetura política é convite à guerra por procuração sem fim.
No curto prazo, porém, o que se vê é campo minado. As últimas semanas registram ações coordenadas de drones ucranianos contra refinarias (Volgogrado, Saratov, Tuapse e outras em meses recentes), enquanto ataques russos em DNIPRO, Kharkiv, Zaporizhzhia e em redes elétricas mantêm cidades em racionamento. A imprensa internacional fala em “pressão russa em vários eixos” e “ganhos incrementais” na linha de frente — um léxico que, traduzido, significa custo humano alto para cada quilômetro de terreno. O “vai-e-vem” tático molda a mesa de negociações invisível: quem chega com mais cartas? Quem sustenta a própria população durante o inverno?
Como sair da armadilha? Três pistas, à luz de uma leitura de esquerda, podem orientar a diplomacia ativa:
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Priorizar um cessar-fogo verificável e fases sequenciais, com inspetores independentes e linhas diretas para evitar erros de cálculo;
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Ampliar a pressão econômica direcionada — sanções inteligentes e controles de exportação alinhados para cortar o oxigênio de insumos militares sem punir desproporcionalmente civis;
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Ancorar a reconstrução em mecanismos de justiça de transição e fundos climáticos/energéticos que reduzam a dependência de combustíveis fósseis — lembrando que a guerra energética é um subcapítulo desta crise.
Nada disso acontece no vácuo. O sistema internacional vive um desalinhamento de normas, com múltiplos atores testando limites do uso da força e da impunidade. É por isso que o enunciado do Kremlin — “queremos o fim da guerra” — precisa ser cotejado com comportamento observável: ataques continuam, operações terrestres prosseguem, posições avançam com custo altíssimo. Se a paz é prioridade real, há caminhos: retirada ordenada, garantias de segurança, plebiscitos sob padrões internacionais futuramente verificáveis — não sob ocupação — e arquitetura de segurança europeia que não seja punitiva, mas disuasória e inclusiva.
No fim, a disputa por Pokrovsk, as interdições a refinarias e o jogo de pressões em Kupiansk são peças de um quebra-cabeça maior: que tipo de ordem internacional emergirá da guerra? Uma que normaliza anexações e zonas de influência? Ou uma que reabilita a Carta da ONU, com soberania e integridade territorial como premissas, e diplomacia multilateral como método? O tempo corre — e, por enquanto, a guerra de atrição segue ditando o dano cotidiano, enquanto a paz justa permanece fora de alcance.
Referências
Reuters – Kremlin says it wants war to end but peace process is ‘stalled’.
Reuters – Russia’s Volgograd oil refinery halts operations after Ukrainian drone attack, sources say.
AP News – Ukraine says it has hit a major Russian oil refinery with long-range drones.
The Guardian – Russian missile and drone attacks on Ukrainian energy facilities kill at least seven.
Reuters – Russia says its forces advance in Pokrovsk in house-to-house battles.
